Capítulo 3 - O Anjo Arrancado dos Céus Parte 3
Alguns fotógrafos convidados, e a própria transmissão oficial, registraram aquele momento. Velgo e Zayn num firme aperto de mão. Parecia um cenário impossível, até que se concretizou diante de todos.
“Se estivéssemos em um lugar vazio eu poderia… Não, não… Ela está muitas categorias acima, somente usar todas as minhas forças não seria o suficiente.”
Ela notava as intenções violentas se esvaindo pouco a pouco naqueles olhos. Só quando teve certeza de que ele havia desistido, largou sua mão.
— Antes de ir embora, cure os que foram queimados e cegados por minha brincadeirinha — ordenou Layla, caminhando em direção ao trono.
Uma voz feminina anunciou o fim da transmissão. Foi a última coisa vista e ouvida nos telões, televisões e rádios pelo mundo.
— Vão embora pelas entradas que utilizaram. — A voz de Libel ressoou no ambiente pela última vez.
Elta foi, a passos lentos, até o meio do salão. Da palma de sua mão, expandiu-se um intenso brilho dourado que dominou todo o perímetro. Eles foram curados e voltaram a ver, simples assim.
“Foi todo mundo. Não consigo sentir nada fora do normal em seus corpos.”
Cerrou o punho e a energia expandida cessou tão rápido quanto apareceu. O Anjo olhou ao redor, apenas acenando uma última vez antes de tomar rumo ao elevador. Não havia mais nada a ser feito por lá.
Caminhou cabisbaixo, fitando o tapete dourado nas partes ainda intactas dele. Uma sensação parasitária o atravessou ao focar-se tanto naquela cor.
“Esse tapete me lembra algo… Eu acho que lembra.”
Ventos suaves percorriam a metrópole branca.
A cidade na madrugada era muito silenciosa em comparação ao período diurno. Raramente carros podiam ser vistos através dos cruzamentos. Poucos pedestres suportavam o frio para ir a restaurantes noturnos.
Vez ou outra, o horizonte era coberto pelo cintilar escarlate da fortaleza. No entanto, não era mais chamativo que o céu estrelado acima. O brilho lunar, acompanhado por Elta do parapeito de um prédio, era mais belo.
A lua, refletida em seus olhos âmbar, trazia memórias de milhares de noites em que repetia aquilo. Olhar o pálido astro acima o acalmava.
Sentiu-se perdido outras vezes antes, mas nunca tanto quanto naquele momento. Apesar disso, seu rosto, levemente aquecido pelo vapor do chá que bebia, estava tranquilo.
Sentada em uma cadeira, Benten repousava a cabeça em uma mesa de madeira. A deusa secundária de suas crenças resolveu convidá-lo ao apartamento cedido a ela pelo governo naquela visita.
Conheciam-se há muito tempo, mas não tiveram contato direto desde a última ida dele à nação que ela liderava. Benten apenas sentia, através das preces feitas, que o homem ainda se importava com ela.
Para Elta era estranho vê-la novamente de tão perto. Tinha se esquecido de que, para os padrões de deidades, ela se portava de forma muito casual e humana. O fato de uma deusa aceitar ficar em um apartamento normal já era extraordinário.
Um rádio no centro da mesa da varanda transmitia um programa local em baixo volume.
Apesar da situação estranha e da língua afiada de algumas víboras da mídia, finalmente tudo está encaminhado para Arthur impedir o grande mal que virá nos caçar em breve. Esperamos muito do Velgo, é um ótimo pesquisador. Em nome de Rakka, devemos o perdoar.
— Parece que a opinião pública ficou realmente dividida — balbuciou Benten, rodopiando na ponta do dedo uma mecha de seus belos cabelos azuis.
— É melhor do que só ser odiado por todo mundo. — Virou na direção dela.
— O que pretende fazer agora?
— Nossa, no que será que eu estou pensando…? Não é nem como se você pudesse ler meus pensamentos, né? — ironizou, com um sorriso bobo no rosto.
— Nunca fui fã do conceito de privacidade, você sabe disso. — A deusa desviou o olhar, repetindo o mesmo sorriso dele.
— Honestamente, não tenho certeza do que fazer. — Colocou a xícara na mesa, ao lado do rádio.
Mais de seus pensamentos foram captados por ela.
Não precisaram trocar palavras sobre um detalhe específico envolvendo a doença para que chegassem na mesma conclusão. Tinham certeza de que não se tratava de um mero câncer comum. Isso era coisa que Elta resolvia com a exata trivialidade de respirar.
Então, abria-se a possibilidade daquela coisa ter sido causada por alguém muito poderoso que queria tirá-lo do caminho. A questão era…
— Quem acha que fez isso? — Elta fixava-se nos olhos dela.
