Capítulo 95: Mesmo Que Doesse
A manhã mal tinha terminado quando olhei para o celular pela quinta vez ou algo assim. A mensagem ainda estava ali.
“Você está bem, Yuki?”
Ainda vazia de resposta.
Tinha voltado pra casa andando devagar, o corpo mais leve que a cabeça. Me joguei na cama e fiquei ali, encarando a tela como se estivesse esperando uma mensagem dela.
Por que aquilo tinha que acontecer com ela?
Era tão doloroso.
Respirei fundo, observando o teto girar devagar na minha visão. Pensei em apagar a mensagem… ou mandar outra. Mas antes que fizesse qualquer coisa a tela mudou de leve.
Visualizado.
O coração deu um leve salto, e continuei encarando aquela palavra por uns instantes, talvez esperando que ela digitasse algo ou assim.
Uma tentativa de entender o que se passava do outro lado da tela.
No entanto, esperei por alguns minutos… e nada aconteceu. Apenas visualizou a mensagem.
— O que eu faço… ?
Talvez… ela só não soubesse o que dizer. Ou talvez… estivesse esperando o silêncio passar.
Ou talvez, só talvez, estivesse precisando de algo que uma tela não conseguia oferecer.
Me levantei da cama e fui até a porta e desci as escadas. Minha mãe estava na sala com uma revista no colo, enquanto a TV estava ligada ao fundo
— Mãe… — comecei, devagar. — Eu vou sair de novo. Volto mais tarde.
Ela ergueu os olhos.
— Ah, tudo bem. Leva um casaco, tá ficando frio.
Hesitei um segundo, mas depois assenti.
— É. Tá mesmo.
Ela só fez um aceno pequeno com a cabeça, como quem entende mesmo sem precisar entender tudo.
Fui até o quarto, peguei um casaco leve, calcei os tênis e abri a porta.
O vento me envolveu na entrada, soprando devagar. Então saí. Sem saber exatamente o que faria quando chegasse.
Mas sabendo… que precisava ir. Estar com ela.
O hospital ficava a alguns minutos de caminhada do ponto de ônibus. O prédio era antigo, de tijolos claros, mas limpo e bem cuidado. Ao entrar, fui recebido pelo cheiro forte de desinfetante e pelo som de passos apressados andando pelos corredores longos.
Na recepção, pacientes esperavam sentados em fileiras silenciosas. Alguns olhavam o celular, outros simplesmente encaravam o nada.
Olhei ao redor, na esperança de encontrar algum rosto conhecido por ali.
E então, ao virar o corredor, vi ele.
Kaito estava sentado num dos bancos, com uma lata de chá verde nas mãos e uma expressão cansada, mas ainda carregando aquele traço relaxado de sempre. Uma das pernas cruzadas sobre a outra, ele girava a tampa da lata com o polegar quando notou minha presença.
Ele ergueu a sobrancelha, parecendo levemente surpreso com eu ali.
— Shin? O que você tá fazendo aqui?
— Oi, Kaito — murmurei, tentando encontrar um tom natural. — Eu… vim ver como ela tá.
Ele deu um risinho rápido, daqueles de quem já esperava por isso, e deu uma leve batida com o dedo na lata.
— Sabia! Tava apostando comigo mesmo que você viria.
— Ah — sorri de leve, mas logo me endireitei. — E então… como ela tá?
— Tá indo — respondeu, apoiando os braços nos joelhos com um suspiro curto. — Parece que foi só uma torção no tornozelo. Nada muito grave, ainda bem.
Ele se espreguiçou, esticando os ombros… quase como se carregasse o peso daquelas últimas horas.
— As amigas dela estavam aí até agora há pouco. Saíram faz uns minutos. Se quiser, pode entrar. Eu fico por aqui mais um tempo.
Assenti, hesitando por um instante.
— Tem certeza?
Kaito apontou com a cabeça para a porta do quarto, e me lançou um sorriso tranquilo, junto de uma piscada.
— Vai lá. Ela vai dizer que não precisava… mas vai ficar feliz de te ver.
Respirei fundo e caminhei até a porta.
Bati de leve, esperando a ouvir.
— Pode entrar — ouvi a voz familiar lá de dentro.
Girei a maçaneta devagar e entrei.
