Índice de Capítulo

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    O primeiro tiro não acertou ninguém importante; só arrancou o sino torto do posto de pedágio e fez o bronze mal forjado quicar até o cais. O segundo cumpriu o que o primeiro prometera: abriu a guarita numa lapada só, levando meia dúzia de guardas que, com toda certeza, não esperavam trabalhar de verdade hoje.

    Geralmente, ataques chegam berrando: gritos, tiros, risadas bêbadas. Porém ali, antes da poeira, do sal e dos pedaços de construção começarem a voar, houve… música.

    “Ó, guerreiros, sintam o ar, tão doce e amargo, 

    Um perfume de ferro, fumaça e trago. 

    Hoje o dia é perfeito para brincar com a morte, 

    Cada golpe que damos é a mais pura sorte…”

    O povo miúdo de Barbados, preso à rotina teimosa, nem estranhou. A ilha já não tinha a glória do velho mundo, mas a música, ao contrário das pessoas, nunca tinha ido embora. Tocava calma nas lavagens da manhã, alegre nos pátios da escolinha improvisada, e intensa nas madrugadas afogadas em rum. Aquela, porém, vinha mais alta que o aceitável e mais melancólica do que era educado tocar perto do mar — ainda assim, bela o suficiente para que até os pescadores, alimentando com zelo suas tartarugas de coleta, fechassem os olhos e deixassem a melodia entrar por cada poro.

    Em meio a isso, a terceira salva chegou, lembrando a todos que beleza tem validade. Uma fileira de barracas se abriu como papel, e o chão ganhou poças rubras que ninguém queria nomear. Rápido demais para pânico completo; rápido o bastante para ninguém notar, de imediato, o detalhe incômodo: os disparos vinham de ângulos errados, dobravam esquinas que não existiam, encontravam alvos que não deviam estar ao alcance — o navio negro avançava de frente; suas balas deviam estar se afogando nas ondas.

    O Ranger atracou de forma ousada. Os tiros cessaram; a música, não. Ficou mais intensa, como se a ilha inteira fosse seu palco.

    — Ataquem, marujos!

    O grito de Jack veio simples, quase feliz, mal se destacando no desespero que enfim criava raízes. Ninguém parou a correria. Sabiam que não se foge de um navio de guerra com botes ruins, mas, por sorte, era só um, então lutar, nesse caso, parecia menos absurdo. Arpões se ergueram em cada canto, algumas pistolas aposentadas lembraram como cuspir pólvora. Estavam assustados, mas avançaram ao cais com ferocidade de quem tem pouco a perder, até que um homem de meia-idade se pôs à frente.

    — Somos protegidos, desgraçados! — Ele fincou o arpão e não soltou, sem largar a chance de atacar o primeiro que ousasse saltar. Tinha imponência de líder e uma respiração rouca que escapava por duas guelras discretas no pescoço. — Não vão sair livres se quebrarem o tratado!

    Ana, na proa, soltou meia risada sem interromper o dedilhar do alaúde. Niala, por sua vez, desceu pela lateral, devagar.

    — “Não é pra matar eles, Jack.” — a voz propositalmente afinada surgiu ao fundo. — “Precisamos repor as reservas.”

    Jack riu, satisfeito com o suposto conselho da companheira.

    — Ah, é verdade, minha linda Mary! — bradou para o convés vazio. — Faça um acordo, então!

    Niala, mesmo insatisfeita, não respondeu. Apesar de Ana de alguma forma ter conquistado aquele bastardo, ela já tinha aprendido que palavras, na direção errada, custavam caro. Aqueles olhos mortos a haviam atravessado uma vez; não precisava de outra. Manteve o foco no homem do arpão. Passos firmes, lentos o bastante para dar tempo de aumentar a pressão, mas não lentos o suficiente para pensarem que estava hesitando em avançar. Seu tempo na realeza não tinha sido em vão.

    Dezenas de arpões viraram para ela. Mãos trêmulas, mira honesta. Um garoto ainda sem barba puxou o gatilho de uma pistola por reflexo, não por decisão. O tiro saiu torto e… desistiu. Quicou no nada e foi em direção ao chão. Niala sorriu de canto; Ana também.

    “Ó, guerreiros, dancem na melodia, 

    Cada passo um grito, cada golpe poesia. 

    Pois se vamos cair, que seja com estilo, 

    O universo aprecia um último suspiro.”

    Medo, ali, era supérfluo. Jack era um desgraçado, isso ninguém discutia, mas como deixaria sua “Mary” morrer tão facilmente? Lá de cima, Ana via, com mais nitidez do que gostaria, as linhas quase acariciando o corpo da ex-rainha aracnídea — centenas, tensas, famintas, prontas para defendê-la ou, se a conversa azedasse, aumentar a estatística de mortes da tripulação do navio negro.

    Niala ergueu o rosto para o leme num gesto curto, quase um agradecimento. O homem de pescoço caído a encarava de volta, devoto de uma tripulação que só ele via. Os olhos da ex rainha tremeram por um instante. A pergunta vinha na sua mente de vez em quando, uma curiosidade oculta de se Jack realmente acreditava nisso ou se estava se fazendo de doido. 

    Já conhecera loucos suficientes para saber que há gradações nisso. E, entre os berros sobre ingleses, havia nas ordens dele uma nitidez que líderes carregam mesmo depois de quebrados. Gente assim não costumava ter o tipo de loucura tão comum que ele sempre mostrava.

    Suspirou. Quem era ela para querer entender Sombras?

    Uma das pernas se ergueu sem aviso e atravessou o abdômen do rapaz que disparara em sua direção. O ergueu à altura do olhar. Estava em choque, assim como o dos outros que encaravam a cena. Sem qualquer palavra, o lançou na proa com a eficiência de quem terminou um assunto. Voltou-se então para o homem das guelras, que agora tremia até no punho do arpão.

    — Não estamos sob as asas de Mare Euphoria — sibilou. — Tira isso da minha cara. Agora. Ou todo mundo vai acabar como ele.

    O homem vacilou. Não exatamente por covardia: por cálculo. O braço cedeu um dedo, recobrou-se, cedeu dois. Um choro rasgou a retaguarda — uma velha de peixeira nas mãos, contida por dois homens que mal a seguravam. Uma mãe que não merecia ter visto o filho nos braços do inimigo. O líder apertou os olhos. Encarou os escombros na praça, pensou no tratado cuspido. 

    Sabia que piratas que ignoram o acordo não eram só ladrões; eram desastres. O arpão pesou. As guelras abriram e fecharam num compasso aflito. O impulso por vingança subiu como febre, mas era ele quem tinha de decidir quantos morriam por isso.

    “Com um triste sorriso, canto à memória,

    De corpos no chão e sua breve história.

    Cada morte é única, cada fim um troféu,

    Hoje vocês são artistas no palco do céu” 

    O alaúde, lá de cima, cortou o ar com notas limpas demais para aquele cenário, acompanhado de uma voz rara de tão doce. Ele ergueu a cabeça por instinto. Viu a mulher no costado, o sorriso pequeno que não trazia alegria, só diversão. Algo primitivo dentro dele entendeu o recado. A decisão dele não importava tanto assim.

    — Nós vamos… todos morrer.

    A mão se mexeu antes do pensamento.

    O arpão que descia com a ponta voltada à pedra bateu oco e, num estalo seco, virou-se para o rosto de Niala.
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