Caminhávamos de mãos dadas, o som da grama sendo esmagada sob nossos pés se misturava ao farfalhar preguiçoso dos girassóis que nos cercavam. O céu se tingia lentamente de azul profundo enquanto nos aproximávamos de uma estrutura imensa que surgia no horizonte como um monumento grandioso.

    Um coliseu.

    Meus olhos se fixaram nele. Suas colunas robustas, seus arcos perfeitos, as estátuas de guerreiros eternizados na pedra, era impossível não lembrar da Roma do meu mundo antigo. Mas diferente das ruínas de lá, este coliseu estava em sua plena glória. Não era um túmulo de impérios esquecidos, mas um monumento ainda vivo.

    Pers apenas apertou minha mão. Não disse nada, ela sabia e eu também.

    Passamos pelos portões, o eco de nossos passos se multiplicando nas paredes de pedra como se estivéssemos pisando no passado. As arquibancadas estavam vazias, mas a sensação era de que olhos invisíveis nos observavam de todos os cantos. Um silêncio pesado nos envolveu.

    E então, sem aviso, um punho veio na minha direção.

    Instintivamente, meu braço subiu num bloqueio cruzado. A força do impacto reverberou pelos meus ossos, me fazendo dar um passo para trás. Não havia magia naquele golpe. Era força bruta. Fúria concentrada em carne e osso.

    — Reflexos decentes, garoto — disse uma voz masculina, firme como pedra, com um sotaque pesado que parecia vir de épocas desde a criação do continente.

    O homem que me atacou saiu da sombra de um dos pilares. Alto, absurdamente musculoso, usava uma armadura dourada com detalhes em bronze e um manto púrpura jogado sobre um ombro. Seus cabelos eram vermelhos e os olhos eram vermelhos do mesmo âmbar que o fogo de uma fornalha antiga.

    Ele caminhava como um imperador e cheirava a sangue derramado por glória.

    Pers sorriu, cruzando os braços.

    — Olá, Maximus.

    — Perséfone. — Ele fez um leve aceno de cabeça. — Trouxe o garoto que diz que vai matar deuses?

    — Não é isso que ele diz. — Ela olhou pra mim com orgulho. — É o que ele vai fazer.

    Maximus me encarou de cima a baixo, depois cuspiu no chão de pedra.

    — Veremos.

    E então ele sorriu, como se não tivesse dúvida de que me quebraria em mil pedaços.

    — Bem-vindo ao treino com o imperador.

    Ele cruzou os braços largos como colunas, e o vento soprou por entre as arcadas do coliseu, como se até mesmo o ar soubesse que estava diante de uma força histórica.

    — Eu sou Caesar Maximus Augustus von Emberfell. — Sua voz soou com o peso de mil trombetas em marcha. — Terceiro César da linhagem imperial de Emberfell. Matador de Dragões. Subjugador de Thaldrakos. Fundador da Nova Fronteira de Zar-Aegion. O Punho Sagrado da Deusa Perséfone. Terror das Estepes de Yusgarr. O Conquistador Escarlate. A Última Muralha de Auramaris. O General que Marchou Sobre as Nuvens. Herdeiro da Lança Carmesim. Vencedor de Mil Duelos. Salvador dos Quinhentos da Ponte Negra. Comandante do Sol.

    Ele fez uma breve pausa, me analisando.

    — Mas vocês podem me chamar apenas de Maximus. — disse, com um meio sorriso quase debochado. — Afinal, se vamos treinar juntos, não faz sentido gritar todos esses títulos antes de cada porrada.

    Pers suspirou com um ar resignado.

    — Continua com essa mania de dramatizar até a apresentação, hein?

    Maximus não respondeu, mas seu olhar voltou para mim.

    — Se você é mesmo digno da Perséfone, então vai ter que me provar. Aqui, neste chão. Não como mago, nem como aluno de Oliver. Mas como homem. Como guerreiro. Como o possível sucessor de um Império. Mostre-me se é verdade que a morte te escolheu… ou se ela apenas teve pena de você.

    De repente, todos os títulos que ele carregava pareciam pesar sobre mim. Mas também… eu não era mais o garoto que ela havia resgatado. Eu era Hades. Amor dela.

    E se fosse preciso lutar contra o próprio Império pra continuar ao lado dela… então que viesse o Imperador.