O quarto era simples, limpo, iluminado pela luz que entrava pela janela entreaberta. Havia um cheiro leve de remédio misturado com o sol do início da tarde.
Na cama, Yuki estava deitada, com o pé direito enfaixado e apoiado em uma almofada. A toalha que antes cobria seus ombros, estava dobrada sobre uma mesinha lateral perto de seus equipamentos de atletismo.
Ela virou o rosto na minha direção, e, por um segundo, pareceu até duvidar do que estava vendo.
— Shin!?
— Oi… Yuki — respondi com minha voz baixa, e o olhar levemente encarando o chão.
Ela piscou, confusa por um instante, depois soltou um riso leve, quase surpreso.
— O que você tá fazendo aqui!?
— Achei que devia vir… só pra ver como você tava. — cocei a nuca, meio sem jeito, desviando o olhar. — Ou algo assim.
Ela soltou uma risada baixa, e então balançou a cabeça.
— Não precisava mesmo! É só uma torção, já já me mandam pra casa!
— Ah… ainda bem. — As palavras saíram mais sinceras do que eu esperava, junto de um alívio que quase me desmontou por dentro. E ela parecia ter notado isso.
Ela abaixou os olhos por um instante e depois voltou a me encarar.
— Ah… E sobre a mensagem… — murmurou, pegando o celular desligado ao lado e me mostrando. — Eu vi, mas o celular descarregou logo na hora. Queria responder, mas não consegui…
Ah.
— Não tem problema — respondi rápido, como se quisesse garantir que aquilo não importava mais.
E talvez… não importasse mesmo.
O silêncio tomou conta do quarto por alguns segundos. Nós dois… apenas ficamos ali. Como se ainda estivéssemos no meio do campo. Como se o barulho da torcida ainda estivesse ecoando por dentro da cabeça.
Eu olhava pra ela, e, de alguma forma, ainda via a Yuki que corria naquela pista. Mas naquele momento, com o corpo mais quieto, junto de um sorriso mais cansado.
O peso daquela cena ainda não tinha passado.
Tudo ainda era… frustrante.
Até que ela voltou os olhos para mim e levantou uma sobrancelha, com um sorriso leve no canto da boca.
— Que cara é essa, Shin? Tá parecendo que quem torceu o pé foi você.
Soltei um riso fraco, meio envergonhado com aquela situação.
— É que… — dei de ombros e murmurei. — Deve ser frustrante. Você se esforçou tanto e…
Ela não respondeu de imediato. O sorriso desapareceu aos poucos, e o olhar dela se voltou para fora da janela, como se estivesse olhando algo que só ela conseguia ver.
— É — disse, por fim, em voz baixa. — Eu estaria mentindo se dissesse que não estou frustrada… ou com raiva.
A sinceridade dela me pegou de surpresa. Uma sinceridade… sem camadas.
— Trabalhei tanto… me dediquei como nunca. E nem consegui chegar até o fim. — A voz dela era calma, mas parecia um pouco trêmula, como algo sendo contido com cuidado demais.
Continuei em silêncio.
…Queria dizer algo, qualquer coisa.
Mas tudo soava pequeno demais perto daquilo.
E talvez fosse melhor continuar assim.
— Às vezes parece que o universo só… ri da sua cara — Ela continuou, com uma risada seca e breve. — Tipo: “Ah, você se esforçou? Que pena, não ligo pra isso.” — Inspirou fundo. — Mas…
Virou o rosto de volta pra mim. O olhar ainda carregava dor, mas havia algo a mais ali também. Resiliência? Talvez.
— Essas coisas acontecem. Fazem parte. Não é como se a vida fosse um caminho reto, né? Eu ainda posso tentar a vaga no Nacional no ano que vem. E tem campeonatos menores por aqui também… — Ela mostrou um pequeno sorriso. — É só começar de novo. De novo e de novo, se for preciso.
— Você vai tentar de novo?
Ela assentiu, um outro pequeno sorriso se formando. Não era forçado, parecia cansado… mas verdadeiro.
— É claro! Não vou deixar que uma queda defina tudo. Não agora…
Houve uma breve pausa, e o quarto parecia mais silencioso. E então ela sorriu de novo, meio torto.
