Capítulo 17 - O Estratagema do Eterno Enforcado
Uma forte luz dourada trouxe visibilidade novamente ao ambiente. Centenas de reflexos, de todos os lados, surgiram ao redor de Yunneh, bloqueando qualquer chance dela sair de lá.
— Querida Velgo, acalme-se e me ouça — disse Bel, através do sistema de comunicação.
Toda a fúria e o frenesi enlouquecido desaguou num sentimento doloroso de impotência, algo que sentiu repetidas vezes. Não existia vitória, todas as possibilidades desse futuro se concretizar foram anuladas. Restava a ela abaixar a cabeça e aceitar as circunstâncias outra vez.
Ainda tinha esperança de sair de lá com vida, mesmo não tendo certeza de como isso poderia acontecer. Sua missão, seu objetivo de vida não podia acabar lá, era isso que turbilhonava em sua mente.
Frustrante, era frustrante.
Mirya, Quilionodora, Lorellai, Lisbeth e agora Bel, não foi capaz de contrapor nenhuma força que a contrariou. Tudo que fez foi gritar e ter a sorte de que ninguém quisesse a matar de fato. Era uma fraqueza indiscutível perante as aberrações do mundo.
Caso tivesse a força para vencer, poderia conquistar informações muito importantes. Aquela figura servia o deus misterioso que matou seu pai. Era a dedução que pôde ter com base nas poucos informações.
— O que quer comigo, víbora? — Ela levantou o olhar, encarando o homem.
Bel estava de pé logo à frente dela, rodeado por seus monstros. Exibia em seus lábios um sorriso calmo e doce, enquanto mexia em seus cabelos brancos enrolados no pescoço.
— Que isso garota! Não me chama de víbora, sou só uma andorinha… Aves combinam mais comigo.
— Minha espada atravessada no seu cérebro combina mais.
— Hihihihi… Por onde começar, não é… Deve estar curiosa, não é verdade?
Ela cruzou os braços e torceu os lábios, rejeitando por completo aquela figura irritante.
— Sei que alteraram nossas memórias e fizeram uma bagunça com nossas coisas. Você não contaria algo crucial com tamanha trivialidade.
— Oh, ótima linha de pensamento, menina picolé. — Bel criou um revólver e começou a girá-lo na mão esquerda.
De repente, deu um tiro no coração de Yunneh, ainda mantendo aquele sorriso alegre antes de dizer: — Se cure.
A jovem acatou o pedido e curou o próprio coração rapidamente. Não entendeu o propósito daquilo, mas irritou-se ainda mais pela dor que precisou sentir em troca de aparentemente nada.
— O que tu quer com isso?
— Só fazendo um teste… Pesquisas práticas são sempre importantes. — Ele jogou a arma para a mão direita e começou a girá-la. — Já teve algum sonho estranho com um vulto dourado ou sentiu-se numa grande calmaria?
— Que papo é esse? Você acha que eu estive calma por um dia que fosse desde que vocês fizeram essa merda contra a minha família?!
Decepção manchou o semblante do homem, infeliz pela resposta.
— Não se manifestou ainda…
— O que não se manifestou? — Fechou o punho.
— Velgo… — Ele encostou o revólver na testa dela. — Seus cabelos brancos tem um significado maior do que meramente um indicativo de sua Revelação.
Yunneh permaneceu em silêncio, esperando que a figura de branco falasse alguma coisa. Os olhos dourados dele, de perto, pareciam sem vida, angustiantes. E, depois de um longo vazio naquela conversa, a resposta dele veio:
— No dia que entraram em contato com Quilionodora, você se suicidou no galpão. Retirou sua própria vida atravessando a espada no coração e retornou dos mortos por conta desse querido vulto dourado. — A arma começou a irradiar um brilho ciano. — Você já deveria ter uma conexão maior estabelecida com ele… Mas posso solucionar esse problema técnico com um pouco de força.
O gatilho foi puxado e a cabeça de Yunneh foi derretida por uma explosão de chamas muito mais quentes que o sol. Seu corpo caiu sem vida. Não houve qualquer sangue apesar de sua cabeça não existir mais. A cauterização da carne não deixou que nada manchasse aquele chão.
Calmaria, calmaria infinita.
Os olhos abriram, dando vista de um espaço plano dourado onde encontravam-se três ampulhetas brancas colossais. Ventos suaves passavam pelo lugar, confortando com uma sensação parasitária de bem-estar e tranquilidade imposta à força.
A areia era pouca em duas ampulhetas, estavam perto de seus fins. E a outra vazia.
Notou uma sonolência pesada recair sobre si, como se manter os olhos abertos fosse a coisa mais difícil que já precisou fazer. No canto da visão periférica, viu uma figura dourada disforme caminhando.
— O que… o que é esse… l-lugar?
A entidade adiante parou e levantou as mãos, fazendo bolhas de sabão surgirem do chão e cobrirem pouco a pouco o corpo dela. Seus olhos se fecharam com um sentimento de paz total que infectou seu corpo e mente.
Os músculos relaxaram e tudo pareceu tão simples, só precisava adormecer. Sentia, naquele momento, que descansar era sua única função na existência. Deixou-se ser levada ao abismo daquela calma, caindo no sono.
As bolhas cobriram-na por completo e a fizeram flutuar para longe, rumo aos céus.
Quando notou que estava de pé, cambaleou, aflita. O que pareceu ser um sonho foi tão real que ela se perdeu por um momento. As linhas entre o que entendia como sonho e realidade ficaram mais confusas enquanto seu cérebro ainda processava o fim daquela serenidade.
