Capítulo 175: O reflexo da verdade
Clara olhou para o garoto seriamente. Os primeiros raios de sol iluminavam os túmulos do cemitério. Era como se a aurora abraçasse o gótico.
No entanto, o guardião dos mortos já tinha partido.
— Eu não sei qual o seu plano, Renato — disse a súcubo —, mas você precisa saber de uma coisa. Exu Caveira não é a única criatura no universo que sabe quando os outros estão mentindo. Na verdade, algumas outras criaturas compartilham poder semelhante.
— Está falando do…
— Sim. Raziel.
— Entendo.
— Renato! — Jéssica o puxou pelo ombro. — Por favor, tome cuidado! Se mantenha firme! Não sucumba a…
— A meus próprios sentimentos? A essa raiva que tenta me devorar de dentro pra fora?
Jéssica mordiscou o lábio, hesitante.
— É… — finalmente respondeu, com a voz trêmula de dúvidas.
Ele mostrou a ela um sorriso terno.
— Não vou. Pode confiar em mim.
— Eu confio!
— Aqueles dois… — disse Lírica. — Eles são traiçoeiros. Não importa se são inimigos. Eles são iguais. Igualmente trapaceiros e cruéis! Não confie neles.
— Não confio. Confio apenas em vocês.
Ao ouvir essas palavras, a demi-humana emitiu um som semelhante a um ronronar, como o de um gato recebendo carinho.
Renato não resistiu e realmente fez cafuné nela, na cabeça, perto das orelhinhas.
— Eu quero ir com você! — falou Irina, incisiva, enquanto o abraçava forte, quase como se o estivesse guardando-o apenas para si.
— Eu sei. Mas não pode. Precisa me deixar ir sozinho.
— Eu não quero deixar!
— Eu sei.
— E se você precisar de ajuda?
— Eu dou um jeito de te chamar.
— Humpf! Fala como se fosse muito fácil!
— Pra você, eu sei que é. Se eu te chamar, tenho certeza que você cruza meio planeta pra ir me ajudar.
— Meio planeta não! Planeta inteiro! É bom mesmo que saiba disso! — retrucou ela, rabugenta.
— Renato — disse Mical. — Estou rezando por você! Acredito que vai dar tudo certo!
Logo em seguida, ele pegou um punhado de terra de cemitério com a mão. Colocou o dedo da outra mão na boca e o mordeu. Pressionou a pele entre os dentes até sentir o gosto de sangue. Depois deixou pingar uma gota vermelha no punhado de terra em sua mão.
Fechou os olhos.
Visualizou em sua mente o símbolo que Clara tinha lhe mostrado mais cedo, proveniente do grimório As Clavículas de Salomão: um tipo de círculo mágico, com algumas letras em volta, e um tipo de selo no centro, que lembrava uma runa distorcida.
— Belfegor…! — murmurou.
— Me chamou? — Ouviu a voz do demônio sussurrando em seu ouvido.
Abriu os olhos e lá estava Belfegor, diante dele, o encarando com um sorriso zombeteiro, do tipo que se diverte com a confusão alheia.
— Mestre Renato… quer falar comigo?
— Quero sim.
Ele olhou em volta. Não estava mais no cemitério.
O local era bem iluminado. As paredes, o teto e o chão eram totalmente esculpidos em pedra. Tinha um certo ar de nobreza.
Nenhuma mobília.
Apenas um túnel que mergulhava numa das paredes.
— Que bom que precisa de mim! Por acaso seu estoque de vinho acabou? Eu posso conseguir mais.
— Não. Não é isso.
— Então ilumine-me.
— O anjo. Quero falar com ele.
— Anjo? Seria Raziel?
— E quem mais poderia ser?
Belfegor deu de ombros.
— Vai saber. — Ele parecia esconder mais do que revelava.
— Onde ele está?
— Por ali. Siga-me, por favor.
Seguiram pelo túnel.
O som de gotas de água pingando era constante, e o cheiro de mofo e coisa velha incomodava o nariz.
No caminho, passaram por várias outras passagens na terra, que Renato começou a se perguntar se era normal demônios gostarem de viver como formigas.
Em certo momento, ele ouviu um gemido de agonia, e foi como se algo rastejasse em algum canto distante.
— Que lugar é esse onde estamos?
— Ah, se eu te contar, você não vai acreditar!
— Acho difícil alguma coisa me surpreender hoje em dia!
— Estamos debaixo do Vaticano.
Depois de alguns segundos de silêncio constrangedor, Renato finalmente disse:
— Ok. Isso me surpreendeu. Que diabos você está fazendo no Vaticano?!
Belfegor deu de ombros.
— A fé… como eu posso dizer…? É uma excelente bateria para o meu feitiço.
Renato ergueu uma sobrancelha.
— Que tipo de feitiço?
— Do tipo que enfraquece meus convidados e mantém eles sob controle, é claro.
Chegaram numa sala pequena. A iluminação vinha de cristais mágicos no teto.
Estava quase vazia, com exceção de uma mesinha onde se encontravam alguns itens peculiares: algumas lâminas e instrumentais com ponta perfurante. Também havia alguns frascos com líquidos desconhecidos.
O cheiro de álcool perfumava o ar.
E, numa cadeira, preso por correntes prateadas, estava o arcanjo Raziel.
Sua boca estava amordaçada.
Os olhos inexpressivos, sem cor, como água, deslizaram em direção a Renato.
O garoto se aproximou e tirou a mordaça.
Os dois apenas ficaram um tempo se olhando em silêncio.
— A que devo a honra de vossa visita? — disse o anjo.
— Visita? Você não parece muito confortável.
