Capítulo 4 — Tapete mágico
Aceitar a mão daquele estranho foi, sem dúvida, a decisão mais maluca da minha vida.
Mas também foi a melhor.
Depois de sair daquela cela fedorenta, ele me levou por corredores que eu nunca tinha visto no orfanato. Parecia que ele conhecia cada canto escondido do prédio. Nenhum cuidador apareceu. Nenhuma criança gritou. Era como se o mundo tivesse congelado, e só nós dois estivéssemos em movimento. Cada passo dele ecoava levemente, como se a madeira estivesse reconhecendo sua presença. O cheiro de mofo ainda pairava no ar, mas misturado a algo mais… um perfume estranho, que lembrava metal polido e folhas secas.
— Como você entrou aqui? — perguntei, tentando acompanhar seus passos largos.
— Magia — ele disse, como se fosse a coisa mais normal do mundo. E eu tive vontade de rir, mas a tensão me manteve sério.
A cada corredor, eu sentia que algo no ar mudava. Era como se as sombras se curvassem levemente à presença dele. Não havia nada visível, mas dava para sentir. Meu coração batia acelerado, cada músculo tenso.
Quando saí pela porta com aquele homem, achei que ele fosse me levar até um carro. Ou uma moto. Talvez uma carroça.
Mas ele me levou até… o telhado.
Sim. O telhado do orfanato. À noite. Com o vento gelado cortando meu rosto, e a cidade inteira lá embaixo, cheia de luzes piscando, buzinas e pessoas que não faziam ideia do que estava acontecendo. A sensação era de que tínhamos saído do mundo normal e entrado em um lugar paralelo, onde tudo ainda era o mesmo, mas ao mesmo tempo, nada era seguro.
— Certo — falei, cruzando os braços, tentando parecer corajoso, mas tremendo por dentro — me diz que você tem uma vassoura voadora, um dragão, qualquer coisa.
Ele apenas estalou os dedos.
O chão do telhado tremeu levemente. Um estalo metálico ecoou, seguido de um zumbido suave, como se a própria estrutura estivesse respirando. E então, uma fresta se abriu bem no meio do telhado.
De lá, subiu um tapete. Azul escuro, bordado com fios dourados que pareciam brilhar como estrelas. Ele flutuava com uma graça quase sobrenatural, se contorcendo suavemente no ar como se tivesse vida própria.
— Você tá de brincadeira, né? — falei, dando um passo para trás. — Um… tapete?
— Um Tapete dos Ventos do Norte, tecido com fios de mana e pelos de grifo. — Ele subiu no tapete com a mesma naturalidade de quem entra num ônibus. — Vamos, garoto.
— Isso é seguro? — perguntei, engolindo em seco.
— Não. — disse ele, com aquela calma irritante.
— Excelente. — respirei fundo e subi.
No momento em que toquei o tapete, ele se mexeu. Sério, se mexeu, como um bicho respirando. Um arrepio percorreu minha espinha, e por um instante pensei em pular fora. Mas era tarde demais. O tapete levantou voo, com uma suavidade que parecia mentira, e eu gritei.
— AAAAAAAAAAAAAAAAAH!
Voamos. Acima dos postes, dos prédios, das nuvens. A cidade ficou lá embaixo, iluminada, como um tabuleiro cheio de peças minúsculas. O vento arrancava o fôlego e bagunçava meu cabelo. Quase perdi o chinelo umas três vezes, mas segurei com força. Meu corpo parecia querer saltar do tapete, mas o toque firme do homem na minha frente me manteve ali, imóvel, pelo menos fisicamente.
O homem parecia calmo. Sentado de pernas cruzadas, como se estivesse em seu próprio sofá, observando a cidade que desaparecia sob nós.
— Sam — disse, me olhando com aqueles olhos escuros que pareciam enxergar tudo. — você acha que é como eu.
— Eu vejo monstros, você vê monstros. Parece igual pra mim.
— Não. Eu vejo monstros porque aprendi a ver. Mas você vê porque nasceu assim. Você é um Caçador.
— Caçador de quê? Vampiros? Lobisomens? Cupins? — falei, tentando brincar, mas minha voz traía minha ansiedade.
Ele sorriu de lado. Um sorriso que não chegava aos olhos, mas que me fez sentir uma estranha segurança.
— De tudo o que vive nas sombras. Caçadores existem desde os tempos antigos. São raros. Muitos foram extintos. Os que restaram vivem escondidos. E você é o primeiro Caçador desperto em mais de vinte anos.
— Uau. — minha voz saiu pequena, quase sem ar.
— Mas eu… não sou um Caçador. Eu sou um mago.
Eu travei.
— Espera, você não disse que era como eu?
— Eu disse que também via monstros. Nunca disse que era como você.
— Então você mentiu! — acusei, cruzando os braços.
— Tecnicamente, você se enganou. Eu só deixei. — Ele deu de ombros.
Revirei os olhos.
— Magos mentem muito?
— O tempo todo. Especialmente quando querem manter você vivo.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. O tapete planava sobre uma floresta escura. As luzes da cidade haviam desaparecido, e tudo ao redor parecia dormir sob um manto de névoa. O vento frio cortava meu rosto, e a adrenalina ainda corria como eletricidade nas minhas veias.
— Qual é o seu nome? — perguntei, para tentar matar aquele silêncio pesado.
— Me chamam de muitos nomes, mas você pode me chamar de Merlin.
Quase escorreguei do tapete ao ouvir aquilo.
— Oi? Tipo… o Merlin de verdade? O da lenda? Rei Arthur, espada na pedra, essas coisas?
— Sim, aquele mesmo. E, antes que pergunte: não, eu não estou morto. Só… afastado. Até agora.
Ele me olhou de um jeito que fazia minhas pernas tremerem de novo, e eu tive que me segurar com força no tapete. A sensação de voar já não era mais tão assustadora, mas sua presença tornava tudo mais intenso.
— Os monstros te temem, Sam. — continuou Merlin. — Porque você enxerga através do disfarce deles. Porque seu sangue os repele. E porque você carrega uma memória antiga… que nem sabe que tem.
— Memória de quê? — perguntei, franzindo a testa, tentando entender.
Ele olhou para mim, sério, quase pesado.
— De quando o mundo ainda era dividido entre Caçadores… e Criaturas.
Passamos por uma serra coberta de névoa. As árvores pareciam gigantes adormecidos, e a neblina dançava entre os galhos, como se soubesse que estávamos sendo observados. E então, surgiu no horizonte, lentamente, como se a própria terra estivesse revelando um segredo antigo:
— Bem-vindo ao Reino Élfico.
O céu começou a se iluminar com cores que eu não sabia que existiam, e as torres brancas surgiram entre árvores gigantes, luzes verdes flutuando no ar, casas suspensas conectadas por pontes que se mexiam sozinhas. Meu coração quase saltou do peito. Era o lugar mais surreal que eu já tinha visto.
— Isso… isso é real? — murmurei, com a voz rouca, incapaz de acreditar.
— Tudo aqui é real. — disse Merlin, pousando o tapete suavemente sobre uma pedra coberta de runas que brilharam sob nossos pés. — E você está prestes a aprender quem realmente é, Sam Skyline.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.