    Maximus ergueu o punho, cerrando-o com força suficiente para rachar o mármore sob seus pés. A aura que o envolvia era como a de uma montanha prestes a desabar.

    — Quando eu era vivo… — disse, com voz firme e carregada de memória. — Eu conquistei metade de Chaia. Cidades que hoje são lembradas só em canções… muralhas que hoje viraram lendas. Nenhuma barreira, nenhuma coalizão, nenhuma maldita profecia me impediu. Nem mesmo a Deusa da Guerra, Athena, ousaria sonhar com o que eu fiz. Ela comanda generais… eu me tornei a guerra.

    Houve um silêncio reverente no coliseu, apenas o som do vento cruzando as arquibancadas.

    — Matei dragões com as mãos nuas. — Continuou, estalando os dedos como se ainda sentisse o calor das escamas e o bafo de fogo em sua pele. — Não com espadas mágicas, não com truques… mas com fúria, técnica e fé. E não em nome do Império. Não em nome da glória. Em nome dela.

    Ele apontou com o queixo para Pers. Ela não desviou o olhar, apenas cruzou os braços com um sorrisinho quase contido.

    — Desde o meu nascimento, sou devoto da Deusa da Morte. — Maximus levou a mão ao peito, onde uma cicatriz em forma de foice reluzia sob sua túnica de batalha. — E quando minha jornada mortal terminou… ofertei minha alma a ela. Sem arrependimentos. Tudo para que um dia, eu pudesse fazer isso.

    Então ele caminhou até mim. Parou a menos de um passo. O mundo pareceu menor.

    — Treinar o primeiro apóstolo que ela amou. E ver com meus próprios olhos se o homem que roubou o coração da morte merece também carregar seu nome, seu legado… e seu destino.

    Fechou os olhos por um instante, como se em oração silenciosa, depois me fitou de novo.

    — Bem-vindo, Hades. Agora… o verdadeiro inferno começa.

    Com um gesto lento e carregado de solenidade, Maximus ergueu a mão na direção do trono imperial esculpido em mármore branco no topo das arquibancadas. Havia ali um símbolo antigo de Emberfell, uma chama devorando uma balança e acima do trono, pairava uma bandeira rasgada pelo tempo, ainda ostentando as cores vermelhas e douradas do império.

    — Aquele trono — disse ele, com uma reverência inesperada em sua voz grave — nunca me pertenceu. Nenhum trono jamais pertenceu a homens como eu. Ele foi um fardo… um altar. Mas se há alguém a quem ele deve obedecer, alguém digno de sentar ali sem jamais curvar a espinha… é você, minha deusa.

    Pers arqueou uma sobrancelha, surpresa, mas seu sorriso era suave. Ela soltou minha mão com delicadeza, caminhou com passos leves e silenciosos até o trono. Quando se sentou, não parecia uma estudante com um vestido escuro. Nem mesmo uma deusa comum. Ela parecia o próprio fim: elegante, inevitável e infinita.

    Maximus, então, virou-se de volta para mim. E num instante, o coliseu inteiro mudou.

    Não houve aviso, não houve ritual, apenas um gesto e o mundo explodiu.

    Sua mão, antes relaxada, foi tomada por chamas mais vermelhas que o próprio sol, como se tivesse arrancado brasas do coração de uma estrela. Era uma cor que fazia o vermelho parecer pálido. O calor que emanava não era apenas físico, era ancestral, esmagador, como se cada átomo do ar reconhecesse aquele fogo e o temesse.

    — Levante-se. — disse ele, e sua voz agora tinha o peso de mil exércitos. — E morra como um futuro deus deve morrer.

    Antes que eu pudesse reagir, ele atravessou a arena com uma velocidade que o espaço parecia não conseguir acompanhar. Seu punho colidiu com meu peito com tamanha violência que nem dor houve.

    O mundo desapareceu.

    Quando abri os olhos, eu estava deitado. Meus ouvidos ainda zumbiam. O céu acima girava lentamente. Meu corpo doía como se tivesse sido esmagado por uma montanha.

    A mão de Pers acariciou meu cabelo. Meu rosto repousava em seu colo, como antes. Seus olhos estavam marejados, mas havia um sorriso doce em seus lábios. Ela estava calma. Como se a morte de seu amado já fosse esperada. Como se me embalar fosse um rito.

