Capítulo 54 - "Peso da Espera"
O sol descia devagar, tingindo o céu de laranja e púrpura, quando Daren fincou a enxada no solo uma última vez. O campo estava limpo de ervas daninhas, mas a sensação era de que nada disso importaria se as noites continuassem trazendo pegadas estranhas ao redor das casas. Ele se agachou para arrancar mais um punhado de raízes secas e, quando ouviu um estralo vindo das arvores.
Curiosamente nem mesmo os cantos dos pássaros que retornavam para os seus ninhos puderam ser ouvidos por Daren, talvez porque as batidas do seu coração ressoavam como tambores surdos nos seus ouvidos, ao se erguer, respirou fundo erguendo sua enxada a sua frente, o nervosismo só aumentava, quando uma pequena raposa passou correndo entre as arvores, levando junto o nervosismo.
— Acho que estou ficando paranoico… — ele murmurou sentindo a tensão diminuir.
O vento cortante que descia das montanhas trazia mais do que o cheiro de terra úmida e folhas secas — ele parecia carregar a própria presença do medo, aquela sombra silenciosa que há semanas pairava sobre a aldeia como uma praga invisível. As noites já não ofereciam consolo. E cada pôr do sol era acompanhado por um único pensamento: e se esta for a última noite em paz?
Daren apoiou a enxada no ombro com um suspiro cansado. A fina camada de geada sob seus pés estalava a cada passo, como se o inverno, em seu suspiro final, quisesse se despedir. O campo vazio se estendia ao redor, salpicado por fiapos de névoa, e por um momento ele se permitiu distrair, observando os talos secos e os corvos silenciosos sobrevoando os galhos nus.
O silêncio foi rompido por um grito.
— TIO DAREN!
Ele mal teve tempo de virar quando uma pequena figura de trança solta surgiu correndo entre as fileiras do campo. Olivia.
Com um riso leve, ele se agachou e a levantou no colo girando-a no ar, como fazia quando ela ainda era menor.
— Oi, Olivia… tudo bem, pequena? Onde está seu papai?
— O papai pediu pra te chamar. Eles estão lá no tio Ralph — disse ela, ofegante, com um sorriso tão largo que por um instante o mundo pareceu menos pesado.
Daren manteve o sorriso, mas seus olhos endureceram por um instante. Henric ia ouvir. Deixar Olivia sozinha pelos campos, ainda mais com o risco de bestas? Era o tipo de coisa que não podia acontecer. Ele suspirou fundo, contendo a bronca, e colocou a menina sentada em seus ombros. As mãozinhas dela se enroscaram em seu cabelo como se procurassem segurança, mas a voz era leve e cheia de entusiasmo enquanto contava sobre uma joaninha azul, um pássaro de três penas coloridas e um gato estranho que a seguira pela trilha.
Aquilo trouxe um alívio sutil à tensão constante que pesava sobre ele. Era bom lembrar que ainda existia infância naquele lugar. Ainda existia algo a proteger.
À medida que se aproximavam do vilarejo, o movimento aumentava. Famílias antes espalhadas pelas terras começavam a se reunir no centro, buscando abrigo atrás das cercas frágeis de madeira e pedra. Os guardas circulavam em número insuficiente, as lanças nas costas, com olhares tensos. Eram vinte guardas para quase quatrocentas pessoas. Sabiam que não bastariam. Todos sabiam.
O vilarejo em si começava a mergulhar no silêncio das vésperas. As chaminés soltavam fios de fumaça preguiçosos, o cheiro de pão recém-assado e madeira queimada tentava trazer normalidade mas o ar parecia preso, denso. Cada porta fechada soava como um aviso. Trancas eram reforçadas. Velas acesas mais cedo do que o costume.
Na esquina da praça, Daren viu seis figuras conhecidas reunidas em frente à taverna. Não era hora de cerveja, e ninguém ali ria. Os homens estavam calados, com olhares atentos demais e mãos firmes demais nas ferramentas que carregavam. Ferramentas… ou armas improvisadas. Ralph, o falastrão, segurava uma foice. Henric tinha uma pá. Torren e Luan, martelos. Até Soren, velho demais para estar de pé sem sua bengala, segurava um bastão grosso de madeira com uma faca amarrada na ponta.
— Daren! — Ralph ergueu a foice em saudação. — Vai trazer a sua também?
Daren ergueu a enxada com um meio sorriso sem graça. — Parece que não sobrou escolha.
— PAPAI! — Olivia se animou, tentando pular para o colo do pai. Henric a pegou no ar, rindo baixo.
— Estou vendo, pequena.
— Só não mande ela de novo sozinha pelos campos — disse Daren, a voz ainda leve, mas o olhar firme. Deu um soco de leve no ombro do cunhado. — Se algo tivesse acontecido, você virava adubo nesta primavera.
As risadas vieram, abafadas, quase envergonhadas. Risos de quem precisava fingir que tudo ainda podia ser normal.
— Ouvi barulhos ontem — disse Henric, limpando a garganta. — Lá pelo riacho. Pegadas… maiores do que qualquer lobo que eu já vi.
— Aqui também — Luan acrescentou. — Meus cães rosnaram a noite toda, e não era por causa de raposa.
O silêncio caiu como uma neblina espessa. Ninguém dizia a palavra, mas todos a pensavam: bestas.
— O rei não vai nos deixar sem proteção — disse Ralph, tentando soar firme. — Já enviamos o pedido. A patrulha deve estar a caminho. Só é questão de tempo.
Soren cuspiu no chão, o rosto sulcado de amargura. — Tempo é o que a gente não tem, jovem.
O grupo calou. As sombras das casas já se estendiam como braços longos e frios sobre o chão. O crepúsculo parecia se arrastar, lento e ameaçador.
Daren respirou fundo, tentando agarrar qualquer resquício de fé.
— Ele é justo. Sempre foi. Deve haver um motivo pra demora.
Ninguém respondeu. Nenhum aceno. Nenhuma negação. O silêncio falou por todos. Era mais fácil se calar do que enfrentar o peso da dúvida.
Aos poucos, o grupo começou a se dispersar. Cada um voltando com sua ferramenta em punho — não como instrumento de trabalho, mas como arma. Era o que tinham. Era o que eram agora: camponeses com medo, forçados a lutar como soldados.
Daren seguiu o caminho até sua cabana. As pedras gastas que formavam as paredes pareciam frágeis demais diante do que podia estar rondando nas sombras. Encostou a enxada na lateral da casa e olhou para o céu, onde as primeiras estrelas já brilhavam, frias e distantes.
Fechou os olhos por um instante, murmurando uma prece breve, quase silenciosa.
— Que nada aconteça… antes que os soldados cheguem.
Empurrou a porta. O frio ficou do lado de fora. Mas o medo… esse entrou com ele.
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