Índice de Capítulo

    As carroças iam sendo descarregadas, e o acampamento tomava forma sob o cair da noite. O frio chegava rápido, cortante, mas as fogueiras já começavam a vencer a escuridão. Thamir ajudava a descarregar a carroça da família Seryn, e, para surpresa de alguns soldados, o fazia com eficiência, ainda que misturado de comentários irônicos que arrancavam risadas e diminuíam a tensão.

    Quando terminou de firmar uma das estacas da tenda principal, notou que, por alguns instantes, estavam apenas ele e Elenys. A Matriarca observava a montagem, braços cruzados, mantendo a compostura habitual, mas o olhar não desgrudava dele.

    — Você está mesmo disposto a bancar o soldado? — ela perguntou, com uma ironia leve, mas carregada de curiosidade.

    Thamir deu um meio sorriso, ajeitando a corda da estaca. — E por que não? Acha que só sirvo para o combate?

    — Acha que me convence com esse ar de simplicidade? — Ela inclinou o queixo. — Eu já vi homens tentando se aproximar por menos.

    Ele riu baixo, sacudindo a cabeça. — Não é isso. Eu não gosto de perder tempo. Se quero algo… eu digo. Se gosto de alguém… invisto logo. Prefiro isso a ficar me arrependendo depois.

    O silêncio dela foi breve, mas intenso. A máscara de controle não se quebrou, mas a surpresa no olhar era clara.

    — Você não me conhece. — respondeu, com firmeza.

    Thamir se aproximou um passo, não de forma agressiva, mas bastante para diminuir a distância e obrigá-la a encará-lo sem desvios.

    — Conheço o suficiente Matriarca Elenys. Você anda cercada de gente, mas sempre com uma expressão vazia e solitária. hoje foi a primeira vez que te vi com algo a mais nos olhos além de silencio. Você deve amar muito sua filha. Mas a proposito não tenho problema em ser padrasto.

    Elenys respirou fundo.

    — Não é minha filha… é sobrinha.

    — Você entendeu meu ponto, Mas enfim — Thamir falou coçando a cabeça e retomando o tom mais sério — Quantas coisas você já perdeu para cumprir ordens e obrigações impostas por outros?

    Elenys ergueu as sobrancelhas, tentando esconder a respiração presa. — E o que você sabe sobre o que eu perdi?

    — Nada. — ele admitiu, honesto, com um sorriso enviesado. — Mas vi o jeito que olha quando pensa que ninguém está reparando. E isso já me diz bastante.

    A Matriarca desviou o olhar, recompondo a postura. A voz dela saiu baixa, quase cortante: — Você fala como se fosse simples… como se me reduzir a “um rosto bonito e uma vida solitária” fosse toda a verdade.

    — Não é toda. — Thamir respondeu sem hesitar. — Mas foi o bastante para me encantar. O resto? Só vou descobrir se você me deixar chegar mais perto.

    O silêncio entre eles pesou. Elenys mantinha o semblante firme, mas os dedos se apertavam sutilmente contra o tecido da própria capa. Era raro alguém falar com ela assim direto, sem cálculo político e sem rodeios.

    Ela respirou fundo, tentando recuperar o controle.

    — Você não entende como funcionam as casas, Guardião.

    Thamir inclinou a cabeça, com aquele humor ácido de sempre.

    — Talvez eu só não ligue se eu puder obter o que eu quero.

    O olhar dela vacilou. O rubor que subiu discretamente às faces foi rápido, mas real.

    Ele recuou um passo, voltando ao tom mais leve.

    — Mas relaxa. Não estou pedindo nada agora. Só estou deixando claro: não gosto de perder tempo.

    Elenys abriu a boca, mas não respondeu. O silêncio dela era quase mais revelador do que qualquer frase.

    Foi então que passos se aproximaram, Serena e Isla voltaram carregando cestos de mantimentos. Serena, prática como sempre, foi direto organizar os suprimentos. Já Isla, ao notar Thamir terminando de ajustar a lona da tenda de Elenys, aproveitou a chance de se aproximar.

    — Guardião Thamir? — a voz dela saiu firme, mas com uma ansiedade mal disfarçada.

    ele finalizou a amarração e se aproximou de Isla.

    — Pode me chamar de Thamir. — Ele falou com um sorriso curto.

    — Gostaria de convidá-lo para se juntar a nós no jantar esta noite. Minha tia certamente ficaria honrada com a sua presença.

    — Olha só — Thamir falou abrindo um meio sorriso divertido enquanto olhava para Elenys, que estava começando a ficar perigosamente vermelha. — É mesmo? Ou seria você quem ficaria honrada?

