Capítulo 65 - " Lembranças do Metal "
As carruagens reduziram o ritmo à medida que a estrada se abria em uma clareira. O som das rodas sobre a terra deu lugar ao estalar das rédeas, e os soldados começaram a se mover com a disciplina costumeira. Logo a rotina tomava forma, tendas sendo erguidas com movimentos rápidos e sincronizados, estacas sendo fincadas no solo úmido, e fogueiras iniciadas em pontos estratégicos para afastar o frio.
Mais ao fundo, algumas guardas se reuniram em pequenos grupos, dividindo tarefas enquanto o olhar curioso se desviava, aqui e ali, para a carruagem real azul onde viajavam Lysvallis e Ian.
— Eu vi quando ele saiu tarde da tenda dela ontem à noite — comentou uma das guardas, ajustando a tira do elmo. — E hoje cedo… juntos, direto para a carruagem.
— Você acha mesmo…? — outra respondeu, com um meio sorriso.
— Não tenho dúvidas. — A primeira deu de ombros, como se fosse a conclusão mais óbvia do mundo.
Um burburinho baixo começou entre elas, mas foi cortado pela chegada apressada de uma terceira guarda, que bufava depois da corrida.
— Parem com isso — disse, séria. — Se querem cochichar, façam em outro momento. Os dois estão logo ali, seguindo em direção ao rio.
Os murmúrios se desfizeram de imediato, substituídos pelo silêncio constrangido. Mas as guardas não resistiram a trocar olhares cúmplices, como quem guardava uma teoria que só ganhava mais força.
Alheios à conversa, Ian e Lysvallis caminhavam lado a lado até a margem do rio. A água corria calma, cristalina, refletindo o céu limpo do início da tarde. Corria rasa em quase toda a extensão, alcançando apenas a cintura nos trechos mais fundos, alimentada pelo degelo das montanhas. A paisagem exalava uma serenidade que destoava dos dias turbulentos.
À beira do rio, Kael e Thamir já estavam ocupados com seu trabalho. O primeiro organizava pequenas ligas metálicas, separando cada peça com precisão quase obsessiva, enquanto o segundo afiava o olhar crítico sobre os preparativos, como se buscasse falhas invisíveis.
— Já estão montando a ferraria? — Ian perguntou, quebrando o silêncio com um sorriso discreto.
Kael ergueu o rosto, a expressão serena de quem se orgulhava da tarefa. — Começando, pelo menos. a parte mais rápida vai ser aquecer o metal, molda-lo da forma correta sem as ferramentas certas que vai ser o desafio..
— E até lá ele vai ficar reclamando de tudo que eu fizer. — Thamir completou, atirando uma pedrinha no rio, sem se preocupar em disfarçar a provocação.
Ian riu baixo, enquanto Lys apenas balançou a cabeça, como se já estivesse acostumada com o tom dos dois.
— Kael — Ian disse, aproximando-se um pouco mais —, poderia me fazer um favor?
Kael ergueu uma sobrancelha, curioso.
— Explique para Lys a origem do meu pingente.
Por um instante, Lys fixou o olhar nele, surpresa com a súbita menção. O pingente ainda lhe era um mistério, mas ela guardava a memória da última conversa, a promessa de Ian de explicar quando estivessem em um lugar seguro.
Kael olhou de Ian para Lys, e um pequeno sorriso puxou o canto de sua boca.
— Posso explicar, sim. Mas só se você me permitir forjar uma corrente digna para ele. Esse pedaço de couro que você usa… — ele balançou a cabeça, reprovando. — É uma afronta ao trabalho que tive nesse artefato.
Ian sorriu de canto, aceitando a provocação.
— Está bem. Uma corrente digna, então.
O som suave do rio continuou correndo, enquanto os quatro permaneciam juntos à beira da água.
Ian se despediu com um gesto rápido, voltando ao acampamento.
— Melhor eu não ficar por perto. — murmurou antes de sair. — Vai que a mana resolve me pregar uma peça.
Lys acompanhou sua partida com os olhos, mas logo desviou o olhar quando percebeu Kael a observando. O forjador organizava pequenos fragmentos de metal sobre um pano, ao lado das ferramentas.
— Então, Alteza… — ele começou, com voz calma — o quanto sabe sobre forja e encantamentos?
— Não muito. — Lys admitiu, erguendo o queixo em leve desafio. — Apenas o que os livros registram.
— Livros… — Kael sorriu de canto, como quem sabia a limitação daquilo. — Eles falam do fogo, do martelo, do barulho. Mas o que define uma arma ou um artefato é o que se coloca dentro dela.
Ele ergueu um dos fragmentos, deixando-o brilhar sob a luz do sol.
— A liga é o corpo. A mana é o sangue. E o encantamento, o coração. Se um desses falha, tudo o que resta é metal morto.