— Além disso… eu ainda vou fazer aquela pista pagar!
Soltei uma risada baixa, balançando a cabeça.
— Só promete que da próxima vez vai usar os dois pés direito.
— Prometo tentar — Ela cruzou os dedos no ar, rindo com um brilho leve nos olhos.
Por um segundo, fiquei parado, só observando. E percebi algo estranho.
Era como se… fosse ela quem estivesse tentando me consolar. Mesmo quando eu deveria fazer isso.
Mesmo depois de tudo.
Mesmo com a dor, com a frustração, com o que tinha perdido… ela ainda sorria pra mim.
Claro.
Talvez só estivesse tentando ser forte na minha frente. Talvez só escondendo tudo por trás daquele sorriso pequeno.
Mas ainda assim, ela sorria.
E isso, de algum jeito, foi o que mais doeu… e o que me deixou admirado.
— Mas falando sério… — continuou, voltando o olhar para a janela antes de me encarar outra vez, com um sorriso no rosto e um leve rubor nas bochechas. — Obrigada por ter vindo me ver, Shin.
— Não foi nada — respondi, sem pensar muito. — Você teria feito o mesmo por mim.
Ela assentiu, com um sorriso discreto.
— Com certeza.
Ficamos ali por mais alguns segundos. Depois me levantei devagar e me despedi, dando uma última olhada no quarto antes de sair.
O silêncio parecia mais leve, mais… em paz.
Do lado de fora, Kaito ainda estava sentado, com o celular na mão. Quando me viu, abaixou o aparelho e me lançou um olhar breve.
— E aí? — perguntou. — Como ela tava?
— Bem — respondi, depois de um instante. — Ou pelo menos, tentando estar. Acho que ela tá se esforçando pra parecer forte…
Kaito assentiu devagar, como quem já sabia.
— É… ela tem esse jeito. Faz parecer que tá tudo sob controle, mesmo quando não tá. — Tomou mais um gole do chá, sem pressa. — Mas mesmo assim… obrigado por ter vindo.
— Ela disse que não precisava… — murmurei, lembrando das palavras dela.
— É. Ela sempre diz isso — ele deu uma risadinha de canto. — Mas precisava, sim. Ela só não gosta de mostrar.
Ele continuou, me olhando… de uma maneira esquisita.
— Mas bem, você já deve ter percebido isso, né? Vocês dois parecem tão próximos — ele disse, sorrindo de um jeito meio idiota.
Aquele comentário acabou me pegando de surpresa, e logo desviei o olhar, com vergonha.
Próximos…?
…Talvez?
O que ela achava?
Não, não.
— Ah… sim, talvez. Não sei — murmurei, com as bochechas vermelhas.
— Sim? Não sabe? Se decide logo, Shin — ele começou a rir mais alto. — Mas eu já te disse: Se for você, eu aprovo!
“De novo isso!?”
— E-eu não sei do que você tá falando! — respondi, com a rosto queimando e o coração acelerado de leve.
— Claro, claro…
Ficamos ali, sem dizer nada por alguns segundos, o ambiente mudando levemente. Um pouco mais sério.
— Ela vai ficar bem, né?
— Claro que vai, não se preocupe — respondeu com convicção. — Ela só precisa de um tempo… e de gente que esteja por perto quando ela quiser falar. E de um pouco de silêncio.
Permanecemos ali por mais alguns segundos. Depois, me despedi com um aceno e comecei a seguir pelo corredor. Passei pelos enfermeiros, pelas cadeiras de espera, pelas conversas baixas e o som dos passos nos corredores.
Até sair do hospital.
A brisa suave do começo da tarde me envolveu completamente. O céu estava limpo, o tipo de azul que não se vê todos os dias.
Respirei fundo.
Yuki era forte.
Mesmo depois de tudo, mesmo machucada, ela ainda sorria. E aquele sorriso… não era de quem venceu, mas de quem decidiu continuar tentando.
“É só começar de novo. De novo e de novo, se for preciso.”
Mesmo que… ela tenha caído. Perdido a vaga para os Nacionais.
Ela ainda iria tentar novamente.
E no fim das contas… isso era ainda mais difícil do que vencer. Mas ela… ainda assim, continuava.
Mesmo que doesse.

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