Índice de Capítulo

    O som abafado de uma respiração exausta era a única coisa que se podia ouvir. Nem o grito do silêncio poderia dizer se ele estava vivo ou não, tampouco o sopro do ar.

    Uma das poucas coisas que podia sentir vinha dos ombros. Eram tensos e rígidos. Alguém tentava empurrá-lo para baixo? Ou seu próprio peso era demais para suportar?

    Acompanhando o ritmo do pulmão, algo, parecido com um coração, começava a bater mais intensamente, expandindo seu som ao horizonte, como passos que quebram os galhos e anunciam sua existência à floresta.

    Curiosamente, esse pulsar não vinha do peito. Por enquanto, a origem foi esquecida e a causa foi levada para o abismo, trancada para que nunca mais se levantasse.

    Enquanto as sensações do corpo voltavam em passos curtos, nada era possível enxergar. À frente, havia escuridão. No horizonte, o abismo tampava as sombras.

    Interrompendo o conforto das trevas, algo pousou sobre seus rígidos dedos, tão agudo e incômodo quanto uma abelha ainda em pouso.

    O que afetava apenas o dedo indicador se espalhou para o restante como tinta na água. Não demorou nem dez segundos para que a tremedeira afetasse ambas as mãos.

    A realidade não permite que ninguém adormeça em paz, e esse caso não foi diferente. Como um tapa abrupto no rosto, a escuridão foi substituída pela floresta na qual estava.

    Aquele pulsar, que julgou ser de seu coração, vinha dos antebraços, cobertos de inchaço e pelo tom vermelho, quase chorando o sangue que a pele protegia.

    Sem que sequer percebesse, os bufos faziam um trabalho melhor do que um ventilador, e seu suor caía tão intensamente que parecia desejar limpar a grama ensanguentada.

    É nesse estado em que se encontra Morfius: derrotado, mesmo sem um combate. Se quiser pelo menos levantar o pescoço, vai ter que se esforçar.

    E foi o que fez. Ainda que o peso do medo desprezasse desde as fibras até seus ossos, insistiu em ver o que estava acontecendo diante de sua presença.

    Aquele monstro, que aparentou ter a força equivalente a uma divindade apenas movendo os braços, agora estava caído no chão, com o nariz quebrado enquanto uma torneira de sangue fugia das narinas.

    A besta, outrora encarnação da força, agarrava as gramas com hostilidade, esmagando-as até que se tornassem parte do pó que se estendia pelo solo.

    Atrás desse ser, havia um humano. As pernas, ao mesmo tempo em que estavam ali, também eram inexistentes, tremendo com ímpeto para sinalizar ao corpo que não era mais capaz de exercer sua função, mas, ainda assim, foi obrigado a fazê-lo.

    No traje, sangue abraçava a areia que grudava mais do que o abraço. Os braços imploravam só por um instante de pausa, mas o ar envolvia os punhos e os fechava.

    Tudo, do pescoço aos pés, indicava dor e fragilidade, no entanto, seu olhar escarlate ainda fervia feito lava, queimando até o último resquício de teimosia.

    Se tudo o que precisa fazer para continuar em batalha é forçar seus membros a se moverem, assim será feito. Se um único golpe basta para sua vida deixar a terra, simplesmente não se deixe ser acertado.

    Diante de uma criatura que precisa acertar só mais um único golpe, seja ele direto ou não, Saito se mantinha firme. O que quer que aconteça, sabia que já estava escrito. Seu dever no roteiro é entregar a alma em cada ação.

    Segundos depois do golpe surpresa que sofreu, o demônio pintado de verde começava a se levantar, atendendo ao pedido de seu desafiante.

    Enquanto apertava o nariz para tentar frear o sangue, seus olhos, outrora serenos como o oceano, transitaram para a ira que uma tempestade representava.

    De um lado, havia o humano que foi tratado como um inseto indigno de atenção, manipulando o próprio corpo para se vingar de quem o enxergou como presa.