Thamir, que até então observava o rio tranquilamente, bufou.
— Você está forjando ou recitando poesia?
Kael riu baixo, acostumado com as provocações.
— Pode chamar de poesia se quiser. Mas se errar o corpo, o sangue ou o coração, não importa o quanto se martela… o artefato nunca vai funcionar.
Ele voltou-se então para Lys, mais sério:
— Foi isso que Jyn compreendeu. O pingente de Ian foi graças a ela que resolvemos o primeiro e maior problema: a liga. Cinco anos, Lys. Por cinco anos ela ficou despejando despejando a própria mana bruta em um único fragmento de metal até que ele se tornasse algo único, compatível com o que queria alcançar.
Lys permaneceu em silêncio, absorvendo a informação.
— Mas só isso não bastava. — Kael continuou. — Um mestre forjador pode moldar a forma, gravar os caminhos por onde a energia deve fluir. É o processo mais delicado, onde se desenha como a mana vai circular, onde se ancora o que se deseja que o artefato faça. Esse processo depende inteiramente da habilidade do forjador, então pude ajudar Jyn nessa parte.
Thamir se inclinou, jogando uma pedra pequena no rio, como se estivesse apenas entediado, mas a voz saiu carregada de ironia.
— Em resumo, Alteza: escreve-se o manual de instruções dentro do metal, ou ele explode.
— Obrigada pela imagem útil. — Lys respondeu, seca, mas sentindo a boca repuxar em um meio sorriso.
Kael seguiu, ignorando a troca.
— O terceiro elemento é o que dá identidade ao artefato: o coração. — Kael juntou as ligas que estava separadas no pano em uma ordem especifica, prendendo o material no meio das duas mãos — O coração é o que separa uma arma simples de uma arma encantada, afinal é o que vai manter o encantamento estável.
O ar ao redor deles começou a esquentar aos poucos, e foi quando Lys viu entre os dedos de Kael um brilho incandescente. Ele estava aquecendo o metal em suas mãos — Se quiser calor, usa mana de fogo, ou até o núcleo de uma criatura flamejante. Se quiser resistência mental… precisa de algo que a represente.
Ele apontou para Thamir com o queixo.
— Por isso ele está aqui. A mana dele é imune a ilusões e ataques mentais. Não basta desenhar os caminhos no metal, precisamos que a essência dele esteja na liga. Sangue e mana de Thamir serão a âncora desses novos emblemas.
— Mas não serão perfeitos. — completou o próprio Thamir, erguendo uma sobrancelha. — Kael não tem cinco anos nem o luxo de uma liga única como a do pingente de Ian. O que vamos fazer é… funcional. Bom o bastante para impedir que alguém perca a mente rápido demais.
Kael acenou em concordância.
— O pingente de Ian foi feito com tempo, com uma liga única, um mestre ferreiro e como núcleo o sangue e a mana de uma maga emocional extremamente poderosa. É por isso que funciona como funciona. O que vamos criar hoje é proteção emergencial. — ele colocou a bola de metal incandescente, sobre a mesa e começou a molda-lo.
Lys observava cada detalhe, os metais, o rio ao fundo, o olhar sério de Kael e o sarcasmo despreocupado de Thamir. Aos poucos, começava a entender por que Ian havia preferido deixar essa explicação nas mãos deles.
Kael ajustou o molde com mãos firmes. Os símbolos gravados no metal brilhavam em vermelho, como se fossem linhas vivas, palpitando sob o calor. Ele manteve o controle da forja improvisada até que cada traço estivesse perfeito.
— Thamir é agora — a voz de Kael soou grave, refletindo a sua concentração.
Thamir se aproximou se sem nenhuma cerimônia, fez um corte na palma da sua mão, deixando o sangue pingar sobre a forja e os metais que Kael forjava. em poucos instantes um medalhão prata estava forjado. Thamir simplesmente fechou a mão apertando um pano encima do corte.
— Agora vem a parte mais delicada. — Kael comentou, pegando uma das peças com a pinça e caminhando até a beira do rio. — Se a têmpera não for rápida o suficiente, os caminhos da mana se desfazem, e todo o trabalho vai para o lixo.
Ele mergulhou o metal no rio. Um chiado forte ecoou, vapor subiu e se espalhou pelo ar como uma neblina quente. Lys acompanhava com atenção, mas percebeu que Thamir a observava de soslaio, como se tivesse algo a acrescentar.
— Esse pingente do Ian… — ele começou, quebrando o silêncio.
O nome soou estranho para Lys, mas ela não interrompeu.
— Ela amava Ian. E Ian a amava também. Mas ela carregava uma dúvida que a consumia: se Ian a amava por quem ela era… ou se era apenas efeito da magia.
Lys ergueu o olhar, surpresa.
