Yunneh ficou a sós com a anfitriã em um dos andares da torre. Reuniram-se ao redor de uma mesa redonda feita de madeira vermelha. Sobre ela, algumas frutas e diferentes sucos estavam à disposição.

    A Velgo apenas observava a semideusa pensativa, brincando com uma maçã, jogando de uma mão para a outra. Não queria interrompê-la, tanto por medo de acabar fazendo-a mudar de ideia, como também por estar distraída com os esbeltos cabelos cacheados.

    “Ela falou que tive sorte por não estar lidando com alguém que pensasse como antigo líder do país… Esse cara tinha matado mó galera por desrespeitarem a religião nacional.”

    “Luchell, acho que era esse o nome do cara… Faz sentido ela ter falado isso. Esse velho não ia me dar chance de ter uma conversa dessas”

    Há 21 anos, Lisbeth conquistou o domínio da nação de Quilionodora ao matar o antigo líder. Era como as coisas funcionavam por lá, qualquer um que matasse a liderança poderia assumir o cargo sem maiores complicações.

    Não havia oposição por grande parte da população, pois era um dos mandamentos estipulados pelo Dragão da Aniquilação. A única contestação permitida se dava através de um duelo, quaisquer outros meios colocariam o opositor em questão na mira da deidade.

    — Garota.

    — S-sim?

    — No que dependesse de mim, você já estaria morta. — Deu uma mordida na maçã. — Só que… Quilionodora não me disse em momento algum para matá-la, então pressuponho que ele de fato queira resolver essa questão diretamente com você.

    — Ah, foi uma coisa na qual eu pensei hoje, antes de sair da minha cidade. Ele poderia muito bem ter dado um jeito de espalhar isso entre os seguidores dele, mas não aconteceu.

    “Ainda é estranho, mas aquela minha teoria deve estar certa. Deve existir algum problema em algo além dele tentar nos matar.”

    — Se essa é a vontade da Aniquilação, também permanecerei calada sobre o assunto com a população. Filha do antigo Anjo, tenho que deixar algumas coisas claras aqui.

    — Pode falar.

    A semideusa passou com suavidade os dedos no próprio cabelo. Pensou e repensou na primeira coisa a dizer, optando por ir direto aos pedidos.

    — Quero que cumpra duas exigências para que eu passe a mensagem ao meu deus. Sua confiança é enorme e eu quero ver ela acabar nos primeiros segundos de batalha, seria uma maravilha de acompanhar. — Largou a maçã e colocou as mãos sobre a mesa. — Mas se quer que sua declaração de guerra seja levada até ele, terá que me mostrar seu valor.

    — Meu valor…?

    — Lembra do assunto da emergência nacional? Resolva essa questão inteiramente sozinha. Caso obtenha êxito nessa tarefa, terá completo o primeiro requisito.

    “Cara…”

    — Isso não é algo que você poderia resolver sozinha?

    — Queria jogar esse problema nas mãos de alguém porque seria divertido. Posso mesmo dizimar esses pequenos desafetos, mas seria entediante, entende? — Sorriu, meiga.

    “Todo mundo que é forte é meio pirado assim?”

    — Consigo entender, mas acho uma mesquinharia sem tamanho — respondeu, seca.

    Lisbeth demonstrou empolgação genuína ao dizer: — É até divertido ter alguém tão franca e sem senso de perigo como você por perto.

    “Dependendo do nível do problema, eu consigo eliminar alguém com minha Revelação. Não queria matar alguém além dos meus alvos principais, mas, se precisar, não darei um único passo para trás.”

    — E a segunda exigência, qual é?

    — Sei daquela ideia sua e da Lorellai de te colocar no exército nacional. Posso fazer isso, te dar privilégios exclusivos para o resto da vida e um treinamento especial. Porém, para isso, terá que seguir minhas ordens até o dia do despertar de Quilionodora.

    — Desde que não me atrapalhe a ficar forte, posso aceitar isso numa boa.

    — Não quero te sabotar… — Levou a mão ao queixo. — Quero te dar as melhores oportunidades possíveis só para que entenda que é impossível uma humana qualquer enfrentar uma deidade, mesmo que com o melhor desempenho possível.