    Do outro, o monstro guardião do norte, que sempre viveu predando, agora era caçado pelo cervo que agia feito um leão, insatisfeito com a natureza.

    E, por fim, o espectador, escorado numa árvore, derrotado sem nem mesmo lutar, observando o embate entre dois predadores enquanto a verdadeira presa era deixada para depois.

    Enquanto aquela besta avançava sem racionalidade, desferindo socos ao vento esperando que um eventualmente acertasse, Saito, incapaz de mover o corpo por vontade própria, jogava ar no próprio torso para que pudesse esquivar.

    Apenas um elemento não seria o suficiente; os braços não encontravam brechas para alcançar o adversário. Era necessário algo que acertasse à longa distância, e ele tinha esse recurso.

    Quando os ataques desleixados daquele monstro tornavam uma brecha algo tão visível quanto uma montanha, o elemento Terra era convocado para atacar, moldado na aparência de um punho para golpear o predador.

    Enquanto essa luta pela sobrevivência se arrastava pela floresta, Morfius observava quieto, refletindo sobre a fraqueza dentro de si que nem ele mesmo conhecia.

    ”Ridículo…”

    Se Saito não tivesse aparecido e sua morte fosse hoje, seria algo honroso? Viveu e resistiu a tudo o que pôde só para partir de uma forma tão covarde?

    “Isso não tá certo, não…”

    À sua frente, alguém que nem conseguia se mexer estava lutando não só contra uma besta, mas, também, contra a própria sorte em uma pequena chance de ganhar.

    E ele, alguém que não consegue se mover por puro medo, vai deixar com que as coisas acabem dessa forma? Sua vida é tão insignificante assim?

    A agonia, crescente em seu peito, gritava incessantemente que minha indagação está incorreta. O orgulho, que todos carregam dentro da alma, não permitirá que essa história prossiga assim.

    “Se for pra passar vergonha… Que seja lutando.”

    Suas pernas tinham energia para levantar, entretanto, os braços inchados permaneciam jogados ao solo, como se fossem apenas sacos de carne.

    “Eu…”

    Os dentes, esmagando uns aos outros como uma prensa, preparava cada órgão para doar o máximo de potencial. Ou eles trabalhavam em intensidades inumanas, ou aceitavam a morte de vez.

    “Quero brilhar também.”

    Seus olhos, outrora mortiços, arregalavam-se com intensidade, quase expulsando as pálpebras do corpo. A pupila direita, reagindo a essa fome por redenção, transitava lentamente de cor para ciano.

    O palco está pronto. O cervo voltou-se contra seus próprios genes para que se tornasse um leão, e o único que pertencia a essa raça enfrentava a experiência de ser caçado.

    Utilizando o pouco de energia que restou de seus bloqueios falhos, começou a flutuar, aquecendo as fibras para um voo intenso em busca da vida ou morte.


    Longe, não tanto para ser distante, mas o suficiente para se perder se não houver cuidado. Ainda era a mesma floresta sem vida que exploravam, sem nada de novo.

    Em intervalos curtos, algo avançava e rasgava o ar, como se inúmeros jatos passassem por ali de repente, mas, não havia o rastro de nem sequer um deles.

    Correspondendo a esse evento, o vento agia contra sua vontade para que protegesse algo, enquanto a alma da terra era moldada exclusivamente para o ataque.

    Vendo através das brechas que as árvores permitiam, algo, pequeno e verde, atacava sem pausa um humano que já estava com o traje ensanguentado.

    Ao nos aproximarmos desse “duelo”, podemos narrar os detalhes importantes. Aquela criatura, estupidamente poderosa no quesito ataque, estava babando de ódio.

    Estava sendo uma noite frustrante demais. Quanto mais tentava acertar, mais o que seria sua presa se esquivava, como se seus movimentos fossem tão óbvios quanto o de uma criança.

    “Então era isso…”

    A besta, em um esforço quase inútil, tentou atacá-lo mais uma vez; no entanto, assim como em quase todas as outras tentativas, Saito esquivou-se feito uma marionete.