    Maximus permaneceu de pé diante de nós, braços cruzados, como se nada tivesse acontecido.

    — Se morrer tão rápido assim, só vai incomodar a deusa. — disse com um tom seco, quase entediado. — Não posso treinar um cadáver, Hades. Volte com dignidade, ou não volte.

    Tossi sangue, mas sorri.

    Afinal, o treino havia começado. E aquele era só o primeiro soco.

    Maximus girou os ombros como quem aquece uma lenda. Seu corpo, ainda que morto, parecia feito de titânio coberto por músculos forjados em batalhas impossíveis. A aura ao redor dele oscilava como o ar acima do fogo, densa, violenta e indomável. Cada passo seu fazia o chão do coliseu tremer como se as ruínas de um império inteiro se agitassem sob nossos pés.

    Ele me olhou com um meio sorriso nos lábios, como se estivesse prestes a desferir uma lição, não uma sentença.

    — Oliver me contou. — disse com aquela voz que parecia escavar as pedras ao redor. — Me contou tudo. Das suas mortes. Das suas vitórias. Da sua dor. E, mais importante, do seu amor. Eu ouvi… e duvidei. Mas agora eu vejo.

    Ele apontou para mim com a mesma mão que outrora carregou um exército sozinho colina acima.

    — Eu era o mago de combate mais forte da história. A muralha de Emberfell. O Punho de Sangue dos Cem Conflitos. Meu grau de pureza era oito. O mesmo que você. Mas eu era o limite. E o que eu quero de você, Hades, é simples: quero que quebre esse limite.

    As chamas em seus punhos voltaram a queimar. Eram diferentes agora, mais intensas, mais agitadas, como se reagissem ao meu próprio poder.

    — Para alcançar o grau dez, você terá que treinar o corpo até que ele caia. Até que ele morra. E então levantar. Sempre. Até que até mesmo os deuses parem para te observar. Até que o próprio universo se curve diante da tua resistência.

    Ele respirou fundo e então abriu os braços como quem invoca um furacão.

    — Vamos começar devagar. Mostre o que aprendeu. Me ataque, apóstolo da morte. Vamos ver se você consegue fazer esse velho guerreiro dar um passo pra trás.

    Eu me levantei, sentindo as costelas ainda trincadas do golpe anterior. A poeira da arena girava ao redor, moldando um palco para o impossível.

    Minhas mãos se fecharam. A mana morta percorreu meu corpo como um véu sombrio, envolvente e natural. Meus olhos buscaram os dele. E ali não havia crueldade, nem sarcasmo, apenas desafio. Um desafio entre dois guerreiros que carregavam o fardo de terem sido os melhores em tudo o que fizeram… até que o mundo os esquecesse.

    — Como quiser, Maximus. — disse com um leve sorriso. — Só espero que você saiba dançar.

    E então ataquei.

    O coliseu inteiro parecia prender a respiração quando avancei. Era como se a própria Chaia tivesse parado para observar. Os olhos da Deusa da Morte, sentada no trono imperial, não piscavam. O vento que soprava pelos arcos de pedra carregava o peso de eras esquecidas, como se estivesse pronto para cantar sobre o que viria a seguir.

    Me movi com tudo o que tinha. Trovões negros serpenteavam ao meu redor, como sempre fizeram desde que manifestei a mana de Pers. Ignis Mortem queimava ao longo dos meus braços como brasas vivas, minha sombra se estendia além da luz, puxando consigo a morte silenciosa.

    Ataquei com uma sequência de rajadas, relâmpagos que cortavam o ar e feitiços do sexto círculo em rápida sucessão. Cada investida era precisa, feita para perfurar a defesa de qualquer mago. Qualquer um… menos Maximus.

    Ele não contra-atacava.

    Ele apenas desviava.

    Com movimentos mínimos: um passo, uma inclinação de pescoço, um giro sutil do ombro ele evitava tudo. Como se tivesse dançado essa luta mil vezes em sua mente antes mesmo que eu desse meu primeiro passo. Era uma coreografia perfeita. Meu poder parecia grandioso… até encontrar o vazio absoluto que ele representava.

    Minhas sombras se erguiam para engoli-lo, e ele passava por elas como vento por uma cortina. Meus feitiços explodiam atrás dele, destruindo as paredes da arena, rachando o solo… mas ele seguia ileso.