Thamir continuou:
— Magos emocionais influenciam o ambiente, queira ou não. Ian, por exemplo, quando libera a mana, resfria o ar para todos ao redor, não apenas para seus inimigos. Com ela era parecido, só que com emoções. Alegria, confiança… amor. Ela mesma não sabia até onde aquilo era real.
Kael retirou a peça do rio, observando-a brilhar em azul pálido por alguns instantes antes de esfriar de vez. Thamir a olhou, mas parecia falar mais consigo do que com o forjador.
— O pingente foi a maneira dela de ter certeza. Ela o moldou, dia após dia, durante cinco anos. Colocou nele um bloqueio contra qualquer influência emocional, e também contra ilusões mentais. Queria garantir que, quando Ian dissesse que a amava, seria ele mesmo. Sem interferências.
Lys sentiu o peito apertar. Havia algo de profundamente humano naquela história, tão longe das lendas sobre Guardiões que ela ouvia desde criança.
— E depois? — ela perguntou, quase num sussurro. — O que aconteceu quando ele começou a usá-lo?
Thamir abriu um sorriso breve, mas verdadeiro.
— O que voce acha? eles viveram bem. Por muito tempo, depois disso.
Kael girou a peça recém-forjada entre os dedos, testando o peso e a firmeza. O pingente circular refletia a luz suave do entardecer, ainda guardando em si um leve brilho residual. Estendeu-o para Lys com um gesto simples, mas firme.
— Aqui está. Não é perfeito como o pingente do Ian, mas vai servir ao propósito.
Lys pegou o artefato com cuidado, os dedos hesitantes como se temessem quebrá-lo. O metal estava frio, mas não era apenas a temperatura que a fez estremecer. Era o que aquilo simbolizava.
O pensamento a atingiu de repente: “é por isso que ele não quis me contar pessoalmente”. Ian não evitava apenas explicar a parte técnica. Ele evitava abrir a ferida que o pingente representava.
Lys apertou o objeto contra o peito, guardando-o logo depois. Respirou fundo e começou a caminhar de volta em direção ao acampamento.
O movimento ao redor era intenso soldados finalizando de erguer as tendas temporárias, guardas ajustando os mantimentos para a noite, Jovens das grandes casas conversando entre as carroças. E foi do outro lado do acampamento, em meio ao caos organizado, que ela o viu. Ian estava de pé, encostado em uma carroça, os olhos fixos nela como se a esperasse desde o inicio.
Quando os olhares se encontraram, ele apenas fez um gesto com a cabeça, chamando-a sem palavras.
Lys hesitou por um instante, mas acabou cedendo. Ajustou o manto sobre os ombros e atravessou o acampamento até alcançá-lo. Ela não sabia o que dizer após a revelação da historia por trás do pingente. mas curiosamente Ian não disse nada até que se afastaram o bastante.
— Eu estou indo treinar. — disse, de forma direta, o tom carregado de naturalidade. — Se quiser, pode se juntar a mim.
Lys arqueou uma sobrancelha, avaliando a proposta. A oferta soava quase como um desafio, e a forma como ele a dizia, como se fosse apenas um detalhe, só reforçava isso.
Eles seguiram lado a lado até que a floresta se abriu em uma clareira. O sol já se punha, tingindo o céu de tons alaranjados. Ali, sentada sobre uma pedra com a espada apoiada nos joelhos estava Aisha. Ela levantou o olhar e sorriu, como se já soubesse que aquele encontro estava marcado.
A tensão do dia e da conversa anterior parecia se dissolver aos poucos, ela iria conversar com ele em outro momento, mas agora o nervosismo dela era substituído por algo novo, a promessa de aprendizado e talvez de confronto.
— Aisha. — A voz de Ian quebrou o silêncio da clareira. — Prepare-se.
Aisha se levantou da pedra onde estava sentada, girando os ombros para soltar a tensão. A espada já estava em mãos, como se tivesse esperado aquela ordem o dia inteiro.
Lys franziu o cenho, confusa.
— Espere. — ela olhou de Ian para Aisha. — Quer que eu lute contra ela?
— Exato. — Ian respondeu sem hesitar. — Vai ser uma simulação. Nada de golpes letais, mas sem segurar o braço.
Lys quase riu. O som morreu antes de sair, transformado em incredulidade.
— Você sabe quem eu sou, não sabe?
— Sei. — Ian cruzou os braços, os olhos fixos nela.
Lys abriu a boca para retrucar, mas Aisha avançou um passo, um sorriso discreto no rosto.
— Não precisa se preocupar Lys. — disse a jovem. — Não vou quebrar você logo no começo.
A provocação ferveu no peito de Lys, mas ela não recuou. Ajustou o vestido simples que usava para viagem, sentindo a mana se agitar nas veias.
— Muito bem. — murmurou. — Se é isso que querem, não vou recusar.
— Ótimo. — Ian recuou alguns passos, dando espaço. — Então comecem.
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