    “Tava absurdo demais pra ser verdade.”

    Saito, ao perceber uma brecha limpa no abdômen adversário, forçou o vento a esticar sua perna esquerda até lá, deixando a sola do pé rente à barriga.

    Logo depois, concentrou uma esfera de chamas e a disparou, como uma mangueira que cuspia fogo em um estoque que se limitava puramente à sua resistência.

    Enquanto o orc mordia os próprios dentes com a dor que tentava atravessar estômago, um pilar de pedra era convocado, acertando seu abdômen em cheio.

    Um gemido sem ar escapou dos lábios enquanto sangue, sutil como um ladrão, fugia da língua. Seu corpo, correspondendo ao impacto, foi jogado brevemente para trás enquanto entregava-se às gramas.

    “Seria desbalanceado demais para um semi-rei se não fosse dessa forma.”

    A besta, levantando-se enquanto mantinha a mão na região onde foi atingido, rosnava hostilmente contra Saito, deixando escapar dos lábios o que poderia ser lágrimas de ódio.

    “O que você tem de força, esse mundo tira na defesa, não é verdade?”

    Seus olhos escarlates brilhavam com ainda mais determinação assim que desvendou a fraqueza de uma muralha que parecia inquebrável, mas era fina.

    Agora, não faltava tanto tempo até o final dessa história. Novamente, como no começo do embate, ambos se encaravam, mas, dessa vez, em condições iguais.

    “Pode vir.”

    Saito esticava a mão e chamava o monstro com os dedos, em uma intenção clara de provocação, entregando gasolina a um furacão que já estava explodindo.

    Em resposta, a criatura rugiu feito um titã, estremecendo as raízes das árvores que já estavam secas, forçando algumas a caírem enquanto outras entregava as folhas como oferenda.

    Não muito tempo depois, a besta avançava em passos largos, deixando o punho esquerdo brevemente esticado para trás, entregando de bandeja suas intenções.

    “Idiota.”

    Saito, com os braços caídos, deixava o vento trabalhar de forma antecipada na perna direita, entregando-se a certeza de onde o golpe viria, mesmo que fosse incerto.

    Segundos depois, lá estava a criatura, frente a frente com seu adversário, preparado para mais um desvio, focando os olhos no seu braço esquerdo.

    Assim que o monstro bateu seu pé esquerdo no chão, Saito antecipou-se, movendo o torso para trás, esperando o possível golpe que tinha previsto, mas nada aconteceu.

    Contrariando tudo o que julgou óbvio, a besta pisou em seu pé direito, tentando garantir que ele não fugiria dessa vez, tampouco tornasse de seus pés machucados úteis.

    Saito, sentindo cada pequeno osso ser quebrado, berrava em uma dor que não esperava, entregando a única brecha que seu oponente tanto buscava.

    Agora, era só acertar esse segundo soco que desejava. Tudo tinha indícios de dar certo, até mesmo um sorriso precoce escapou de seus lábios outrora desesperados, mas, antes que pudesse acertar, seu passado próximo o julgou.

    Morfius, arremessando a si mesmo como a flecha de um arco, colidiu de cabeça com o monstro que havia desistido de caçá-lo minutos atrás, impedindo-o de terminar sua ação.

    Como esperado, caiu feito saco de cimento no chão; entretanto, seu golpe inesperado forçou aquela criatura a fazer o mesmo, permitindo a sobrevivência de Saito.

    Enquanto estava caído, seus dedos tremiam só de pensar em obedecê-lo, mas, não havia escolha agora. Ao mesmo tempo em que levantava-se com o apoio das gramas, seus olhares cianos observavam fixamente a besta caída.

    Ao recordar-se das duas opções que seu aliado lhe ofereceu com desprezo, forçou os lábios a se abrirem, respondendo com uma determinação tão grande quanto a de seu amigo dos olhos escarlates:

    — Eu escolho… lutar, Saito.

    Próximo Capítulo: Mar Vulcânico.

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