    A raiva veio, seguida de frustração. Mas não era por ele, era por mim.

    Ele era um campo de treinamento em forma de homem. Um espelho cruel que me dizia: “Ainda não.”

    Continuei lutando.

    Voando, teleportando, investindo com a velocidade de um raio e a força de uma avalanche. Usei técnicas novas e velhas, criações feitas em meu Reino Além e aperfeiçoadas no caos. Mas ele… continuava não revidando.

    E então, quando minhas forças começaram a ceder, quando as gotas de suor e sangue se confundiam na minha pele, quando a respiração doía como agulhas, ele parou. Me encarou. E veio em minha direção com tranquilidade.

    — Já deu. — disse, como se aquilo fosse apenas uma brincadeira de criança.

    Ergueu o punho direito. O mesmo punho que um dia esmagou a mandíbula de um dragão. Mas agora… não havia fogo e nem mana. Era só um soco. Um simples soco.

    E quando ele me atingiu…

    O mundo explodiu.

    Meu corpo foi arremessado como se tivesse sido engolido por uma tempestade. Atravessei metade da arena, os pilares se curvaram ao meu redor, e só parei quando quebrei dezenas de degraus das arquibancadas superiores. Pedra virou poeira. Colunas ruíram. O coliseu tremeu.

    Fiquei ali, deitado entre os escombros, sem forças para me levantar. O céu parecia girar. A dor era onipresente.

    Maximus cruzou os braços no centro da arena, como se nada tivesse acontecido.

    — Esse foi o meu golpe mais fraco, Hades. Se quiser alcançar o grau dez, terá que aprender a lutar com o corpo… mesmo quando o corpo diz que não pode mais lutar.

    Lá do alto, entre os destroços, ouvi um som abafado. Era Pers… rindo.

    Não de deboche.

    Era um riso carinhoso, cansado e encantado. E, por algum motivo, saber que ela estava ali, me vendo, ainda me amando mesmo depois de me ver perder, fez tudo valer a pena.

    Eu respirei fundo. Um sorriso de dor no rosto. A batalha tinha acabado. Mas o verdadeiro treinamento… apenas começava.

    Quando voltei à arena, minhas pernas ainda tremiam sob o peso do último golpe, e o som das pedras quebradas sob meus pés parecia zombar de mim a cada passo. O coliseu se reconstruía lentamente pelas mãos invisíveis de magia antiga, mas eu mal percebia isso, meus olhos estavam fixos nele.

    Maximus.

    Parado no centro da arena como uma montanha que nunca se moveu. O punho cerrado, o olhar firme, e uma presença que fazia os céus parecerem menores. Quando o alcancei, ele ergueu a mão casualmente… e estalou os dedos.

    Na mesma hora, senti.

    Foi como se uma lâmina invisível passasse por todo o meu corpo, cortando cada fio de mana. A energia que me alimentava, o que me fazia especial, o que me ligava a Pers e a tudo que havia aprendido… sumiu. Evaporou. Desapareceu.

    — O que… você fez? — minha voz saiu fraca. Como a de um homem nu diante de um exército.

    Maximus sorriu de lado.

    — Esta é a minha técnica especial. — disse, batendo o punho contra o peito. — “Campo Nulo”. Uma área onde ninguém pode usar mana. Nem eu.

    Tentei convocar sombras. Nada. Tentei sentir Pers. Nada. Tentei até correr mais rápido, usar o instinto do Aspecto… mas não havia nada. Era como se meu corpo tivesse voltado a ser apenas… carne.

    — Aqui, Hades — continuou ele, andando em círculos ao meu redor como uma fera testando sua presa — você não é o Apóstolo da Morte. Não é o favorito de uma deusa. Não é um mago. Não é um prodígio. Aqui… você é só um homem.

    Me encarei com ele em silêncio.

    — Esse exercício só termina quando você me acertar um soco. Um. Só um. — Ele estendeu o pescoço e apontou com o dedo para o próprio queixo. — Pode ser aqui.

    Dei um passo à frente, e ele ergueu a mão.

    — Ah. E mais uma coisa. — Os olhos vermelhos brilharam como brasas antigas. — Cada vez que você tentar trapacear, usar truques, atalhos, instinto mágico… eu vou saber. E você vai pagar por isso com dor.

