Capítulo 58 - "Uma Narrativa"
O rangido da carruagem parando ecoou na rua chamando a atenção dos moradores e de alguns sobreviventes do ataque a pompa da carruagem com seus arcos prateados e soldados bem vestidos não condizia com o ambiente ao seu redor. Lysvallis desceu, o vestido pesado roçando na lama fria, e o vento trouxe até ela o cheiro metálico de sangue misturado ao gelo que derretia dos pilares ornamentais. As soldadas a acompanharam de perto, mas bastou um gesto para que a rodeassem, prontas para ordens.
— Vasculhem as casas. — disse com firmeza. — Ajudem a retirar os que ainda respiram. Quero batedores enviados para leste e oeste. Se houver mais bestas, preciso saber antes do anoitecer.
As mulheres assentiram e partiram com agilidade. Lys voltou os olhos para o centro da rua.
Ian estava ali.
Sentado sobre uma carroça tombada, parecia uma sombra do homem que havia corrido à frente da comitiva poucas horas antes. O sobretudo azul estava sujo de lama, rasgado nas mangas. As botas, manchadas de sangue e barro. O cabelo caía em desalinho sobre o rosto, e nas mãos ele segurava uma boneca infantil, imóvel, os olhos perdidos em algum ponto que não estava diante dele.
Antes que Lys se aproximasse, uma voz rompeu o silêncio:
— S- Senhor — Dois Homens se aproximaram, um deles carregando uma garotinha no colo. O tom era carregado de emoção. — O-obrigado Se não fosse por você… nenhum de nós estaria vivo.
Ian piscou devagar, como se despertasse de um torpor. Bateu de leve na boneca, limpando a lama, e ergueu um sorriso cansado para a menina.
— Não precisa me agradecer. — disse, a voz baixa, mas firme. — Eu cheguei tarde.
— Não Senhor, nós estamos lutando contra as bestas, se voce não intervisse, provavelmente eu não estaria vivo… muito menos a minha filha.
Ian respirou fundo e então, fechou a mão e um pequeno cavalo de gelo ganhou forma, cintilando como cristal à luz da manhã. o pequeno cavalo de gelo pareceu ganhar vida própria correndo em círculos sobre a carroça tombada. a menina encarou o cavalo com uma curiosidade infantil, parecendo se esquecer da tragédia que os cercavam.
— Qual o seu nome pequena? — disse, a voz baixa.
— Olívia — ela respondeu começando a mostrar um sorriso.
— Um lindo nome — Ian falou entregando a boneca de pano para o pai da menina — você quem escolheu?
Um riso leve escapou do homem — Não senhor, foi minha esposa.
— Ela tem um ótimo gosto — Ian respondeu dando um leve sorriso esse não era mais forçado. — Como vocês se chamam?
O pai da garota foi o primeiro a falar — Me chamo Henric, esse ao meu lado é o Daren.
Um murmúrio percorreu a multidão que começava a se formar se juntando ao redor dos três enquanto eles conversavam.
— “Nunca vi um guardião falar assim…” — murmurou uma mulher, com reverência.
— “Ele luta… mas ainda se importa.”
— Quem se importa? — se ele tivesse chegado antes meu pequeno Liam estaria vivo ainda. outra mulher respondeu ainda tentando tirar os destroços da sua casa já aceitando o que poderia achar nos escombros. — Ele chegou tarde…
— “Tarde? Ele nos salvou.” — alguém comentou.
Os olhares estavam fixos em Ian olhares de admiração, surpresa e de medo. Mas a maioria parecia espantada com o Guardião como se a humanidade de Ian fosse mais impressionante do que as lanças de gelo que ainda enfeitavam as ruas.
Lys, por sua vez, avançou interrompendo as conversas com a sua presença.
— Eu sou Lysvallis, rainha de Altheria. — disse alto, dirigindo-se aos guardas locais que se aproximavam com cautela. — Este homem é Ian, Guardião do Norte. Estamos aqui em missão oficial. Os soldados de vocês se unirão aos nossos. Reconstruiremos o que puder ser reconstruído.
O capitão local assentiu, ainda desconfiado, mas a autoridade dela não deixava espaço para contestação.
Quando se voltou a Ian, esperava vê-lo levantar-se e assumir o comando. Mas não foi o que aconteceu.
— Os soldados podem erguer as muralhas. — disse ele, ainda sentado. — Eu vou ajudar os vivos a dar um enterro digno aos mortos.
O silêncio que se seguiu foi denso. Lys manteve o rosto sereno, mas, por dentro, sentiu algo próximo a orgulho. Ele havia cumprido o que planejara: causar impacto. Os pilares de gelo, os corpos das bestas, o discurso contido… tudo era a imagem perfeita para gravar nos olhos de civis e soldados, a narrativa estava intacta.
A manhã seguiu. Naira coordenou a construção de muralhas improvisadas com os soldados, enquanto Kael e carpinteiros erguiam uma grande porta de madeira para a entrada. Ian permaneceu entre covas rasas e tecidos manchados, carregando corpos, ajudando mães e irmãos a enterrarem seus mortos.
