Capítulo 9 | Fúria Desacorrentada (2)
Ele começou a seguir o rastro, mas com um novo propósito. A lógica de caçador, que aprendera na dor e na fome, clareou em sua mente. Se os rastros na floresta sempre se afastavam de Pella, este, dentro da cidade, deveria levar de volta à fonte.
Passaram por praças vazias e vielas silenciosas, o brilho verde nos olhos de Teseu guiando-os com uma certeza assustadora. Finalmente, o rastro terminou.
Ele parou, a luz em seus olhos se apagando. Estavam diante de uma casa modesta, de dois andares, com um pequeno e bem cuidado jardim de ervas na frente. Estava trancada, silenciosa, indistinguível de qualquer outra na rua. Mas para Teseu, o ar ao redor dela era pesado, o final do rastro pulsando com uma energia doentia.
Ele pensou que sua busca não dera em nada, quando ouviu ao longe o som da turba retornando à cidade, as vozes ainda distantes, mas se aproximando. Sem tempo e sem ter para onde fugir, ele tomou uma decisão.
— Temos que entrar.
Ignorando o olhar alarmado de Plutarco, ele forçou a fechadura da porta com a ponta de sua xiphos. Com um estalo seco, a porta se abriu, revelando a escuridão silenciosa do casebre do Curandeiro.
Era impecavelmente limpa, o ar pesado com o cheiro de dezenas de ervas secas. Teseu e Plutarco moveram-se em silêncio pelo cômodo principal, passando por prateleiras ordenadas de potes de cerâmica e almofarizes de pedra. Tudo parecia normal, exceto pelo silêncio absoluto e por um odor químico sutil que se escondia sob o perfume da lavanda.
Foi Plutarco quem encontrou a porta do porão, escondida atrás de uma pesada cortina de lã. Ao abri-la, uma lufada de ar frio e úmido subiu, trazendo consigo o cheiro profano de forma mais intensa.
— Teseu… — ele chamou num sussurro que denunciava sua vontade de estar bem longe dali.
Desceram a escadaria de pedra em uma escuridão quase total, guiados apenas por um brilho verde e doentio que vinha de baixo. No último degrau, Teseu se chocou contra Plutarco que havia parado subitamente.
Estava prestes a reclamar da parada brusca, quando viu à frente a razão.
O horror gelou o sangue em suas veias lançando arrepios dos membros à nuca. Era um laboratório de pesadelos, um santuário de blasfêmia.
Eles viram as criações falhas, os órgãos em frascos. Viram o homem pálido suspenso no ar pendurado e perfurado em diversos pontos do corpo por cabos de cobre cheios de espinhos que pareciam conter seu sangue.
Era horrível, mas foi a visão em um canto escuro que fez o coração de Teseu parar. Dentro de uma jaula de ferro, encolhida em posição fetal, estava a pequena Althea. Ela estava acordada, os olhos arregalados de um terror que a deixara muda, lágrimas silenciosas escorrendo por seu rosto sujo.
— Althea! — Teseu sussurrou, correndo até a jaula.