    Ele abriu os braços. Vulnerável. Inacreditavelmente arrogante.

    — Então venha, Hades. Mostre se há algum valor no seu corpo sem alma divina.

    Engoli em seco.

    Era isso, então?

    Um treino sem mana. Sem magia. Sem proteção. Um soco. Só um soco.

    Mas contra o homem que derrotou exércitos sozinho, derrubou muralhas com o corpo e matou dragões com as próprias mãos.

    Tive que sorrir.

    — Então… é guerra, Maximus?

    Ele ergueu o punho. O sorriso dele respondeu por si.

    E o inferno começou.

    Tentei de tudo.

    Nos primeiros dias, a confiança me enganava. Eu achava que seria simples. Que bastava velocidade, surpresa, ou alguma técnica marcial. Que um truque bem posicionado, ou um movimento inesperado, poderia fazê-lo vacilar. Que por mais forte que fosse, ele ainda era humano. Que com o tempo eu aprenderia.

    Mas não.

    Eu tentei correr em zigue-zague. Maximus me chutou no estômago e voei tão longe que fui parar fora da arena.

    Tentei um salto giratório com o joelho em riste. Ele pegou minha perna no ar, girou comigo como se eu fosse uma criança de pano e me jogou contra uma coluna. Desmaiei. De novo.

    Tentei fingir uma queda, tropeçar de propósito e levantar com um soco na linha de cintura. Ele aplaudiu meu teatro, me chamou de “criativo” e me deu um tapa tão forte que rodopiei no ar duas vezes antes de aterrissar de costas.

    Tentei mirar nas pernas, já que o rosto parecia inalcançável. Ele pulou. Simplesmente pulou. E enquanto eu ainda estava agachado, me deu um peteleco na testa. Apaguei.

    Tentei provocar, insultar, tirar ele do sério. Disse que ele parecia um vovô musculoso aposentado, que Pers preferia homens mais magros.

    Ele apenas ergueu a sobrancelha, pegou um pedaço de pão de dentro do bolso (?) e me jogou. Acertou em cheio no meu olho. Sim. Um pão. Tive que deitar por causa da dor.

    Tentei rasteira. Rasteira dupla. Chave de braço. Movimentos de boxe que aprendi na Terra. Capoeira improvisada com chute giratório. Posição de judô. Golpe baixo. Arremesso com o ombro.

    Nada.

    Tentei esperar ele dormir. Fingi que fui embora e tentei um soco furtivo no meio da madrugada. Ele dormia com um olho aberto. Literalmente. Me deu uma cabeçada de olhos fechados que me fez esquecer meu nome por duas horas.

    Tentei escalar a parede da arena e pular em queda livre pra acertar o soco. Ele só andou dois passos pro lado. Caí de cara na areia.

    Tentei vir correndo do outro lado do coliseu, gritando como um lunático. Talvez o som distraísse. Quando cheguei perto, ele só se abaixou e colocou o pé. Caí rolando, com a cara cheia de areia e o orgulho esmagado.

    Tentei fugir da arena e fingir que tinha desistido. Quando me dei conta, ele já estava atrás de mim, lendo um livro e andando com uma mão no bolso, como se fosse um passeio no parque.

    Tentei de tudo.

    Mas o pior foi quando tentei desistir. Quando me sentei no meio da arena, ofegante, coberto de sangue seco e areia, com os ossos doendo e os músculos em carne viva, e disse: “Eu não consigo.”

    Maximus caminhou até mim, olhou nos meus olhos e disse:

    — Ótimo. Agora você está pronto para começar.

    E então… me empurrou com dois dedos. Caí de novo.

    E recomecei.

    Morri tantas vezes que perdi a conta. Mas Maximus não. Ele anotava tudo. Com orgulho. Como se cada morte minha fosse uma página dourada em sua biografia.

    A primeira morte foi a mais humilhante. Um simples empurrão, com a palma da mão, direto no centro do peito. Meu coração parou. Literalmente. Pers teve que reiniciá-lo.

    Na segunda, fui dar um soco de esquerda e ele desviou tão rápido que perdi o equilíbrio. Ele me segurou pela nuca e quebrou meu pescoço. Morte instantânea.

