Capítulo 47 - Além
Fracasso…
Fisicamente, o senhor de todos os males, assim fora chamado pelos que ousaram nomeá-lo entre os seus, estava preso ao gelo.
Mas não era só o corpo que se encontrava ali. Além da carne, estava a essência, que sim sofria.
Em uma prisão mais funda, um cárcere que não se explicava em grades ou correntes, mas em distância.
Distância demais para pertencer àquele mundo.
Era como se estivesse arremessado para fora da criação.
Através de inúmeras, incontáveis paredes dimensionais, sua essência ecoava. Cada barreira era como uma muralha de vidro, transparente o suficiente para deixá-lo ver o outro lado, mas denso demais para permitir.
Noctherr se via cercado por fronteiras invisíveis, empilhadas umas sobre as outras, como um labirinto sem saída.
Era como se sua alma tivesse sido arrancada e colocada num limiar inalcançável. Além do mundo das almas, além do mundo dos homens.
Tocava, com a ponta da consciência, o limite da borda dos três mundos.
— Você é um maldito…
As palavras escaparam como ferro em brasa, e a boca dele expelia vapor. O ar congelado se partia em nuvens densas, mas não era apenas respiração… era um prenúncio.
O vapor se adensou, e então veio a explosão.
Um estalo, seguido por um rugido que não cabia em nenhum espaço conhecido. Não havia antes, nem depois: só aquele instante, que rasgava o silêncio primordial como um trovão.
Daquela erupção nasceu o inesperado.
Era como se o próprio nada tivesse sido fecundado. O primeiro sopro, o primeiro suspiro, um gesto mínimo que, no entanto, deu origem a tudo.
O mundo ou o que viria a ser chamado de interior existencial, ressurgiu neste intervalo. Disforme, inacabado, ainda tateando entre sombra e claridade, mas já carregando a promessa de forma.
Palavras e pensamentos eram as ferramentas, e bastou uma fagulha, um fiapo de expressão, para que o nada cedesse lugar ao início.
— Então você caiu na minha armadilha…
Enfim, veio a resposta…
A voz soava gélida, cortando o espaço como navalha. Surgia em meio a um horizonte de eventos, onde o eterno e o estático se enroscavam com o próprio fim.
De um lado, a correnteza fria disputava espaço com a escuridão sem nome; do outro, só o silêncio que pesava mais que uma parede de chumbo.
A resposta não era só som. Era presença. Era como se cada sílaba se derramasse sobre o tecido da realidade, deixando fendas invisíveis no ar.
Não havia eco, apenas o corte seco, limpo, que calava tudo ao redor.
Era um ponto de singularidade, um instante em que até o tempo parecia se recusar a seguir adiante. Uma dimensão estranha, daquelas que se experimenta apenas uma vez e nem sempre se sai vivo dela.
— Você jogou sujo…
Suspirou em ódio, a voz arrastada, quase um gemido sufocado. Seus punhos cerraram com tanta força que os nós dos dedos estalaram, e, naquele instante, sua natureza mental começou a se desfazer.
— Este lugar… não…
Não havia diferença em dizer e pensar.
— Não estava nem brincando… E eu, idiota, achei…
— Que venceria? — Era como um tapa no rosto. Cruel, desdenhosa, e trazia o amargor de quem já não acredita em inocência. A voz habitava um evento cósmico arrebatador, preenchia o espaço como se fosse a própria gravidade, dobrando tudo ao seu redor — Você deu metade de si, metade de seu caos, e ainda acredita que seria suficiente?
Eisfürst.
Sua essência, a única coisa que ainda sustentava a si e seu andar, já se expandia numa imensidão tão absurda que beirava a ironia. Não havia fronteiras, nem horizontes; apenas um mar de si, desdobrado em camadas infinitas.
Era maior que uma galáxia inteira, vasto a ponto de tornar insignificante qualquer medida. E lá, flutuavam flocos de neve, cada um do tamanho de estrelas, rodopiando como se fossem dois astros binários.
Esses cristais imensos tilintavam ao se encontrarem, liberando ecos que lembravam sinos fúnebres.
Eram belos e terríveis, fragmentos gelados de uma essência que se recusava a desaparecer.
— Por que você insiste nessa coisa?
Pela segunda vez em sua vida, sua voz saiu embargada, carregada de frustração.
E… a salamandra se ajoelhou, os joelhos batendo contra a própria essência, que se estendia sob seus pés… frágil, instável, menos firme do que uma prancha de surf flutuando em mar revolto.
— Porque você insiste? — repetiu, quase implorando — Eu quero entender… o que você fez… para se tornar alguém ilimitado…
O silêncio pesou.
— Ilimitado?
— Não finja! Mesmo agora eu só estou atrasando tudo… mesmo escolhendo abdicar de um futuro ao posso frear seu avanço, eu quero saber… o que você fez para se tornar eterno?
Ele pousou a mão na cintura, só uma, enquanto a outra sustentava o queixo com a casualidade de quem finge civilidade.
— Terá paciência pra ouvir?
— Temos todo o tempo do mundo…
— Eu… — suspirou — Me perguntei, sabe… fiz um questionamento…
— Qual?
Ele apertou os dedos como quem prende uma lembrança que quer evitar perder.
— Por que perder tempo sustentando meu andar? Se eu era prisioneiro nele… então veio a resposta… que nenhum Deus ou contador de histórias sabe!
O ar estalou entre eles.
A ansiedade do caótico quase o tocou, e, por um instante. O nada se estendeu, contorcido, e se transformou numa eternidade gelada.
— Nossos andares são forças motoras! Você não tá sustentando nada além da ideia do que tá lá… o que você de fato representa é só você! — e fechou os olhos um segundo, cansado de ter que explicar o óbvio aos que se agarram a mitos — Você… Eu, nossos irmãos… não precisamos proteger nada no profundo! Isso é… uma invenção dos deuses e dos guardiões! Engenharia social, meu caro… puro teatro para manter ordem e equilíbrio!
Do rotacionar, o rei sombrio expeliu auroras cósmicas de si.
— Então? — Sorriu, malicioso — O que você acha, irmão…
— Eu…
A escuridão sob seus pés então explodiu, uma praga em movimento, iguais a tentáculos se estendendo para agarrar tudo que respirasse significado.
Eram dedos de nada tentando segurar o tudo.
Sorte que ali não havia mais coisa alguma além do nada…
— Então?
— Entendo meu papel agora… — falou, e não havia derrota em sua indagação — Você não é só uma ameaça para eles… é uma ameaça pra nós. Pra nós que aprendemos a viver nessa mentira!
O sorriso murchou por um segundo, como vela ao vento.
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