— O único que faria sentido é o Deus do Tormento, mas esse matei com minhas próprias mãos. Não faço ideia de quem mais poderia gerar algo tão intenso. — Ela encolheu os ombros, desconfortável.
“Espera…”
A sensação de quando olhou o tapete dourado retornou. Algo vagava em sua mente, borbulhando entre as memórias. Não era uma informação clara, mas parecia extremamente errado não saber do que se tratava, como se fosse a resposta que buscava.
O pesquisador voltou ao parapeito, direcionando o olhar novamente à lua.
— Pelo menos há um lado bom em morrer logo. Não vou precisar virar babá de um príncipe.
— Nossa, seu asco pelo garoto da profecia é mesmo maior que seu medo de morrer! — Benten colocou a mão na frente da boca.
— Falsa, você também já viu isso na minha cabeça! — Apontou para ela, indignado.
— Para de acabar com a minha alegria, deixa eu fingir ser uma mulher normal por uns minutos! — reclamou com a voz esganiçada e desafinada.
Elta riu tanto da reação dela que teve uma crise de tosse. Bebeu mais chá quente para tentar solucioná-la. Com a língua queimada pela bebida, que não curou de propósito para se sentir mais vivo naquela madruga, virou alvo das risadas da deusa quando resmungou por isso.
— Quando pensarem em me chamar de volta para cá, já vou estar morto. Acho que vou aproveitar meus últimos meses perto dos meus filho e tá tudo bem…
Ambos tinham noção de que era a última vez em que eles estariam juntos daquele jeito, então aproveitaram a presença um do outro ao máximo. Jogaram conversa fora até o sol raiar.
Dias depois, a viagem teve fim.
“De volta ao lar…”
Árvores e arbustos carmesim circundavam o território de uma residência, a casa dele. A única vegetação verde era a grama baixa daquela planície. O ar fresco era ótimo, parecia um sonho respirá-lo novamente após sair da cidade grande.
O silêncio era quase absoluto, sendo quebrado apenas pelo farfalhar das folhas e o som distante de pássaros.
Banhado pelo sol da manhã, parou para admirar a casa que construiu à mão no passado, morada de sua família. Era uma bela, rústica e enorme casa de madeira. Lembrava de ter sido especialmente difícil construir o segundo andar dela. Um catavento amarelo girava no telhado.
Um pouco adiante, um caminho de terra batida serpenteava até um grande galpão, local de suas revolucionárias pesquisas.
De fato um lugarzinho pacato no meio do nada, mas, ainda assim, não abriria mão dele por nada. Um sorriso em seu rosto, nostálgico dos anos que se passaram, aqueceu o coração.
— Ah, que bom que voltou.
Uma silhueta entre as árvores, que logo se revelou como Mirya, aproximou-se rapidamente. Elta nem a deu tempo de falar qualquer coisa, apenas correu e abraçou.
— Fiquei com saudades…
— Notei. — Retribuiu o abraço, com um levíssimo esboço de felicidade no rosto. — Como foram as coisas por lá?
— A-acabaram saindo de controle, mas fui nomeado como Anjo no fim!
Ela se separou do abraço e falou: — Bem, senhor Anjo, seu filho não aceitou ser treinado por mim de jeito nenhum.
— Pode deixar comigo, eu faço isso!
Mirya não entendia como ele podia parecer triste e feliz ao mesmo tempo. Percebeu essa curiosa mistura em seu semblante.
— Pai, isso faz mesmo parte do treinamento? — perguntou Verion, seu filho, um garoto de cabelos castanhos bagunçados.
— Tuuudo pode fazer parte desde que você não conte para sua mãe. — Fez um sinal de joinha.
Elta e Verion plantavam sementes de rosa pelo caminho que levava ao galpão. Ele cavava os espaços e o filho semeava.
Ignoraram a ideia inicial de treinar e foram até Aludra, uma cidade próxima, para comprar sementes. O homem queria ter um momento mais tranquilo ao lado dele antes de tudo.
Passaram horas repetindo aquele processo e, depois, foram ao galpão de pesquisas da família Velgo. Um espaço com diversas mesas retangulares tomadas de papéis, recipientes e ervas. Era muito bem cuidado e meticulosamente organizado.
O Anjo retirou um objeto de um armário metálico com muitas gavetas: uma caixinha prateada com detalhes dourados. Ao abri-la, um pedaço de trigo enrolado podia ser visto.
— Normalmente, para receber as bênçãos de um deus você precisa encontrá-lo presencialmente ou fazer um ritual no país dele para entrar em contato. — Ele aproximou a caixa. — Mas existem outros métodos como esse.