Bel, com um largo sorriso no rosto, formou um espelho do absoluto nada e mostrou à Yunneh seu belo reflexo. A área com cabelos brancos havia aumentado consideravelmente.
A garota apalpou o próprio rosto, sentindo-se estranha por ter certeza de que sua cabeça tinha sido destruída. Os olhos confusos e um tanto aterrorizados encontraram os dourados do imortal.
Por alguma razão, percebeu o corpo mais leve e mais forte, uma sensação similar a de acordar após o evento com Quilionodora. Logo ligou os pontos da situação, mas não teve tempo de concluir sua linha de pensamento por conta própria.
— Velgo, toda vez que você morre, volta muito mais forte. — Desmaterializou a arma. — Mas deve ter entendido perfeitamente que, caso o branco tome conta de seus cabelos por completo, não haverá retorno.
— Eu… — Encarou as próprias mãos, sentindo o Roha fluir com uma intensidade que nem imaginava que seria capaz de alcançar tão cedo.
Darian, o sequestrado, foi arremessado por uma das criaturas aos pés dela. Gravemente ferido, respirava em pânico, tentando cobrir os ferimentos com as próprias mãos. Yunneh o curou por reflexo, tomando um susto com o quão fácil foi fazê-lo.
“Quase não gastei energia…”
— Hihihi… Você tem apenas mais um retorno, vê se usa bem. — Coçou a bochecha antes de mostrar um sorriso infantil. — Porém, como você mesma disse, tivemos taaaanto trabalho para manipular as informações a que tinham acesso, então, por óbvio, não poderá sair daqui com essas memórias tão valiosas.
Ele desmaterializou o espelho que a refletia, dando passos a frente e ficando a poucos centímetros dela. Yunneh podia sentir o hálito bizarramente gélido da figura tocando seu rosto. O olhar sem vida a encarava, como um lobo prestar a devorar sua vítima.
— O que pretende fazer?
— Os cabelos brancos de seu pai sendo ocultados de todos, seu esquecimento sobre os Domínios Divinos… — Segurou o rosto dela, forçando as unhas contra. — Tudo fui eu quem alterei, e vou fazer isso novamente.
“Merda, então é isso… Ele quem manipula as memórias das pessoas?”
Prosseguiu: — Foi um problema essa fraca, que comanda esse país de segunda categoria, descobrir os membros da nossa seita andando por aí nas madrugadas pegando pessoas. Usarei a missão que recebeu dela, de me encontrar, para sumir por um tempo.
— Me deixa ir embora, por favor… eu só quero voltar pra casa! — suplicou Darian, ainda no chão.
— Nada disso meu bom menino, preciso de você. — Deu passos para trás. — Vou alterar as memórias de ambos. O garoto acreditará que é o verdadeiro líder e você, Velgo, também acreditará que ele é o líder dessa bela organização. Então, eu e meus homens sumiremos dando-lhes a falsa impressão de que o problema teve fim.
O teto acima começou a rachar pela falta dos sustentáculos. As falhas na pedra branca eram audíveis, aumentavam a cada segundo, tomando conta de tudo. A poeira e os fragmentos caíam pelo salão.
Continuou: — Vai entregar um inocente para morte e sentirá orgulho disso sem saber desse seu pecado tão vil… Hahahaha! É uma pena que não poderei fazer isso mais vezes num futuro próximo, mas, ainda assim, brincarei com suas memórias até lá!
— Você é doente! Qual o seu problema, o que você ganha com isso?! — Yunneh feria as palmas das próprias mãos, forçando as unhas.
— Não é questão de ganho ou perda, só sigo as ordens de meu mestre… — afirmou e criou novos pilares, translúcidos, para sustentar o ambiente e impedir o desabamento. — Minha função é justamente te fazer sofrer para que fique mais forte! Em algum momento você lembrará disso, contra sua vontade, e se sentirá um monstro, um verdadeiro demônio!
— Não consigo entender como alguém como você pode existir…
— Ooora, nãããão precisa levar isso tão pro lado pessoal. Te juuuro que não é por mal, minha querida!
— Vai se foder! — Deu um passo adiante, formando uma nova espada.
Bel caiu na gargalhada, divertia-se como uma criança escandalosa. Limpou as lágrimas que escorriam por seu rosto risonho e recriou seu revólver com o Elemento Imaginário.
— Vai fazer o que agora, boazona?
— Você não pode me matar ainda, consigo deduzir isso… — Concentrou uma quantidade avassaladora de Roha na lâmina gelada. — Pelo menos preciso tentar fazer algo com essa vantagem ao meu lado! Posso aceitar muitas coisas, mas não posso aceitar me entregar dessa forma tão covarde!
Ele bateu palmas.
— Oh, já que é assim, te faço uma proposta.
— O quê? — As veias de seu braço ficaram muito mais aparentes, segurava o cabo da espada com uma convicção elevada.
— Vou alterar suas memórias de qualquer jeito, mas quero te dar uma oportunidade. — Bel estalou os dedos e 15 das criaturas no entorno tornaram-se sólidas como a anterior. — Sua força aumentou e seu Roha foi restaurado com a ressurreição; mate eles e te contarei uma coisa importante sobre o diário de Elta Velgo.
“Algo importante?”
O imortal disse: — Existe um parágrafo que é uma mentira, uma inconsistência descarada naqueles meses finais de vida dele. Vença e saberá.
“Descarada? Eu deixei alguma coisa passar?!”
Todas as outras criaturas reflexivas foram para longe, deixando-a sozinha com os alvos que precisava abater. Bel levou Darian consigo para um dos cantos para assistirem ao inusitado espetáculo.
— Avicés, ataquem até que ela fique imóvel! — Estendeu a mão, ordenando o início da batalha.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.