    “Quero ver depois que eu consumir toneladas de Quilis se eu não dou uma canseira nessa lagartixa metida a dragão. Ainda devo ter bastante tempo.”

    — Aceito seus pedidos. — Yunneh abaixou a cabeça, em sinal de respeito.

    — Te darei o duelo justo que tanto procu…

    Foi interrompida abruptamente.

    — Me fala uma coisa, quanto tempo deve demorar até Quilionodora despertar?

    — Cerca de 9 anos, no máximo — elucidou, irritada pela interrupção.

    Era uma quantidade de tempo significativa quando se pensava numa vida humana, porém, em comparação, um tempo curtíssimo para um treinamento de alto nível naquele mundo.

    O dragão permanecia adormecido durante 13 milênios inteiros, resultado da Guerra das Deidades, um evento misterioso que levou muitos deuses a morte. Nunca se soube a razão exata da guerra, os deuses se recusavam a falar ou diziam não lembrarem.

    Ao fim do confronto, quando Quilionodora e Benten finalizaram o evento, ambos caíram em um sono profundo. A Deusa do Conhecimento despertou naquela era, na modernidade, décadas antes da criação do Calendário da Calamidade, o que significava que o tempo do dragão se reerguer estava próximo, tal como Lisbeth sugeria.

    Yunneh ouviu a estimativa cedida e, com base nos fatos históricos, concluiu que devesse ser uma data confiável, aproximada. Inflamada por sua confiança que parecia infindável…

    “Tanto faz, 9 anos é o suficiente pra mim!”

    — Nah, eu vou vencer — afirmou com um semblante desafiador.

    Lisbeth achou graça daquela convicção colossal. Teve que conter sua lágrimas, quase chorou de felicidade, como se fosse a melhor piada que ouviu em vida. Seus lábios se contorceram num sorriso involuntário.

    A semideusa pensou: “Dar a ela treinamento e oportunidade apenas para morrer em segundos será uma experiência igual a de engordar um porco para o abate. Parece divertido, é…”.

    — Velgo, seu temperamento lembra muito o de sua mãe quando era mais jovem. Apesar das inúmeras rejeições dela a seguir Quilionodora, tenho um enorme apreço por ela devido aos anos dedicados a mim. — Lisbeth levantou de seu lado da mesa e caminhou na direção dela. — Por essa razão, esse respeito, te darei todas as chances que estão ao meu alcance. Tente realizar essa sua insanidade no mundo!

    Prosseguiu: — A última vez em que uma deidade morreu foi pelas mãos de outra deidade. Isso aconteceu há 22 anos. Certamente sabe do ocorrido, não é?

    — Benten matou Zhemo, o Deus do Tormento. — Ela mordiscou a unha enquanto pensava.
    — É meio difícil não saber disso, até porque a briga deles fez o nível dos mares subir.

    “O continente gelado ficou bem avariado pelo que li.”

    — Levou poucos minutos, mas, nesse curto período de tempo, as explosões desse duelo puderam ser vistas de outros continentes. Esse é o nível da batalha com deidades. Quero que se lembre disso enquanto tenta realizar esse seu show tão interessante. — Ela estendeu os braços para cima.

    — Sei bem que estou me enfiando em um problema gigante, mas ainda confio que eu consigo esmagar toda a soberba daquele dragão. — Yunneh levantou e a encarou bem de perto.

    A troca de olhares permaneceu em um equilíbrio perfeito. Nenhuma conseguiu identificar qualquer fagulha de dúvida no olhar da outra. A convicção de suas ideias era absoluta. A supremacia humana e a supremacia divina, era o que estava em jogo.

    — Tudo que desejo de ti é uma boa história para ouvir.


    Lisbeth passou os detalhes da emergência para Yunneh. Houve um exagero dela quanto ao nível do problema apenas pela vontade que teve de atazanar Lorellai durante as férias. Não era algo digno de ser elevado a um nível nacional de periculosidade.

    Um grupo de homens encapuzados começou a aparecer em um dos bairros de Sirius e, junto de seu surgimento, uma quantidade elevada de desaparecimentos foi relatada.

