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    O acampamento já se aquietava. A fogueira principal ainda queimava forte, mas a maioria dos soldados havia se recolhido às tendas. Restava apenas o crepitar do fogo e o farfalhar distante das árvores, embalando a noite fria.

    Kael permanecia sentado sobre um tronco próximo, afiando a lâmina curta que carregava sempre consigo. A luz laranja refletia em seu rosto, destacando o olhar distraído e o ar relaxado que ele parecia cultivar mesmo quando os ombros ainda guardavam a rigidez de quem nunca baixa a guarda.

    Naira se aproximou em silêncio, as botas quase sem som sobre a grama. Parou diante dele, os braços cruzados, e arqueou uma sobrancelha.

    — Você não mudou nada. — disse, a voz firme, mas baixa o suficiente para não atrair atenção.

    Kael levantou o olhar devagar, um meio sorriso surgindo. — Acho que vou levar isso como um elogio

    Ela não respondeu de imediato. Apenas se sentou a certa distância, o olhar perdido nas chamas. O silêncio entre eles parecia ter peso próprio, feito de lembranças.

    — O que você tem feito todo esse tempo? — Ela perguntou enfim. — Desde a última vez que nos vimos.

    Kael parou de afiar a lâmina. O sorriso dele suavizou, quase nostálgico. — Abri uma escola.

    Naira virou o rosto para ele, surpresa visível. — Escola?

    — Orfanato, se quiser ser precisa. — Ele apoiou os cotovelos nos joelhos. — No leste de Cervalhion. Vinte crianças e doze jovens. Meninos e meninas sem ninguém. Agora… são minhas responsabilidades.

    Naira piscou algumas vezes, tentando assimilar a ideia. — Você… parou. Ficou num lugar.

    — Por um tempo. — Kael suspirou, olhando para as chamas. — Eles precisavam de alguém. E eu… precisava de um motivo para não continuar vagando sem rumo.

    O silêncio voltou, mas dessa vez não era desconfortável. Era cheio de algo que ela não sabia nomear.

    — E você? — Kael devolveu, virando o olhar. — Onde esteve?

    Naira respirou fundo. — No sul. Elandor.

    O nome da cidade pareceu pesar no ar.

    — Os Rumbra estão sendo cada vez mais caçados. — Ela continuou. — Alguns magos da cidade de Elandor aprenderam a extrair a seiva deles… e agora tratam como recurso. Soldados os caçam, magos os prendem. E eu… cuido dos que restam.

    Kael franziu o cenho. — Você ainda luta por eles.

    — Se eu não lutar, ninguém mais vai. — respondeu com firmeza. — A seiva deles pode curar quase qualquer ferimento. E por isso, os tratam como presas. Como se não fossem vivos.

    Kael baixou o olhar. — E quantos já perdeu?

    Naira hesitou, o maxilar travado. — Muitos. Mas não todos.

    O silêncio que veio depois não precisava de palavras. Ambos sabiam o peso de carregar um fardo que ninguém mais reconhecia.

    Por fim, Kael se levantou. Guardou a lâmina, ajeitou o manto sobre os ombros.

    — Eu vou descansar. — disse, simples.

    Naira ergueu o olhar para ele, como se quisesse dizer algo mais. Mas as palavras morreram antes de sair.

    Kael hesitou por um instante, depois inclinou-se apenas o suficiente para que a voz saísse mais baixa.

    — Foi bom ver você, Naira.

    E partiu em direção à tenda, deixando-a sozinha diante do fogo.

    Naira permaneceu ali, imóvel, até o som dos passos desaparecer. O rosto permanecia firme, mas os olhos… esses guardavam um brilho que o fogo não explicava.


    A tenda da Rainha já estava quase pronta. As tapeçarias haviam sido penduradas para isolar o frio, e o espaço interno exalava o cheiro suave de ervas queimadas em um incensário. Ian ajudava a alinhar as mesas baixas e os suportes de armas, ajustando as cordas que mantinham a estrutura firme.

    Lys o observava em silêncio por alguns instantes, antes de finalmente falar:
    — Ian. — Sua voz quebrou a monotonia suave da arrumação. — Na fogueira… quando Thamir falou da “Invasão”. O que exatamente foi aquilo?

    Ian parou por um instante, o pano que segurava ainda entre as mãos. Ele demorou a responder, os olhos fixos na madeira da estrutura.

    — Não se preocupe com isso, foi a muito tempo — ele falou firmando uma bancada no chão.

    — Eu não me preocuparia tanto se entendesse — ela respondeu se sentando em um amontoado de almofadas. demorou um pouco, mas ele enfim falou.


    — Foi quando o céu se rompeu. — disse enfim, baixo. — Portais instáveis se abriram, e alguns… seres atravessaram.

