Capítulo 55 - "Carniçal"
O sol mal havia subido quando Daren acordou. O teto baixo de madeira rangia sob o vento da manhã, e a luz pálida atravessava as frestas, tingindo o interior da cabana de cinza. O ar estava úmido, carregado daquele frio teimoso que ainda não cedia à primavera. Ele se ergueu devagar do colchão de palha, espreguiçando-se até ouvir as juntas estalarem.
A esposa ainda dormia, enrolada nos panos mais grossos que possuíam, os cabelos espalhados pelo travesseiro improvisado. Os dois filhos pequenos estavam deitados perto dela, encolhidos como filhotes, respirando fundo no calor compartilhado. Daren os observou por um instante, e o peito apertou com uma mistura de orgulho e medo. Orgulho por tê-los mantido vivos durante o inverno mais cruel que lembrava. Medo porque sabia que, se os rumores fossem verdadeiros, talvez nenhum deles sobrevivesse à próxima estação sem ajuda.
Ele saiu lentamente, tentando não acordá-los. A mesa tosca no canto da cabana ainda tinha restos de pão duro da noite anterior. Partiu um pedaço do pão velho com esforço, as bordas já estavam como pedra e mastigou devagar, sentado no banco. O gosto era amargo, mas era o que havia. o pão mais macio ele deixou para os pequenos.
Enquanto mastigava, pensava no campo. O inverno se despedia, e era hora de limpar a terra. As ervas daninhas cresciam com força, e se não arrancasse todas antes das chuvas, a plantação de primavera estaria perdida. por isso ele já havia iniciado a limpeza antes mesmo do fim do inverno.
O pão ainda estava entre os dentes quando os gritos cortaram o ar.
Daren congelou. O pedaço de pão caiu dos dedos e rolou pela mesa. As vozes estavam distantes, mas logo ficaram mais próximas. Não eram risadas, nem discussões de taverna. Eram gritos de pavor. De desespero. O som de algo se despedaçando.
— Daren! — alguém berrou do lado de fora, a urgência quase ferindo os ouvidos.
Ele levantou-se num salto, o coração já disparado. Abriu a porta com violência e viu dois homens correndo pela rua estreita: os irmãos Torren e Luan, cobertos de terra e sangue.
— É o Soren! — Luan gritou, a voz falhando. — Ele precisa de ajuda!
Daren não pensou. Agarrou a enxada encostada na parede e correu atrás deles. se virou para a sua esposa que acordou com os gritos.
— Acorde as crianças e vão para perto dos guardas. — Foi tudo o que ele disse antes de sair pela porta.
As botas batiam no chão de terra endurecida, o coração martelava tão alto que abafava o resto. O ar frio queimava nos pulmões, cada passo parecia mais pesado que o anterior.
Quando viraram a esquina, Daren parou de repente. O mundo simplesmente estancou.
No meio da rua, o velho Soren tentava se proteger atrás de uma carroça tombada. O homem, que sempre fora visto como um ancião teimoso e sábio, agora tremia como uma criança. Segurava um cajado fino, inútil diante do que estava à sua frente.
E à frente dele uma besta tentava forçar passagem pela carroça.
Tinha corpo de lobo, mas era muito maior. Passava de um metro e vinte nas quatro patas, e quando erguia a cabeça parecia uma sombra contra a luz cinzenta da manhã. A pele estava despida de pelos em grandes áreas, revelando carne rosada e veias negras que pulsavam como raízes doentes. A boca era larga demais, grotesca, e cada estalo das mandíbulas tilintava como ferro batendo contra ferro.
— Um… Carniceiro… — Daren sussurrou, sentindo a garganta fechar. Já tinha visto bestas, e até matado algumas sim, mas nada assim. Nada tão monstruoso.
O grito de Soren o puxou de volta à realidade. O velho brandiu o cajado numa tentativa desesperada de afastar a criatura. Mas antes que Daren conseguisse correr, um estrondo sacudiu o chão.
A casa atrás de Soren explodiu em estilhaços. Pedaços de madeira voaram como lanças afiadas.
Daren ergueu o braço para proteger o rosto. Farpas cortaram sua pele, e a dor ardente o fez gritar. Tossindo pela poeira, abriu os olhos a tempo de ver duas novas bestas emergirem dos destroços. Suas presas ainda pingavam sangue fresco.
Era a casa de Henric.
O chão fugiu sob os pés de Daren. Olivia…. Henric…
— Não… não… — ele balbuciava, como se a própria alma estivesse tentando escapar. — Olivia… Henric…
Foi quando uma figura surgiu de um beco lateral.
Henric. Vivo. O rosto estava pálido, mas os olhos brilhavam em fúria. Ele empunhava uma foice de lâmina gasta suja de sangue.
— Estamos bem! — ele gritou, como se quisesse arrancar Daren da beira do abismo. — Agora não pensa nisso! Se não lutarmos, vamos todos morrer!
Torren e Luan avançaram aos berros, tentando distrair uma das bestas. Henric correu contra a outra. A foice brilhou por um instante antes de abrir um corte profundo no flanco da criatura. O urro que se seguiu foi ensurdecedor, um rugido tão forte que fez as janelas tremerem. A besta recuou, surpresa.
Mas Soren…
Quando Daren olhou novamente, não restava nada do velho.
Nada além de uma mão caída sob a carroça.
Seu estômago revirou. A bile subiu à garganta, e ele quase deixou a enxada cair. Mas passos pesados ecoaram no fim da rua, arrancando-o do transe.
Cinco silhuetas emergiram da névoa matinal. Eram maiores que as primeiras, olhos vermelhos brilhando como brasas. Avançavam devagar, como caçadores certos de que a presa não tinha para onde correr.
O cerco estava fechado.
Daren sentiu as pernas cederem. O suor frio escorria, a enxada parecia pesar uma tonelada. Sua visão turvou. Tinha certeza: era o fim.
Mas então… algo mudou.
O vento soprou forte, levantando poeira e cinzas. Um arrepio percorreu sua pele, não de medo, mas de algo estranho, profundo. A temperatura despencou, cortando o ar como lâmina. Até as bestas hesitaram, rosnando, recuando um passo como se sentissem a mesma presença.
O frio se espalhava pela rua, como se o próprio inverno tivesse retornado.
Daren ofegava, o coração disparado, sem saber se aquilo era salvação ou apenas o prenúncio de uma morte ainda pior.
E pela primeira vez desde que o ataque começou, ele ousou erguer os olhos.
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