Ele esbarrou em algo no chão que estava coberto por uma lona. Plutarco vira ali o que parecia ser uma garra enorme vazando por baixo dos panos, mas não deu atenção ao tempo e acompanhou o jovem herói.
A fechadura era grossa, de ferro. Com um grunhido de esforço, ele enfiou a ponta de sua xiphos na fenda e, usando a alavanca, forçou o metal.
CLANG!
O som do mecanismo se partindo ecoou ruidosamente pela câmara silenciosa. O barulho pareceu despertar algo. Da figura suspensa no centro da sala, veio um gemido baixo e doloroso. O homem pendurado ergueu a cabeça lentamente. Seus olhos, injetados de sangue e confusão, focaram em Teseu. Um rosnado fraco, mas cheio de um ódio profundo e visceral, escapou de seus lábios.
— Você!
Teseu congelou, encarando o prisioneiro. Ele não o conhecia. Por que aquele homem o olhava como se fosse seu pior inimigo?
Ignorando o mistério por ora, ele abriu a porta da jaula e ajudou a trêmula Althea a sair. Imediatamente, ele se virou para o homem.
— O que faz aqui? — a voz do homem era um murmúrio cansado e pesaroso. — Como me encontrou?
Estava alucinando?
— Eu vou te tirar daí — Teseu respondeu, ignorando as perguntas.
Ele tentou quebrar as amarras de cobre que perfuravam e prendiam o homem, mas eram fortes demais. Sua espada era inútil contra elas. O desespero começou a tomar conta. Ao longe, eles ouviram o som da marcha se aproximando. Um vozerio grave e irritadiço.
— Teseu, temos que ir! Eles estão voltando! — Plutarco alertou, o pânico em sua voz.
— Ele vai voltar! Precisamos correr e avisar a todos! — Althea choramingou, puxando a túnica de Teseu.
Mas Teseu não podia deixá-lo. Com um grito de fúria e determinação, ele agarrou as vigas de cobre com as mãos nuas e puxou com toda a sua força. O metal não cedeu, mas suas pontas afiadas rasgaram a pele de suas palmas. Ele puxou de novo, e de novo, a dor uma explosão branca em sua mente. O sangue jorrou de seus dedos, escorrendo pelos cabos de cobre, pingando no chão de pedra e se misturando com os líquidos estranhos que vazavam dos experimentos destruídos.
— Teseu, temos que ir, agora! — Plutarco gritou.
CLACK
Os mecanismos quebraram todos ao mesmo tempo, libertando o prisioneiro de suas amarras quando ele caiu sobre os ombros de Teseu. O rapaz suspirou, o corpo amoleceu pelo esforço.
Foi então que uma outra voz, calma e terrivelmente familiar, respondeu das escadas.
— Tarde demais.
Eles se viraram assustados. Passos lentos desciam cada degrau com um som do choque de suas sandálias. Quando apontou no último degrau, todos puderam ver a aparência do velho careca e raquítico. Tinha uma tocha em mãos.
Ele olhou para o prisioneiro quase livre, para Teseu com as mãos ensanguentadas, e sua calma se estilhaçou.
— Vocês estragaram tudo!
Movido por uma raiva pura, Teseu avançou, pronto para agarrar o monstro que os enganara.
— Fique longe! — gritou o Curandeiro.
Para bloquear o caminho e garantir sua fuga, ele empurrou com toda a força uma enorme prateleira de madeira ao lado da escada. A estrutura, carregada com frascos, ferramentas e restos de quimeras, desabou com um estrondo ensurdecedor, bloqueando completamente o corredor estreito. Teseu parou bruscamente, a poeira e os estilhaços de vidro o forçando a recuar. Gotas de seu sangue, pingadas de suas mãos feridas, jaziam agora sob a barreira de destroços.
Do outro lado, a salvo, o Curandeiro riu, um som maníaco que ecoou pelo porão.
— Não está perfeito ainda, mas terá que servir!
Ele sacou um frasco de sua túnica, um líquido escuro e pulsante, e o arremessou por cima da prateleira. O vidro se estilhaçou no chão de pedra.
A mistura borbulhante se espalhou, tocando as partes de monstros espalhadas e, crucialmente, o sangue de Teseu que manchava o chão sob a prateleira. A reação foi instantânea e profana. O líquido se transformou. Engrossou, escureceu, tornando-se uma substância negra e oleosa que começou a tremer e a pulsar como uma criatura viva, um simbionte nascido da fúria e da pureza.
— Sim… SIM! — o Curandeiro vibrou, os olhos arregalados em um êxtase triunfante ao ver o resultado inesperado e glorioso. Com uma gargalhada que ecoou escada acima, ele se virou e fugiu.
A massa negra se expandiu. Tentáculos de simbionte se esticaram e tocaram as partes de quimeras no chão. Uma carcaça do urso, os restos das outras criaturas… tudo começou a tremer em espasmos violentos. Os corpos inchavam, ossos estalavam e se reformavam a uma velocidade antinatural. O porão inteiro começou a tremer, as paredes de pedra rachando como se um terremoto tivesse nascido em suas entranhas.
Teseu viu a reação em cadeia, o colapso iminente. Ele olhou para Plutarco, Althea e o prisioneiro, encolhidos e aterrorizados no fundo do porão. Não havia tempo.
Com um grito que era mais esforço do que som, ele bateu as mãos no chão de pedra. O chão rachou sob seu toque, e um casulo de raízes grossas e antigas irrompeu da terra, crescendo e se tecendo em segundos ao redor dos outros três, envolvendo-os em uma esfera protetora.

O casulo se fechou no exato momento em que a energia caótica atingiu seu pico.
Deixado do lado de fora, Teseu só teve tempo de erguer os braços, um grito de desafio e dor morrendo em sua garganta enquanto a onda de poder profano o engolia.
Na rua silenciosa, a casa do Curandeiro tremeu em suas fundações. Um brilho doentio, verde e negro, vazou pelas janelas e pelas frestas das paredes. Houve um instante de silêncio absoluto, como se o mundo prendesse a respiração.
Então, a terra urrou.
Uma explosão de pura energia profana irrompeu do chão, violentamente estripando a casa de dentro para fora. Madeira, pedra e telhas voaram pelos ares em meio a uma nuvem de fumaça escura e poeira. Onde antes havia um lar modesto, agora restava apenas uma cratera fumegante.
Lentamente, do meio dos escombros e da névoa acre, silhuetas começaram a se erguer. Eram altas, disformes, movendo-se com uma graça antinatural. Um exército de pesadelos nascido do sangue de um herói e da loucura de um monstro.
À frente deles, a mais aterrorizante de todas: uma monstruosidade colossal com duas cabeças — uma de urso e uma de lobo, ambas coroadas com chifres de veado retorcidos — e serpentes se contorcendo em seu corpo. Sob a luz pálida da lua, as quimeras recém-nascidas olharam para a cidade de Pella, e suas feições, diferente do que planejava seu criador, não pareciam nada com as de protetores.

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