    — Seres? — Lys franziu o cenho. — Sempre ouvi apenas sobre hordas de bestas e criaturas.

    Ele assentiu levemente.
    — É mais fácil contar a história assim. — suspirou. — Mas de forma resumida, foi uma guerra terrível, conseguimos expulsar, mas não sem um custo.

    Os olhos de Lys se estreitaram, a mente trabalhando rápido.
    — Então vocês…

    Ian a interrompeu com um olhar firme.
    — Não procure respostas que não está pronta para ouvir. — a voz dele não foi dura, mas tinha o peso de quem carregava segredos demais. — O que precisa saber é que lutamos contra o caos que atravessou. Lutamos para impedir que esse mundo fosse consumido.

    O silêncio caiu entre eles, denso. Lys baixou o olhar para as mãos, refletindo.
    — Invasão, então… não foi apenas uma guerra.

    — Não. — Ian respondeu, voltando a ajeitar uma das mesas. — Foi uma luta desesperada pela sobrevivência.

    Ela queria perguntar mais, mas conteve-se. Em vez disso, respirou fundo e mudou de assunto.
    — E você? Vai descansar depois?

    Ian riu curto, sem humor.
    — Descansar? hoje estou na vigia noturna, mas amanhã eu vejo, não trouxe tenda, nem colchão.

    Lys ergueu os olhos, surpresa.
    — Como assim?

    — Vim com você. — Ele deu de ombros, simples. — Não pensei nesse detalhe. Hoje vou ficar de guarda. Amanhã… veremos.

    Ian ajeitou a mesa de madeira, os movimentos precisos, mas o silêncio ao redor parecia mais denso do que o normal. Lys observava cada gesto, as mãos unidas sobre o colo.

    — Ian. — A voz dela saiu mais baixa do que gostaria. — Você realmente não tem uma tenda?

    Ele ergueu os olhos, sustentando o olhar dela sem pressa. — Não pensei nisso. — disse, direto. — Vim com você.

    — E… pretende passar quinze dias apenas de vigia? — a sobrancelha dela arqueou, um traço de incredulidade escapando.

    — Não, posso moldar um abrigo temporário.

    — De Gelo?

    — Sim

    ….

    — Já fiz pior. — Ele respondeu, a voz calma, mas firme. — Não é um problema.

    Lys respirou fundo. — Talvez não seja para você. Mas para mim é. — Ela tentou endireitar o corpo, quase como se as almofadas agora fossem o seu trono. — Não posso deixar que um Guardião, representando Altheria, fique dormindo no chão feito um soldado comum.

    Ian inclinou levemente a cabeça. — Seria tão ruim assim, Majestade?

    Ela o encarou, séria. — Seria uma vergonha. Para mim. — Depois de um instante de silêncio, completou:

    — E talvez para você também, ainda que não admita.

    Por alguns segundos, ele não respondeu. Apenas a fitou, até que um canto de sorriso quase imperceptível surgiu.

    — Então você prefere que eu compartilhe sua tenda?

    A pergunta, feita de forma tão simples, fez Lys engolir seco. O rosto dela não se moveu, mas os dedos se apertaram no tecido.

    — Não brinque com isso. — disse, num tom mais frio do que pretendia.

    — Quem disse que estou? — Ian rebateu, sem erguer a voz. — Você me trouxe até aqui. Agora, tem que lidar com as consequências.

    O silêncio que se seguiu foi sufocante. O vento noturno balançava a lona da tenda, o incensário lançava um cheiro leve de ervas, e nenhum dos dois desviava o olhar. Até que Lys respirou fundo quebrando o silencio.

    — Você brinca demais.

    — Jurei que tinha te convencido dessa vez — Ian falou rindo de forma suave.

    Por fim, Lys retomou a compostura.

    — Amanhã vou resolver isso. — Declarou, firme, como quem emite um decreto. — Não vou permitir que um Guardião durma ao relento. E Ian não se canse demais… amanha entraremos na zona de plantio de Cervalhion, onde o relato de ataques é maior.

    Ian apenas assentiu, voltando a ajustar as cordas da estrutura. — Como quiser.

    Lys o seguiu com os olhos enquanto ele saia da tenda, e pela primeira vez naquela noite, ela se pegou lembrando da cena de um certo invasor…

    A rainha o encarou por um momento, avaliando as implicações daquilo. O dilema ficou suspenso no ar, sem resposta imediata. Conforme ela pesava e percebia que a incumbida pela organização dos itens necessários da sua carruagem, era Thalien… e essa situação tinha a assinatura da sua irmã.

    Do lado de fora, o vento noturno balançava a lona da tenda, como se lembrasse os dois de que a jornada estava apenas começando.

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