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    Narrado por Aisha

    O ar do entardecer do segundo dia estava mais fresco, e o mundo parecia ter se acalmado depois do treino. Eu estava exausta, mas não era só meu corpo que pesava: havia algo dentro de mim que não me deixava em paz desde a última noite.

    Ian estava de pé, a poucos passos, respirando fundo. Ao redor dele, a mana se agitava… mas não da forma que eu tinha visto antes, como uma tempestade prestes a romper tudo. Não. Agora ela corria como um rio contido em seu leito. Forte, constante, mas guiada. O fluxo parecia se enroscar nele, circulando, reconhecendo-o. Era… impressionante.

    Ele abriu os olhos lentamente, e por um momento senti como se aquela corrente de energia tivesse me notado também. Não era hostil, mas tampouco acolhedora. Era como estar diante de algo que não pertencia ao mesmo nível que eu.

    — Você está estranha. — disse ele, direto, com a voz calma, mas firme o bastante para não soar como uma pergunta.

    Tentei sorrir, mas a expressão não vingou. — Estranha? Eu? Depois de passar o dia apanhando de você?

    Ele arqueou uma sobrancelha, e por um instante o canto da boca dele quase ameaçou um sorriso. Mas apenas quase.
    — Não é isso. — Ele deu um passo em minha direção. — Você não estava aqui de verdade durante o treino. Seu corpo respondia, mas sua mente estava em outro lugar.

    Engoli em seco. Ele percebia tudo.

    — Foi Thamir. — soltei, rápido demais.

    Os olhos dele se estreitaram, atentos. — O que tem o Thamir?

    Respirei fundo, tentando organizar a coragem que restava. — Ele me contou. Sobre Jyn.

    A reação foi imediata. O fluxo de mana ao redor dele vacilou, as correntes que pareciam tão bem contidas se agitaram como redemoinhos. Não foi uma explosão, não foi descontrole. Mas foi o suficiente para eu sentir o ar ficar pesado.

    — Ele não devia ter contado. — A voz dele saiu baixa, mas cortante.

    — Eu pedi. — respondi, tentando segurar a firmeza. — Eu precisava entender por que você não quer que eu desperte minha linhagem.

    Ele fechou os olhos, como se aquilo fosse um fardo que não queria carregar outra vez. O fluxo da mana se estabilizou lentamente, voltando ao ritmo de rio. Quando abriu os olhos de novo, o azul frio que me encarou parecia trazer séculos de peso.
    — Então agora você entende.

    Fiquei em silêncio por alguns segundos, sem saber se tinha dado um passo em falso ou se tinha finalmente me aproximado de algo real nele. O coração martelava.

    — Eu não queria… — hesitei. — Eu não queria machucar você trazendo isso à tona. Só queria que soubesse que… eu sinto muito.

    A mana oscilou de novo, como se minhas palavras tivessem tocado em algo que ele tentava manter submerso.

    — Não diga isso. — ele rebateu, sem levantar a voz. — Não é um peso que você possa carregar por mim.

    — Mas eu posso estar aqui. — arrisquei, um pouco mais firme. — Mesmo que não entenda toda a dor. Eu posso estar aqui, Ian.

    Ele me olhou longamente, e pela primeira vez desde que o conheci, vi algo diferente no olhar dele. Não era raiva, nem frieza. Era surpresa. Como se fosse a primeira vez que alguém dizia aquilo sem querer nada em troca.

    — Você não sabe o que está dizendo. — murmurou.

    — Então me faz entender. — respondi, quase sem perceber que tinha dado um passo à frente.

    Por um momento, pensei que ele fosse recuar. Mas ele ficou parado, imóvel, como uma muralha. A mana tremulou em volta dele, cintilando como reflexos d’água.

    — Eu vi. — Ele disse enfim, e o peso de cada palavra pareceu ecoar dentro de mim. — Eu vi ela morrer. Não pude fazer nada. E não houve poder, nem linhagem, nem promessa que pudesse mudar isso.

    O silêncio que se seguiu foi brutal. Eu senti a garganta fechar.

    — Você não desviou o olhar… — murmurei, lembrando do que Thamir havia dito.

    Ele respirou fundo, e as mãos dele se fecharam lentamente em punhos. — Não. Fui forçado a assistir. Cada segundo. E essa é a memória que me acompanha desde então.

    O ar pareceu gelar ao redor. O fluxo de mana, antes como um rio, agora parecia o mar revolto sob tempestade, pronto para engolir tudo. Meu corpo inteiro queria recuar, mas meus pés não se moveram.

    — Ian… — falei baixinho, arriscando a voz. — Não é culpa sua.

    Ele me encarou como se aquelas palavras fossem incompreensíveis. Como se não houvesse mundo onde aquilo pudesse ser verdade.

    — Não o que não sabe. — O tom dele foi quase um aviso.

    Mas mesmo com medo, continuei. — Você carrega isso como se fosse. Mas não é.

    O olhar dele se escureceu, a mana vibrou em ondas, e por um instante temi que tivesse ido longe demais. Mas então, ele desviou o olhar. Um suspiro longo escapou, e lentamente a energia ao redor dele foi cedendo, voltando ao fluxo contido.

    — Aisha… — disse meu nome como se fosse a primeira vez que pesava cada sílaba. — Você ainda não entende. Algumas coisas não são simplesmente sobre culpa. São sobre o vazio que fica.

    Engoli em seco. Ele tinha razão. Eu não entendia. Não completamente. Mas sentia, no fundo, que precisava dizer aquilo mesmo assim.

    — Então deixa eu dividir um pouco desse vazio. — falei, mais firme. — Nem que seja só para você não carregar sozinho.

    Ele ficou em silêncio, os olhos fixos em mim. O mundo pareceu se prender naquele instante, como se a própria mana tivesse parado de fluir para ouvir a resposta.

    Mas a resposta não veio. Apenas um suspiro, um fechar breve de olhos, e o peso voltando para dentro dele, como se enterrasse tudo outra vez.

    — Aisha, — ele falou novamente me olhando, mas dessa vez mais calmo — Não peça pelo que você não entende.

    E foi nesse silêncio que ouvimos passos atrás.

    — Vocês dois. — A voz de Naira quebrou o momento. Quando me virei, ela já estava parada na entrada, braços cruzados, avaliando a cena como quem já tinha deduzido metade. — A comida está pronta.

    Ian ergueu o olhar para ela e, sem dizer nada, começou a guardar a espada. O fluxo de mana se dissipou, deixando apenas o peso no ar.

    — Vamos. — disse ele, já caminhando à frente. — E por favor, não toque mais neste assunto assim.

    Assenti em silêncio, ainda com o peito apertado, e o segui.

    Mas dentro de mim, uma certeza nascia: por trás da força dele havia cicatrizes que nunca fechariam. E talvez… talvez eu tivesse acabado de tocar em uma delas.

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