    Na terceira, tentei um chute voador. Ele aparou meu corpo no ar, me girou uma, duas, três vezes e me arremessou contra o chão com tanta força que minha alma foi cuspida do corpo.

    Na quarta, tentei uma rasteira desesperada. Ele só pisou em mim. Minha coluna virou pó.

    Na quinta, me deu um soco no fígado. Só isso. Um mísero soco. Eu vomitei sangue até o coração parar.

    Na sexta, tentei ser esperto. Fingi um colapso e, quando ele se aproximou, saltei para atacá-lo. Ele não riu. Só estalou os dedos e, sem mana, eu simplesmente… parei de funcionar. Morri de falência múltipla dos órgãos. Espontaneamente.

    Na sétima, me deu um tapa. Um tapa. Que girou minha cabeça 360 graus.

    Na oitava, ele apontou para o céu e eu olhei. Um chute na têmpora me apagou antes que eu visse o que havia acima.

    Na décima, tentou me ensinar uma técnica de contra-ataque. Fiz tudo errado. O contra-ataque foi dele. Me atravessou com uma joelhada.

    Na décima primeira, dei um soco que quase acertou. Quase. Ele se abaixou, colocou o dedo no meu peito e disse “belo esforço”. Meu corpo explodiu por dentro.

    Na décima segunda, morri de exaustão. Não dormia fazia dias. Bati no ar e meu coração desistiu no processo.

    Décima terceira: ele me arremessou contra a parede. Do outro lado da arena. Atravessando a arquibancada. Meus ossos viraram poeira.

    Décima quarta: me esmagou com um abraço. Sim. Um abraço. Disse que queria ver se eu estava aprendendo a endurecer o corpo. Eu não estava. Quebrei as costelas, pulmões perfurados, fim da história.

    Décima quinta: me matou com um tapa nas costas. “Bom trabalho, mas você morreu.” Foi o que ele disse antes de eu apagar.

    Décima sexta: morri só de ver ele vindo na minha direção. O medo me matou. Honestamente, não estou orgulhoso dessa.

    Décima sétima: caí do alto da arquibancada depois de ser jogado com tanta força que demorei dois segundos pra tocar o chão.

    Décima oitava: mordi a língua durante uma esquiva e engasguei com o próprio sangue. Ele só ficou olhando, balançando a cabeça.

    Décima nona: morri rindo, acreditando que tinha finalmente acertado um golpe. Acertei o chão. Ele nem estava mais lá.

    Vigésima: me matou com um olhar. Ok, talvez tenha sido o olhar seguido de um chute no estômago que me arremessou até o teto do coliseu. Mas senti como se o olhar tivesse mais peso.

    Essas são apenas algumas. Ainda estou tentando entender por que, entre morrer centenas de vezes pra Moradina e morrer agora em silêncio pra Maximus, meu corpo ainda insiste em voltar.

    Talvez seja o amor. Talvez seja a loucura.

    Ou talvez eu realmente seja masoquista.

    No início, meus socos não passavam de brisas. Golpes infantis. Eu errava o alvo, tropeçava nos próprios pés, e Maximus me matava com o dedo mindinho. Literalmente.

    Mas, com o tempo… algo começou a mudar.

    Na tentativa número cento e vinte e dois, consegui desviar de três golpes. Três. Antes de ele girar em falso e me aplicar um chute tão rápido que só percebi quando acordei no colo de Pers.

    Na centésima trigésima oitava, meu punho quase roçou o queixo dele. Quase. Ele arqueou uma sobrancelha e disse “melhorou”, antes de bater as mãos e gerar uma pressão de ar que esmagou meu crânio como uma fruta madura.

    Na centésima quinquagésima, consegui pará-lo por um segundo. Um segundo! Minha aura se expandiu de maneira instintiva e empurrou o ar ao redor. Maximus ficou surpreso. Sorriu. E me enforcou com uma chave de braço que quebrou cada osso do meu pescoço.

    Na centésima septuagésima segunda, criei um novo jogo de pés. Minha movimentação era fluida, menos previsível. Até consegui empurrar Maximus para trás. Um passo. Foi o bastante para ele piscar devagar, parecer… orgulhoso. Depois, me deu um tapa com as costas da mão que me fez atravessar a areia da arena como uma pedra na superfície de um lago.

