Capítulo 38 – Sussurros congelados
Conto: Li Wang
O vento soprava como facas sobre o Everest, cada rajada uma ameaça cortante, cada sopro de neve um lembrete de que a montanha não perdoa. Li Wang avançava devagar, os dedos enregelados, os joelhos tremendo, os pulmões queimando a cada respiração rarefeita. Sua roupa, inadequada, encharcada e pesada, parecia conspirar contra ela. Cada passo era uma guerra silenciosa entre o corpo e a mente.
Nathan a havia chamado, pedindo que salvasse Taylon Sytoria. Um pedido simples para qualquer outra pessoa, mas para Li Wang pesava como uma sentença. Há muito tempo, ela havia assumido para si a responsabilidade silenciosa de proteger aqueles que não podiam se defender. Por fora, mantinha a máscara da durona, sem espaço para fraqueza. Por dentro, porém, ainda era aquela garotinha assustada, tentando juntar os cacos de um mundo que há muito se desfez.
Horas se arrastaram. A neve cedia sob seus pés, estalando como se zombasse de sua fragilidade. A fome latejava, o frio queimava cada músculo. A exaustão corroía sua mente. A cada passo, lembranças a assaltavam… os rostos de quem não conseguiu salvar. Cada memória era uma punhalada silenciosa, uma acusação que ecoava entre os ventos.
O rádio preso à cintura chiava em intervalos irregulares, lançando fragmentos de voz que tentavam puxá-la de volta à realidade. Mensagens desconexas das equipes da ONU ecoavam pela montanha, mas Li Wang mal conseguia focar. Cada batida de seu coração parecia ser engolida pelo rugido ensurdecedor da neve ao seu redor, como se o mundo inteiro tivesse se reduzido à luta silenciosa entre ela e o vento cortante.
Quando a oitava hora chegou, Li Wang mal conseguia distinguir o que era real. Uma presença surgiu diante dela, e por um instante seu coração pulou. Algo em seu instinto dizia que aquilo não podia ser real, mas a mente cansada tentava justificar, argumentando que era apenas sua própria fraqueza pregando peças, explorando medos antigos. Ainda assim, ela hesitou, sem saber se avançava ou recuava, porque, mesmo incerta, a sensação de ver alguém do passado era impossível de ignorar.
Encharcado de sangue, peito perfurado, olhos semicerrados. A mesma imagem que assombrava seus sonhos, o mesmo julgamento silencioso que carregava desde a infância. Seu corpo congelou, e a fachada durona tremeu por dentro.
— …Andrew? — murmurou, a voz quase soterrada pelo vento.
Ele não respondeu. Apenas a olhava, com os olhos carregados de dor, decepção e algo que parecia julgamento. Ela recuou, sentindo o mundo girar, como se cada lembrança dolorosa e cada culpa acumulada apertassem seu peito. Cada passo dele parecia martelar seu coração, cada palavra imaginária reverberava como um eco do passado que ela tanto queria enterrar.
— Você me deixou morrer. — A voz atravessava sua mente como trovão.
— Cala a boca. — respondeu ela, tentando se manter firme. — Você não é ele. Não é o Andrew.
Mas a ele avançava, implacável, lembrando Li Wang de cada falha, de cada promessa não cumprida, de cada vida perdida. Seu corpo não deveria se mover, estava ferido demais, morto demais. Mas ainda assim ele andava. Um passo. Depois outro. O sangue escorria de seu queixo, pingando na neve com um som quase audível em meio ao rugido brutal da tempestade.
— Você me abandonou. Fugiu. — disse ele, os olhos totalmente abertos, negros como breu. — E agora está fazendo de novo…
Li Wang cambaleou para o lado, sentindo o mundo girar. A mente gritava que era Azazel, que tudo aquilo não passava de uma ilusão, explorando suas fraquezas. Mas o coração… o coração não entendia. Sangrava. A culpa, o medo, a responsabilidade esmagaram-na, e as pernas fraquejaram.
— Você não é real! — gritou, cravando os dedos na neve como se pudesse se ancorar ao presente.