    — Isla — Elenys interveio — O que está fazendo?

    O sorriso escapou de Thamir. essa era uma bela oportunidade para desconcertar Elenys.

    — Não esta vento matriarca? — Ele falou se aproximando de Elenys lentamente sem tirar o sorriso do rosto, parando ao lado de Isla. — Sua bela sobrinha está me convidando para o jantar.

    Isla corou levemente, mas manteve a postura. — Eu só… achei que seria importante. Estamos todos viajando juntos, afinal.

    Por um segundo Elenys travou, o rosto ficando cada vez mais vermelho.

    Ele inclinou a cabeça, como se estivesse avaliando-a por um instante. antes de olhar novamente para Elenys e falar:

    — Agradeço senhorita, mas já tenho outro compromisso esta noite.

    O sorriso dela vacilou por um segundo, mas logo ela se recompôs. — Então… posso requisitar outra coisa?

    — Depende. — Thamir cruzou os braços, claramente curioso. — O que exatamente está pensando?

    — Que seja você a nos ajudar no embarque e desembarque durante a viagem. — Isla disse rápido, como se tivesse ensaiado, mas o olhar denunciava a intenção de manter proximidade.

    Thamir deixou escapar uma risada baixa. — Quer dizer que, em meio a tantos soldados e cocheiros, você prefere que seja eu quem carrega suas malas?

    — Não quero, ofender Guardião, sei que alguém em uma posição tão Nobr.. — Isla rebateu, tentando soar confiante, mas o tom entregava sua pressa juvenil, quando foi interrompida por Thamir.

    — Muito bem. Se isso vai te dar tranquilidade, aceito a tarefa.

    Ele a encarou por mais um instante, depois deu um leve aceno com a cabeça.

    — Ótimo. — Isla respondeu depressa, quase deixando escapar um suspiro de alívio.

    Serena lançou um olhar rápido para Elenys, que manteve a expressão controlada, embora o leve apertar dos lábios e a coloração incomum do seu rosto revelasse o que pensava sobre aquela troca.

    Thamir, por sua vez, virou-se para Elenys, com um sorriso carregado de ironia, e falou apenas baixo o bastante para que só ela ouvisse:

    — Viu? Nem precisei me esforçar.

    Elenys desviou os olhos, como se não fosse com ela. Mas Thamir percebeu: por um instante, o nervosismo tomou o seu olhar, antes que retomasse a compostura de Matriarca.

    Thamir a cumprimentou com um aceno simples, enquanto se afastava. a tenda delas já estada pronta para passar a noite quando escureceu.

    A caravana havia parado cedo naquele dia. Mas o frio da noite descia rápido, e o céu já começava a ser engolido por estrelas quando os soldados finalizaram de erguer as tendas. O cheiro de fumaça e carne assada tomava conta do acampamento. A fogueira principal queimava forte, iluminando o círculo formado no centro, onde alguns dos mais próximos da comitiva já estavam reunidos.

    Kael, como de costume, ajudava a descarregar caixas, apoiando sacos pesados nos ombros como se não fossem nada. Ao mesmo tempo, falava e ria com os soldados, contando histórias curtas, deixando piadas no ar. O riso dele, claro e fácil, contagiava, fazendo até os mais tensos relaxarem. Era difícil acreditar que alguém tão sociável pudesse carregar o título de guardião.

    Thamir, em contrapartida, estava sentado numa pedra, com o corpo relaxado e os olhos semicerrados, fingindo que não prestava atenção. Ele fazia comentários ocasionais, rápidos e afiados, arrancando gargalhadas dos soldados que ainda tinham energia para ouvir.

    Pouco além deles, Lys estava na companhia da Matriarca Alexia que observava em silêncio. A rainha mantinha a postura ereta mesmo sentada, o rosto iluminado pelas chamas, sem deixar escapar mais do que expressões controladas.

    Quando Ian e Aisha retornaram do treino junto de Naira, o grupo já parecia aquecido pela atmosfera leve.

    — Eu aposto com você. — Thamir quebrou o ar de descontração com uma fala baixa, mas carregada de deboche, direcionada a Kael. — Antes do inverno, já vai estar tudo resolvido.

    Kael arqueou uma sobrancelha, disfarçando a resposta com um meio sorriso. — Você anda vendo coisa demais. Isso nunca vai acontecer. E outra você está contando com que ele vá agir como você.

    Thamir deu de ombros. — Nunca diga nunca.

    O riso contido de Kael deixou claro que havia mais naquela conversa do que parecia. Naira lançou um olhar breve aos dois, como se percebesse algo, mas não comentou.