— Conforto nem sempre faz parte dos planos de Deus.
— Sei… Quero te perguntar uma coisa.
— O que tu queres não importa.
— Talvez importe. Como sabia que Peste estava em Cuiabá?
— Por que queres saber? Pensas que eu não sei de vossa reunião com os cavaleiros? Finalmente decidistes unir-se a eles? Os malignos realmente complementam-se!
— Se quiser, podemos usar tortura para fazê-lo falar, mestre Renato! — disse Belfegor, segurando um bisturi que pegou da mesinha.
— Não precisa. Pelo menos, não por enquanto — respondeu. Então voltou-se ao anjo. — Na verdade, eu decidi outra coisa. Decidi que vou matar Peste! Vou acabar com aquele miserável repulsivo!
O anjo o analisou por um instante, e então respondeu:
— Sabíamos onde ele estava graças a nossos serviços de inteligência.
— Em que lugar da cidade ele está?
— Tal coisa não tem mais importância.
— O quê? Como assim não tem?! É claro que tem importância! Sabe o que ele tá fazendo na terra agora?
O anjo deu de ombros.
— Sei. Mas tu realmente te importas com o que ele está a fazer, ou apenas busca vingança pessoal? Tu realmente te importas com as pessoas, Condutor de Arimã?
— E você… se importa, anjo?
— Não. Mas eu não sou humano. Apenas sigo as ordens celestiais.
— E a ordem não é que matem os cavaleiros? Eu vou matar Peste! Deveria me ajudar!
— Não importa mais porque já está feito. Peste morrerá de um jeito ou de outro! O destino do cavaleiro já está selado.
— E quem vai matá-lo? Os anjos? Porque eles não pareciam estar ganhando a batalha no céu!
— O que viste outro dia era apenas uma missão de reconhecimento. Não era uma batalha real. Agora que sabemos onde ele está, o Ophanim será enviado! Um único disparo eliminará Pestilência.
— É… e junto de toda a minha cidade.
— Metade de vosso Estado, em verdade.
— Eu consigo derrotá-lo!
— Não importa.
— Ainda podemos usar a tortura — Belfegor balançava o bisturi entre os dedos. Tinha uma cara de tédio.
Renato pensou por um momento. Raziel não parecia ser do tipo que sucumbia à tortura. Era obstinado. Mas até ele deve ser racional o bastante para ponderar algumas opções.
— E se eu te libertar?
— O quê? — Belfegor arregalou os olhos. Não gostou do que ouviu.
— Tu serias deveras ingênuo. Eu mataria tu e este demônio ao teu lado.
— Seria impossível. Não é mesmo, Belfegor?
O demônio limpou a garganta.
— Sim. Ele não teria chance. Mesmo que ele cuspa o ouro hiperdecaído de seu estômago, meu feitiço envolve todo este lugar e enfraquece qualquer um que seja uma ameaça para mim.
— Vê? Você não nos mataria, mesmo se tentasse. E quer saber? Eu aposto que você quer se juntar aos seus irmãos anjos na batalha. Eles lá, guerreando, saboreando a glória, e você aqui servindo de cobaia para um demônio! É isso mesmo que quer? Ser lembrado como o arcanjo que foi capturado um demônio, e que por causa disso ficou de fora da maior batalha de todos tempos?
Raziel ficou em silêncio. Ponderou por um instante.
— Se eu vos contar o que queres saber, como saberei se vais cumprir vossa palavra?
— Porque você sabe que estou falando a verdade, não sabe?
— Mesmo que estejas falando a verdade agora, tu poderias mudar de ideia.
— Da mesma forma que você. — Renato deu de ombros. — Eu te dou minha palavra, e você vai precisar acreditar nela. Além do mais, você sabe que eu estou falando a verdade agora. Eu não tenho nem mesmo essa vantagem. Você poderia mentir para mim, e eu não saberia. Vou confiar na sua palavra. Na sua honra. Peço que faça o mesmo por mim.
— Honra? — Raziel riu, mostrando seus dentes meio ensanguentados, por causa dos lábios e gengivas feridas — Isso ainda existe? — Deu de ombros. — Te darei uma tentativa. Se falhares, Condutor, usaremos o Ophanim.
— Fechado.
— Pestilência tomou para si um prédio do governo. Onde antes funcionava a Secretaria Estadual de Saúde, se transformou em seu antro de doenças. O local está cercado por aqueles que foram Rejeitados pela Sepultura. Os mortos que escaparam do Gehenna.
— Entendi. Belfegor! Me dê a chave das correntes.
O demônio hesitou. Ficou um tempo encarando Renato, talvez esperando que ele mudasse de idéia.
— Senhor Renato… este anjo…
— Me entregue as chaves! Você não disse que queria me servir? Então obedeça.
Belfegor suspirou e relaxou os ombros.
Uma luz brilhou em sua mão, e a chave surgiu.
Ele a jogou para Renato, que sem perder tempo destrancou as correntes.
O anjo se levantou. As asas se moveram em suas costas, como os membros de alguém se alongando. Então, Raziel começou a tossir, e finalmente cuspiu a bala de ouro hiperdecaído, que caiu no chão com um tilintar.
— Gratias ago — agradeceu em latim. — Mais uma coisa que pode interessar-te. Talvez, tu possas evitar o exército dos mortos da mesma forma que os cavaleiros.
— O que quer dizer?
— Lembra-te da vossa reunião com eles? Tu estavas numa realidade paralela à nossa, criada por eles. Chama-se O Reflexo da Verdade. Se puderes usar, poderás passar através dos Rejeitados e ferir Pestilência no próprio reino. Lembra-te: tens apenas uma única chance!
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