Andrew sorriu. Morto. Cruel. Torto. Zombeteiro.
— E mesmo assim… olha como você sofre por mim. — Ele se abaixou, a poucos passos dela. — Vai me deixar morrer outra vez?
Li Wang cerrou os dentes. Sentia o peso da neve, do frio… e da memória. Ainda assim, resistiu.
Andrew inclinou a cabeça, com a voz baixa, sem ódio, apenas carregada de tristeza:
— E o Henry…?
— Onde está meu filho, Li Wang…?
— Você me prometeu que cuidaria dele…
O nome atravessou seu peito como uma flecha.
Henry.
As lágrimas ameaçaram romper. — Eu… estou tentando… protegê-lo… — murmurou, quase sem voz.
Andrew permaneceu silencioso. Implacável.
— Você falhou comigo… Vai falhar com ele também?
— Cala a boca! Cala a boca! — gritou, tapando os ouvidos, tentando afastar a dor.
— Onde ele está agora, Li Wang? — perguntou, a voz baixa e serena, mas cortante.
Então ela o viu.
Atrás de Andrew, como se emergisse das sombras de uma lembrança distorcida, Henry estava ali. Jogando na neve. Chorando. O corpo pequeno tremendo, os braços cruzados no peito, tentando se aquecer, mas o casaco era insuficiente. O rosto pálido, lábios azulados, sangue escorrendo da testa até a bochecha, misturando-se à neve. Olhos vermelhos, desesperados, buscando alguém.
— Ti-a…? — balbuciou, a voz trêmula e arrastada. — Dói… friu… cadê… você…?
Li Wang congelou.
— Não… — sussurrou, os olhos arregalados, o coração martelando. — Isso… não é real.
Mas parecia. Cada detalhe. Cada som. Cada choro sufocado. Era real demais.
Ela deu um passo, olhos marejando.
— Henry… — a voz quebrou. — Eu… estou aqui…
Ela correu até ele, tirou o casaco que usava e envolveu o pequeno corpo com sua roupa, tremendo, tentando transmitir calor com cada gesto desesperado. Restando apenas de sutiã e calças, abraçou-o com força, tentando aquecer cada pedaço de pele exposta.
O frio era brutal, mas diferente para cada um. Para Henry, minúsculo e indefeso, era cortante e paralisante, penetrando pelos ossos e tornando cada suspiro doloroso. Seu corpo tremia violentamente, os lábios azulados, a testa suada e coberta de sangue, cada pequeno gesto um esforço para se manter consciente.
Para Li Wang, o frio queimava de outra forma — pesado, implacável, esmagando seus músculos exaustos, tornando o movimento doloroso e sua pele dolorosamente sensível. Mas o maior peso vinha do coração, que sangrava por cada lembrança, cada culpa, cada medo de perder Henry também.
Andrew, agora sombrio, olhos escuros e sem vida, a observava.
— Você prometeu. — disse, firme. — Prometeu que cuidaria dele.
Henry murmurou, fraco:
— Tia… dói…
— Você é responsável pela morte dele. — disse Andrew, encarando o próprio filho.
Li Wang ergueu os olhos, paralisada. Henry estava em seus braços, inerte. Morto.
Ela quebrou.
O mundo parecia congelar ao redor. O vento cortante zunia em seus ouvidos, quase zombando dela.
— Meu amor… Henry… — murmurou, soluçando, sacudindo o corpo pequeno em busca de uma resposta.
As mãos ainda cravadas na neve, ela tremia, incapaz de conter o choro. As roupas que deveriam aquecer Henry estavam espalhadas pelo chão, inúteis diante do frio e da dor.
Quando finalmente levantou os olhos, percebeu…
Não havia ninguém.
Nem Andrew.
Nem Henry.
Nem vozes.
Só o vento cortando a montanha.
E sua respiração ofegante. Sozinha.
Então, uma risada baixa ecoou em sua mente.
Azazel.
A dúvida. A culpa. A cicatriz que nunca fechou.
E ele sabia bem disso.
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