    A questão dava-se na problemática de localizar o líder daquele grupo. A semideusa não queria apenas matá-los, mas sim descobrir o motivo por trás de estarem lá. O plano inicial era colocar Lorellai no caso, porém, como a Velgo entrou em jogo, ficou fora das mãos da conselheira.

    “O Verion deve ficar bem, Jeremiah é forte o suficiente pra aguentar uns problemas.”

    Caminhava pelas ruas da movimentada da cidade. Por estar imersa em seus pensamentos, não dava atenção para os inúmeros olhares que atraía. Havia esquecido de recuperar seu chapéu. Os cabelos brancos, o principal marcador de uma maldição, entre seus belos castanhos claros faziam qualquer um cravar os olhos nela.

    “Lisbeth me comparando com minha mãe como se isso fosse algo positivo foi ruim de aturar. Quero essa mulher covarde e fugitiva a sete palmas abaixo da terra!”

    “Preciso focar na missão e resolver esse problema o mais rápido possível.”

    Alguém esbarrou nela, fazendo-a perder um pouco do equilíbrio por estar distraída.

    — Olha por onde anda! — disse, levantando a voz.

    — Ish, foi mal.

    Ao perceber quem era ficou mansa igual um gatinho.

    — Madallen?

    — Eae!

    A garota de armadura e longos cabelos laranjas sorria bem diante de seus olhos. Yunneh não sabia dizer a razão, mas gostou muito dela, tanto que a ajudou refazer o teste com o pedido feito à Lorellai.

    — Ahh… O-o que você está fazendo o q-que agora?

    — Ei, você falou tudo errado… — Madallen abriu um sorriso genuíno.

    — …Não sei do que você tá falando! — Ela desviou o olhar.

    — De qualquer jeito, vou ir bater um papo com a Lisbeth. O prefeito da minha vila, o Charles, tá fazendo mó descaso com a médica local. Eu acho que ela vai ir embora se ele não aumentar o salário. — Coçou os cabelos de leve. — Vim aqui discutir isso com ela, porque ninguém tá botando juízo na cabeça daquele fumante compulsivo.

    — Entendi… — Perdeu-se os olhos verdes dela, encantada.

    Algo nela atraía sua atenção, não sabia dizer o que ao certo. Porém, mesmo não sabendo o que era, sentia que poderia observá-la para sempre. Talvez até não fosse questão de algo em específico, e sim ela como um todo.

    Os penetrantes olhos esmeralda perceberam aquela reação.

    — Hum? Tem alguma coisa no meu rosto? — Passou a mão pela face com força.

    — N-nada! Nadinha… Preciso resolver uma coisa, tchaaau! — Disparou em direção a primeira esquina que viu.

    Madallen havia percebido os cabelos brancos, mas nem teve tempo de perguntar algo. Foi deixada para trás, um tanto curiosa.

    Yunneh sentou no chão de um beco, levando as duas mãos ao rosto que ficou avermelhado pela vergonha. Permaneceu quieta naquele canto, com um sorriso tão forte no rosto que fez as bochechas arderem.

    — Haha… hahahaha!

    “Que droga foi essa? Ai, ai…”

    “Calma, calma. Depois eu penso melhor nisso, preciso mesmo ir atrás daquele pessoal.”


    No começo da tarde, Yunneh retornou à hospedagem em que deixaram suas bagagens antes de sair para o teste. Cumprimentou a recepcionista rapidamente para não perder tempo com conversas e correu para o quarto alugado.

    Abriu a porta, notando a ausência de seu irmão e Jeremiah. O quarto, silencioso e abafado, foi adentrado por ela. Apesar de uma fagulha de preocupação ter brotado por não saber do paradeiro de Verion, manteve seu foco.

    “Hora de colocar meu plano em ação.”

    Abriu a mochila onde deixou seus pertences, pegando um maço de dinheiro. Ainda restava um valor notável da venda do relógio para John. Tendo pego a quantia, deixou o quarto, preparada para armar sua arapuca contra os encapuzados.

    “Rápida e certeira, é isso que preciso ser.”

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