Quando o sol já passava do meio do céu, quando ele deixou a vila em silêncio. Caminhou até um campo de cultivo mais afastado e se sentou sobre uma pedra, como se precisasse respirar onde o peso do olhar dos sobreviventes não pudesse alcançá-lo.
Foi ali que Lys o encontrou.
Ela se aproximou devagar, o vento puxando os fios soltos de seu cabelo.
— Ian. — disse, calma, mas firme. — Não esperava encontrá-lo aqui.
Ele não se virou de imediato. Apenas murmurou:
— Às vezes, é preciso ficar longe das muralhas — ele passou a mão pelo cabelo parando a mão no rosto por um momento — para lembrar o que se está protegendo.
O contraste entre eles era gritante, a Rainha intocada até mesmo pela lama da terra, enquanto Ian estava quase completamente sujo, de fuligem, lama e sangue.
O silêncio do campo se manteve por alguns segundos, quebrado apenas pelo vento que dobrava os talos secos. Lysvallis se aproximou, o passo elegante mesmo em meio à lama.
— Quero entender o que aconteceu. — disse, sem rodeios. — Desde o momento em que você deixou a comitiva.
Ian soltou um riso breve, sem humor, antes de encarar o horizonte. — O que aconteceu? Eu ouvi os gritos primeiro depois o cheiro de bestas. Corri. As bestas estavam por toda parte, subindo nas casas, dilacerando o que viam. Fiz o que tinha de ser feito, ergui pilares, congelei o que alcancei, Simples.
— Simples. — Lys repetiu, como se pesasse a palavra. Então, inclinou levemente a cabeça. — E, ainda assim, causou um impacto imenso. Você viu os olhares? Conseguiu exatamente o que precisava, mostrar quem é o Guardião do Norte.
A boca de Ian se contraiu em algo que poderia ser um sorriso, mas não era. — Então é isso. No fim, o que importa para você é a impressão.
Ela franziu o cenho. — Não deturpe minhas palavras.
— Deturpar? — Ian riu, amargo. e a mana começou a vibrar junto com as palavras — Lys, você cresceu em Altheria, rodeada de muralhas, protegida pelo brilho dos cristais. Nunca viu uma batalha de verdade. Nunca respirou o ar pesado de corpos. Nunca segurou uma criança morta nos braços.
O tom cortante fez Lys erguer o queixo, ofendida. — Cuidado.
Mas Ian não parou. Os olhos azuis gelados ardiam como lâminas.
— Você fala de impacto como se fosse algo para comemorar. Mas já sentiu o cheiro da carne queimando? Já olhou para uma mãe que só tem os ossos do filho para enterrar? Não, claro que não. Você governa da distância, acredita que relatórios e discursos substituem a realidade.
Lys respirou fundo, mantendo o olhar fixo nele. Quando respondeu, sua voz era firme, controlada, e carregada da frieza.
— E você acredita que a humanidade de alguém pode ser medida pela familiaridade com a morte? Isso é o que sobra de você, Ian? Um homem que reduz o valor dos outros à quantidade de sangue que viram derramar?
As palavras açoitavam, mas sem perder o tom calculado. Ela não gritou, não se exaltou. Apenas devolveu o peso.
Ian ficou em silêncio por um instante. A raiva pulsava nele, mas algo na resposta dela o fez parar. Inspirou fundo, fechando os olhos por um segundo, e quando voltou a falar, a voz era baixa, mas firme.
— Eu vou seguir o plano. Vamos chamar atenção, erguer muralhas de gelo, impressionar reis e camponeses. Mas não comemore isso perto de mim. — Ele a fitou, duro. — Nunca.
Levantou-se, o sobretudo azul ainda manchado, e virou as costas sem esperar resposta.
Lys ficou imóvel, a respiração acelerada apesar da postura ainda ereta. As palavras dele queimavam, mas não sabia dizer se era raiva, vergonha ou apenas o incômodo de ser confrontada dessa forma.
Foi então que sentiu uma pequena rajada de vento e ouviu uma voz atrás de si.
— Sabe… você foi boa. — Thamir surgiu, as mãos nos bolsos, o sorriso torto sempre presente. — inverteu a discussão com maestria, colocou ele na defensiva. Foi bonito de ver.
Lys se virou devagar, o olhar frio. — Não pedi sua opinião.
— Eu sei. — Thamir deu de ombros. — Mas vou dar mesmo assim.
Ele se aproximou um passo, o olhar agora mais sério. — Se você não quiser fazer besteira, precisa encarar o que ele disse. Não adianta se esconder atrás de palavras bonitas.
Lys estreitou os olhos. — Você tem algo a sugerir então? ou apenas veio tentar me julgar?
Thamir sorriu, mas sem o humor habitual.
— Vá ver o que as famílias perderam. Sinta o vazio de alguém que enterra tudo o que tinha em uma cova rasa porque não tem força ou alguém para ajudar. Aí imagine alguém comemorando uma “boa impressão” enquanto você segura isso nos braços. — Ele inclinou a cabeça, a voz baixa, quase um sussurro. — E me diga se ainda acha que conseguiu vencer a discussão.
Ele se afastou, deixando-a sozinha no campo. O vento voltou a soprar, mas o frio que Lys sentia não vinha dele.
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