    Na tentativa duzentos e três, fui capaz de prever um gancho. Meu ombro se moveu na hora certa. Ele perdeu o timing por um instante. Pela primeira vez, sua mão não me acertou diretamente. O punho passou raspando. E então ele me deu uma joelhada. Nunca tinha morrido com tanta classe.

    Duzentas e vinte tentativas. Meu corpo começava a agir antes de mim. Como se estivesse aprendendo mesmo quando minha mente já havia desistido. Os reflexos vinham de dentro, da alma, talvez. Eu lutava com os olhos arregalados, suado, roxo, e ainda assim… me movia.

    Duzentas e trinta e sete mortes. Pers já nem chorava tanto. Às vezes só suspirava e me abraçava. Às vezes ria. Como se dissesse: meu amor é louco, mas é o meu louco.

    Na tentativa duzentas e cinquenta, senti meu corpo mais firme, mais denso. O punho que antes era frágil agora fazia o ar silvar. Eu acertava o vento com velocidade real. E mesmo assim, Maximus desviou como se estivesse flutuando.

    Mas seus olhos… agora me observavam de outro jeito. Já não era mais como um mestre olhando um tolo. Era como um veterano olhando um soldado prestes a se tornar igual.

    Na tentativa duzentas e sessenta e nove, desferi um combo de quatro golpes. Um direto. Um gancho. Um chute. Um avanço com o ombro. Maximus sorriu. Aplaudiu. E me acertou com uma cotovelada tão lenta que parecia brincadeira. Morri sorrindo.

    — Você está chegando lá — ele disse ao me ver voltar à vida.

    — Eu sei — respondi, limpando o sangue da boca.

    — Mas ainda vai morrer mais umas cem vezes.

    E eu… só sorri.

    Perdi as contas de quantas vezes morri. Cem? Duzentas? Talvez quinhentas. Já não importava. Eu caía com o nariz quebrado, costelas afundadas, sangue nos olhos… e voltava. Sempre voltava.

    Com um sorriso no rosto.

    Às vezes, Pers me esperava sentada no trono de mármore, os olhos baixos e o queixo apoiado na mão. Às vezes, ela caminhava até mim antes mesmo de eu acordar. Me abraçava. E murmurava:

    — Amor… você é impossível.

    Maximus, por outro lado, nunca parecia surpreso. Cruzava os braços diante do corpo hercúleo, os músculos retesados como se fossem feitos de granito ancestral, e dizia algo novo toda vez que eu me erguia, rangendo os dentes, cambaleando.

    Naquela manhã em especial, após mais uma morte onde meu peito havia sido atravessado por um simples soco ascendente, ele se aproximou enquanto eu tossia sangue e ainda ria.

    — Você, garoto… — disse, com a voz áspera como uma espada embainhada há séculos — se tivesse nascido na minha época, eu te teria transformado em um dos meus centuriões.

    O silêncio que se seguiu carregava peso. Vindo dele, aquilo não era um elogio comum. Era uma honra.

    — Os melhores entre os melhores — ele continuou, com o olhar perdido no passado —, eram os que não tinham medo da morte. Não porque eram tolos… mas porque sabiam que ela fazia parte da vitória.

    Respirei fundo, ofegante. O sangue ainda escorria da lateral da minha boca. Minha clavícula ainda doía. Mas algo… algo brilhava em mim. Não era mana. Não era força física.

    Era mais fundo.

    Cada vez que morria, algo em mim se ascendia. Uma centelha. Um entendimento.
    A dor, o cansaço, o medo, tudo deixava de ser obstáculo e virava combustível.

    Eu já não lutava por orgulho nem mesmo por glória. Lutava por ela, pela promessa e por mim.

    Eu estava virando aquilo que disseram que era impossível: um apóstolo destinado a ser mais que um servo. Um homem destinado a tocar a eternidade.

    Um dia, pensei… quando tudo isso acabar… Talvez eu não precise mais morrer para renascer.

    Dito isso, morri de novo.

    Aquela dor já era familiar, mas havia algo novo. Enquanto meu corpo caía mole no chão de pedra da arena, minha alma escorregava por entre os dedos da realidade. Flutuava no nada.

    Mas não era o nada.

    Era um mar.