    Foi Lys quem rompeu o fio invisível.
    — Ian. Aisha. — A voz dela soou firme, cortando o ar noturno. — Sentem-se. A refeição está pronta.

    Os dois se aproximaram, ocupando os espaços ao redor da fogueira. A chama iluminava seus rostos em tons quentes, criando sombras móveis no chão.

    Kael foi o primeiro a retomar a leveza. Ele apoiou os cotovelos nos joelhos e sorriu de lado.
    — Vocês lembram… daquela vez? da ” visita” ao Lider Dokar em que Thamir errou o pouso?

    Thamir ergueu o olhar como se tivesse levado um golpe. — Não. Não começa.

    Ian ajeitou-se na pedra onde se sentava, cruzando os braços, mas o sorriso discreto já denunciava a lembrança. — Ah, eu lembro.

    — Qual pouso? — Aisha perguntou, a curiosidade clara na voz.

    Kael inclinou-se para frente, animado. — Estávamos voltando de uma patrulha. Thamir, nosso glorioso raio, achou que não precisava calcular a aterrissagem.

    — Eu calculei! — Thamir interrompeu, gesticulando com indignação. — O telhado é que não cooperou.

    Ian sacudiu a cabeça. — Você atravessou o teto da casa do líder dos Or’Karrun.

    Kael gargalhou. — Direto na sala de jantar! A mesa quebrou, a sopa voou e o pobre homem ficou com a barba encharcada.

    — Foi acidente! — Thamir ergueu a voz, mas o riso nos cantos da boca o entregava. — Além do mais, quem mandou vocês fugirem e me deixarem lá?

    — Você foi o primeiro a sair correndo. — Ian rebateu com calma, e a fogueira refletiu no brilho divertido dos olhos dele.

    As risadas ecoaram pelo acampamento. Alguns soldados próximos, sem entender a história, riram apenas pelo tom da conversa. Até Lys, rígida como sempre, deixou escapar um sorriso breve antes de recompor a expressão.

    Kael cutucou Ian com o ombro. — E lembra quando você jurou que conseguiria domar um crithan sozinho?

    O sorriso de Ian diminuiu um pouco, mas não desapareceu. — Eu consegui.

    — Conseguiu… — Kael balançou a cabeça, tentando segurar a risada. — Preso debaixo dele, até Naira vir arrancar a fera de cima.

    — Crithan? — a Matriarca Alexia se manifestou.

    — É um tipo de Lagarto gigante do deserto, os nômades capturam os filhotes para usarem de montaria no deserto. — Thamir respondeu ainda com um sorriso. — eles capturam os filhotes porque quando adultos são fortes demais e não deixam ninguém se aproximar.

    — Não me diga que você pulou encima dele? — Dessa vez foi Lysvallis que perguntou se divertindo com o desconforto de Ian.

    — Na verdade não… — Ian falou coçando a cabeça, — Na época meu controle sobre a mana ainda não era tão bom, então quando fui ao deserto eu era o único ponto frio durante o dia.

    — Foi por isso que o Crithan começou a seguir ele — Thamir começou a gargalhar o que arrancou um riso de Naira, — seguiu ele por três dia e ele achou que tinha ficado amigo do lagarto, na hora que ele tentou subir o lagarto correu e Ian ficou pendurado embaixo sem conseguir sair.

    Naira revirou os olhos, mas o sorriso em seu rosto já havia lhe traído. — Eu disse para você não fazer.

    Thamir bateu palmas devagar, teatral. — Guardião do Norte, domador de monstros… e de ossos quebrados.

    — Eu não tinha como saber — Ian tentou se defender, mas a roda voltou a gargalhar. A cada história, a atmosfera ficava mais leve, mais íntima. Ian, ainda que contido, não conseguia evitar os sorrisos curtos. Aisha observava tudo, absorvendo cada detalhe, cada expressão — era a primeira vez que via os quatro guardiões interagirem de forma tão descontraída.

    As conversas seguiram, passando de memórias engraçadas para provocações rápidas entre eles. O fogo crepitava, lançando faíscas para o céu, como se tentasse acompanhar o ritmo das vozes.

    Foi no meio de uma dessas risadas que Aisha deixou escapar a pergunta:
    — Q-Qual de vocês é o mais forte?

    O silêncio foi imediato.

    Kael fechou o sorriso. Thamir arqueou uma sobrancelha, Ian parou de rir. Até Naira descruzou os braços, voltando a atenção para ela.

    Lys ergueu os olhos do fogo, observando.

    A pergunta de Aisha foi a mesma que a Matriarca Alexia estava se fazendo. Mas ninguém respondeu.

    Os quatro guardiões se entreolharam. Não havia desafio nos olhares, quem quebrou o silencio foi Thamir.

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