Capítulo 0 – Profecia
Conto: Um deus esquecido pelo tempo
O deus jazia no chão, o corpo dilacerado, os ossos quebrados sustentando um peso que já não lhe pertencia. O frio da morte se infiltrava por entre suas veias, mais cortante que qualquer lâmina. O cheiro metálico do sangue impregnava o ar, denso, sufocante, misturado ao odor de carne queimada e de poeira encharcada em lágrimas humanas.
Ao redor, um campo profanado se estendia até onde a vista alcançava. Corpos de deuses e mortais se confundiam na lama, amontoados em poses grotescas, como se a própria guerra tivesse esculpido uma obra macabra em carne e ferro. Entre lanças partidas e escudos rachados, as bocas abertas dos que tombaram ainda pareciam gritar, mas já não havia som algum, apenas o silêncio pesado de um mundo que havia sido condenado.
Ele tentou erguer os olhos, e a dor que explodiu em seu peito fez o gosto de ferro inundar sua boca. Ainda assim, viu. Viu a carnificina que ajudara a construir. Viu os mortais, esmagados como formigas, amontoados em pilhas sem nome. Viu os deuses, antes tão altivos, reduzidos a cadáveres sem luz. E em seu íntimo, uma verdade se impôs como uma sentença: os humanos haviam sido os que mais pagaram pela arrogância divina.
Horrorizado, percebeu-se nu diante da realidade que sempre recusara enxergar. Ele, que outrora se embriagara da própria glória, que acreditara na eternidade de sua força, agora não passava de mais um corpo esquecido na lama. E, pela primeira vez, compreendeu. Tudo poderia ter sido diferente. Se a soberba não os tivesse cegado, se a ganância não os tivesse corroído, talvez ainda houvesse um mundo a proteger.
Mas agora era tarde demais.
O silêncio que pairava sobre o campo de batalha foi rompido por uma voz profunda, carregada de um peso que não pertencia a este mundo. A figura encapuzada ergueu-se entre cadáveres, seu manto rasgado pelo vento, mas intacto diante da guerra. Não havia cicatrizes em sua pele, nem sangue em suas mãos, apenas o brilho insuportável de quem já se sabia vitorioso.
— A guerra terminou… — sua voz ecoou como trovão. — E Eu sou o vencedor.
Entre a lama e o sangue, alguns poucos deuses ainda respiravam. Uma mulher de olhos cinzentos, com o escudo despedaçado contra o peito, arrastava-se até um homem de cabelos dourados cuja lira não passava agora de um arco partido. Outro, tentava erguer os mortais caídos, mas suas asas, estavam pesadas de sangue e lama.
Foi então que as sombras se moveram. Das trevas brotaram os servos do encapuzado, bestas, desumanas, como bonecos animados por uma vontade alheia. Eles avançaram como enxames famintos.
A mulher de olhos cinzentos ergueu a espada pela última vez, apenas para ter a lâmina arrancada e o peito atravessado. O pobre deus alado tentou correr, mas suas asas foram dilaceradas antes que pudesse dar o primeiro passo. O homem da lira, em um último ato de orgulho, fitou o céu vazio e arrancou uma única nota fraca de seu instrumento quebrado… antes que o som fosse engolido pelo silêncio.
Um a um, os deuses tombaram, como estrelas que perdiam o brilho e se apagavam. O anônimo, caído entre eles, observava impotente, sentindo o ódio arder dentro do peito, um ódio tão inútil quanto sua própria respiração moribunda.
E, quando o último deus cessou de respirar, os humanos que restaram foram cercados. Famintos, mutilados, sem armas nem esperança, eles olharam para o encapuzado. E, como se uma força invisível pressionasse suas espinhas, foram obrigados a se curvar.
— Adorem-Me. — disse o ser, com a voz que já não pedia, mas ordenava. — Pois Eu sou o vosso Deus.
E então, sobre os joelhos da humanidade derrotada, uma nova era de servidão havia ressurgido.
O silêncio forçado da adoração foi rasgado por uma luz repentina.
Do céu devastado, onde antes só havia fumaça e trevas, um clarão desceu como um relâmpago eterno. A poeira se ergueu, os corpos se iluminaram por um instante, e todos os vivos ergueram os olhos.
Uma figura surgiu entre as nuvens, maior que qualquer mortal poderia conceber. As asas, não de penas, mas de pura aura flamejante, rasgavam a escuridão como fogo branco. A armadura cintilava como se tivesse sido forjada com fragmentos do próprio sol. Era uma guerreira, uma mensageira, mas para os olhos moribundos do deus anônimo, ela parecia um anjo, descido para recolher as almas perdidas.
A sua voz soou como trombetas de guerra misturadas ao canto de um funeral:
— O tempo dos deuses chegou ao fim. Vossos tronos se quebrarão, vossas coroas se desfarão em pó. A eternidade vos será tomada, e todos conhecereis a mortalidade.
O ser encapuzado ergueu a mão, tentando sufocar sua presença, mas a luz dela se expandiu ainda mais, envolvendo o campo devastado.
— Mas haverá esperança. — Continuou. — De entre os homens nascerá um que terá o poder de decidir o destino: salvar ou destruir. Tudo dependerá de sua escolha. Sua chegada será marcada pelo sangue e pela dor, mas em suas mãos repousará o futuro de todos os seres vivos.
O clarão tremeu, e sua voz tornou-se ainda mais solene:
— Esse humano virá dentro de dois mil anos. Até lá, o mundo dos homens permanecerá sem a interferência divina. Que a humanidade caminhe por si mesma, até que o tempo esteja maduro para o julgamento final.
As palavras ressoaram pelo mundo como se fossem gravadas no próprio tecido da realidade. Os humanos que ainda estavam ajoelhados ergueram os rostos, confusos, como se pela primeira vez em muito tempo tivessem permitido a si mesmos acreditar novamente na bondade.
O deus anônimo, com os pulmões já falhando, fitou aquela figura luminosa. Para ele, não era uma guerreira, mas um sinal de que o futuro ainda podia ser redimido. E, no instante em que seus olhos se fecharam, sua última pergunta ecoou dentro da própria alma: haveria um lugar até mesmo para um deus após a morte?
O brilho da guerreira se intensificou, sua voz cresceu e a escuridão ao redor do encapuzado se fragmentou em fúria. O chão tremeu, o céu se rasgou, e o ser que se autoproclamara Deus foi lançado para fora daquele mundo, banido em meio a um grito que fez tremer a criação.
A luz cessou. O corpo da mensageira tombou logo depois, trespassado pelos servos do inimigo.
E, no silêncio que restou, os portais se fecharam para sempre.
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