    Um mar profundo de silêncio, onde a luz era um rumor distante, e o frio… o frio cortava como memórias esquecidas. Nadava sem rumo, os braços pesados, a pele translúcida. E quanto mais eu nadava, mais eu sentia a solidão.

    A solidão de existir em mil fragmentos. A solidão de ter sido um soldado, um irmão, um filho, um fantasma. A solidão de agora ser um apóstolo em guerra com os próprios limites.

    Foi então que vi.

    Um fio.

    Fino, pulsante, vermelho como a vida. Ligado ao meu peito. E estendia-se até aquela luz distante, aquela que nunca conseguia alcançar. Um som ecoou dentro de mim, não com palavras, mas com vontade:

    “Se você deseja voltar… puxe.”

    Minhas mãos etéreas agarraram o fio.

    E puxei.

    O mar se partiu num estalo. A luz queimou. O mundo tremeu. E despertei.

    Não nas mãos de Perséfone. Não com um beijo, não com o toque de um deus. Despertei sozinho, no centro da arena. O chão trincado. O ar vibrando com mana morta ao meu redor. Os olhos arregalados de Pers me encontraram e nela havia choque, susto… e algo mais profundo: espanto verdadeiro.

    Maximus… Maximus gargalhou. Um riso ancestral, ecoando como um trovão nas colunas do coliseu.

    — SIM! — gritou ele, os punhos fechados, os olhos ardendo — É ISSO QUE EU QUERIA VER!

    Ele se aproximou a passos largos, o corpo vibrando como uma forja prestes a explodir.

    — Você mesmo puxou o fio da vida de volta pro seu peito… Você… se ressuscitou! — seus olhos se voltaram para Perséfone com uma provocação escancarada — Agora sim, minha Deusa… agora eu posso aceitar que você escolha esse moleque.

    E então, ele me olhou com aquele sorriso selvagem e orgulhoso.

    — Pra se deitar com a minha deusa… você teria que ser, no mínimo, isso.

    Eu ainda estava ajoelhado, a mão no peito, sentindo o fio invisível tremeluzindo dentro de mim como uma nova artéria de poder. Mas diferente de antes… eu não me sentia um sobrevivente.

    Eu me sentia o dono do meu retorno.

    E dessa vez, ao olhar para Pers, com o coração batendo mais firme do que nunca, entendi algo silencioso entre nós:

    Eu já não era só um apóstolo.

    Eu estava me tornando a própria exceção.

    E estava me movendo diferente agora.

    Como se cada célula do meu corpo soubesse que estava no lugar certo, na linha certa, no fio certo da existência. Não era apenas a velocidade dos meus socos, o peso do meu corpo, ou o tempo da minha esquiva. Era algo mais… algo que ecoava entre meu nascimento e minhas mortes.

    A certeza de que, pela primeira vez, a vida era minha.

    Cada passo que eu dava na arena soava como uma batida de tambor, não para anunciar minha queda, mas para firmar meu domínio. Eu não apenas sobrevivia. Eu voltava.

    Com um sorriso nos lábios. Como se eu estivesse dançando entre os golpes. Como se morrer fosse apenas uma curva suave em um longo caminho que já sei que vou percorrer inteiro.

    E Maximus… Maximus sorria mais do que nunca.

    Não era um sorriso comum, não era um sorriso gentil, era largo, feroz, como o de uma criança ao ver uma tempestade se formando ou como o de um imperador olhando nos olhos de um dragão antes de arrancar suas escamas com as próprias mãos.

    Cada vez que eu tombava, ele vinha até mim e me cutucava com a ponta do pé.

    — Morreu? — perguntava, como quem pergunta se um pássaro caiu ou decidiu voar.

    E quando meus olhos se abriam, arregalados de riso, o sorriso dele se escancarava.

    E eu me perguntava…

    Era assim que ele sorria para os dragões? Antes de subir nos pescoços escamosos deles, antes de fincar os punhos em peito flamejante, antes de transformar mitos em cinzas? Havia um brilho de reverência nos olhos daquele imperador morto, não por deuses e nem por reis.

    Por guerreiros.

    — Está começando a entender, moleque — disse ele após minha décima terceira morte consecutiva naquele dia. — Lutar não é só bater e não morrer. Lutar é escolher continuar, mesmo quando morrer parece mais fácil.

    Eu me levantei.

    O corpo latejava, mas a alma… A alma estava viva como nunca.

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