Aquele pequeno trigo enrolado, tocado pela Deusa da Vitalidade, Vegarten, foi um presente dado a Elta para que pudesse entregar aos seus filhos. Cortava-se a necessidade do contato direto com o ser divino em questão — uma amostra de confiança.
— O que eu faço com isso? — questionou ao pegar a caixa.
— Come.
Verion ignorou o trigo e mordiscou a caixa. Eles se entreolharam silenciosamente por uns bons segundos.
“É antiético fazer isso? Bem… se fizeram com a tal de Libel, eu que não deixo a oportunidade passar.”
Elta tocou a testa do filho, usando um dos poderes do Conhecimento de Benten, afetando permanentemente o desenvolvimento cognitivo de Verion. Como num lampejo, o garoto entendeu o que precisava ser feito e se achou idiota pelo erro quase cartunesco cometido.
Ao mastigar e engolir o trigo, ele escutou uma voz suave ao pé de seus ouvidos, dizendo que esperava muito dele. Recebeu a Definição da Vitalidade, a capacidade vinculada à Vegarten.
Da palma da mão do filho, surgiu uma fraquíssima luminosidade dourada. Tocou no pai para testar o que aconteceria. E assim, sentiu algo, algo anormal, mas que não tinha certeza do significado.
— Pai, o que é essa coisa estranha em você?
— Depois podemos conversar sobre isso, tá tudo bem… — Sorriu para o garoto e afagou seus cabelos bagunçados. — Vamos iniciar o treino!
Visitaram cada cidade próxima naquele dia para que Verion curasse pessoas. Pequenos ferimentos, resfriados e outras coisas fáceis de resolver ficaram para ele. O pai lidava com as coisas mais sérias.
Pôde perceber alguns olhares hostis vez ou outra, mas no geral a população continuava simpática a ele. As informações demoravam muito para se propagar por aqueles lados, então muitos nem deviam saber os detalhes do evento de seleção.
Retornaram para casa só após o anoitecer. Verion passou exausto pela sala da residência, indo cambaleante ao seu quarto no segundo andar.
— Que ótimo que pegou pesado com ele! — Mirya elogiou orgulhosamente, sentada no sofá de casa.
— Não foi a intenção, só me distraí e ele continuou curando os outros.
— Pegue pesado de propósito na próxima. — Decepcionada, o deixou sozinho por lá.
“Que complicada…”
A sala era iluminada por um par de lampiões. Uma mesa redonda, um sofá e um alguns vasos de planta. Não era nada de mais. A única coisa que importava para ele na sala estava na mesa, uma foto de família com todos reunidos. Elta, Mirya, Verion e Yunneh, a filha.
“Precisa valer a pena…”
Meses se passaram com Elta e Verion continuando o treinamento básico de cura, cuidando das rosas juntos e passeando. Também com ele ajudando a filha com seus afazeres e dando conselhos de vida que pareciam um tanto confusos naquele ponto.
Dia a dia, aquela estranha sensação indecifrável que sentia vagar entre suas memórias o fazia se acalmar mais e mais. Como um parasita, a sensação o consumiu pouco a pouco, deixando-o numa estranha serenidade e tranquilidade.
Quando contou à família de sua condição, omitindo muitos detalhes, e escreveu o testamento, permanecia calmo, perturbadoramente calmo. Apesar de agir da mesma forma de sempre, nada conseguia o preocupar, ao ponto de causar ansiedade aos próximos.
Em certo dia, Elta olhava-se no espelho, acariciando os longos cabelos castanhos. O semblante sério e misterioso, e os olhos âmbar estreitados, chamaram a atenção da filha.
O homem percebeu ela no reflexo e abriu um largo sorriso.
— Pai, quer fazer inveja em alguém com esse seu cabelão? — brincou, apesar de receosa.
— Queria que fosse isso…
E, tempos depois, o Anjo foi arrancado dos céus.
Seu enterro, comunicado oficialmente pela ZNI, atraiu milhões de pessoas em um evento que durou 30 dias. Muitos quiseram dizer adeus e prestar suas homenagens ao verdadeiro salvador que tiveram naqueles tempos. Arthur era promessa, e ele foi fato em terra.
Seu nome circulou pelo mundo, viajando por cada canto. Não o esqueceriam tão cedo, afinal, tornou-se pauta de infindáveis discussões ao redor do mundo. Os crentes na profecia, a mídia e os cientistas do mundo inteiro não tiravam aquele nome de suas bocas.
Muitos acreditaram que o campo da medicina como um todo estagnaria por um bom tempo após sua morte, mas uma dupla mudaria isso num futuro próximo. Os segredos que circundavam essa grande figura seriam desvelados.
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