Acordei na cama de Pers, como já era natural.

    Ela dormia com a cabeça aninhada no meu braço, os cabelos brancos espalhados como raios de luar sobre os lençóis escuros. A respiração dela era calma e tranquila. Por um instante, fiquei apenas ali, observando. O tempo parecia ter congelado só para que eu pudesse apreciar sua beleza adormecida, tão serena, tão minha.

    Me movi com cuidado para não a despertar. Meus pés encontraram o chão de pedra fria do quarto. Deslizei até a pequena cozinha ao lado, silencioso, e comecei a preparar o chá de jasmim. O aroma se espalhou, adocicado e floral, como o perfume natural dela. Era o favorito dela. Eu o fazia todas as manhãs.

    Enquanto a água aquecia, olhei pela janela. Os campos de girassóis ainda estavam cobertos pelo orvalho da madrugada. O céu, tingido de alaranjado, anunciava os primeiros sinais do amanhecer.

    Foi então que senti seu corpo se mover nos lençóis atrás de mim. Ela bocejou suavemente, espreguiçando-se como um gato preguiçoso.

    — Amor… — sua voz arrastada pelo sono me alcançou. — Cheiro de jasmim?

    Sorri, ainda de costas.

    — O de sempre, amor.

    Ela apareceu e abraçou minha cintura por trás, o rosto escondido nas minhas costas.

    — Você me mima com tanto cuidado… — murmurou, com uma voz mais doce que qualquer chá.

    Depois, sentamos juntos numa pequena mesa. Ela pegou o pente e, com movimentos gentis, começou a arrumar meu cabelo. Como sempre fazia. E depois o dela, com a mesma calma e elegância.

    Tomamos o chá enquanto o sol subia. Por um tempo, só existiam os sons suaves da manhã: o vento passando pelos campos dourados, o leve tilintar das xícaras.

    E então, como todos os dias, ela se levantou, espreguiçou-se com graça e disse, com aquele sorriso cheio de energia:

    — Hora do treino, amor.

    Eu me levantei com ela. Porque era isso que fazíamos. Era assim que nos tornamos mais fortes, juntos. Era assim que se construía um futuro.

    Chegamos à arena ainda com o perfume de jasmim na pele. O céu, agora claro, derramava sua luz sobre o Coliseu dourado. As colunas gigantescas projetavam sombras longas, e como em todas as manhãs, Maximus já nos esperava ao centro.

    O imperador de Emberfell estava de pé, firme como uma montanha, os braços cruzados atrás das costas, o peitoral largo marcado sob a túnica vermelha. Assim que me aproximei, ele fez o gesto habitual desde o primeiro dia.

    Fechou a mão direita e a bateu com força sobre o lado esquerdo do peito, com um baque seco que ecoou entre os pilares.

    — Pax ad Emberfell.

    Era sempre a mesma saudação. Simples. Solene. Um desejo de paz para Emberfell, dito por um guerreiro que construiu a glória dessa paz com o sangue de mil batalhas. Eu retribuí o gesto com o mesmo rigor, não mais como um aluno imitando o mestre, mas como um homem que entendia o peso daquele símbolo.

    Após a saudação, Maximus virou de costas e começou a caminhar em direção à arquibancada, sem dizer mais nada. Isso significava uma coisa: hora do aquecimento.

    Comecei minha rotina como um ritual gravado na carne.

    Duzentas voltas correndo ao redor da arena. Meus pés afundando na areia. O sol escalando o céu.

    Quinhentas flexões, com o suor escorrendo e o corpo tremendo.

    Trezentos agachamentos, sentindo cada músculo das pernas gritar até parecerem feitos de pedra.

    Pers assistia tudo da arquibancada, sentada com um leque, um sorriso sutil nos lábios. Seus olhos me acompanhavam com aquela mistura perigosa de orgulho e desejo. Certa vez, ela havia comentado que gostava de como meus músculos estavam ficando, bem definidos, tensos, como se o corpo fosse uma escultura de guerra. Às vezes, pensar nisso durante os agachamentos me fazia quase esquecer a dor.

    Quase.

    Era quase uma pena perder aquele corpo ao reencarnar. Quase. Mas no fundo, se fosse por ela, eu perderia quantas formas fossem necessárias. O que nos ligava não era pele ou carne, era algo mais profundo.

    E mesmo com os músculos esticando como cordas, os ossos vibrando com o esforço, havia algo reconfortante em seguir aquele ciclo. Em ser moldado. Em crescer.

    Maximus voltava depois do meu aquecimento, o punho ainda ardendo em chamas vermelhas. Enquanto eu me preparava para mais um dia, sentia o peso do passado nos ombros e o futuro queimando no peito.

    “Pax ad Emberfell”, ele dizia.

    E eu sabia: mesmo que estivéssemos em paz, aquele era o campo onde se forjavam os deuses.

    Maximus ficou parado no centro da arena, a expressão impassível como o próprio tempo. Seus olhos eram dois sóis antigos queimando com expectativa.

    — Agora que seu corpo está preparado, e você, milagrosamente, manifestou aura mais rápido do que qualquer homem que já vi, chegou a hora do próximo passo, Hades.

    Ele estalou os dedos, como quem acorda um mundo inteiro. Naquele instante, o Campo Nulo se desfez.

    Senti o fluxo da mana de volta ao meu corpo como uma enxurrada. Minha alma se expandiu em alívio. A energia correu pelas minhas veias, escura como a noite, viva como a morte, cantando em harmonia com minha aura recém-desperta. Mas essa sinfonia não duraria muito.

    Maximus girou os ombros, estalando as articulações com o som seco do destino sendo escrito. Em seguida, ergueu os punhos, e todo o seu corpo foi consumido em chamas rubras. Não era só magia. Era a fusão de mana e aura. Um mago de combate com um legado que cheirava a cinzas e sangue.

    — O desafio agora é simples, amor da deusa. — O deboche arrastava-se no fundo da voz dele. — Acerte um soco em mim usando mana.

    Eu sorri. Confiante. Idiota.

    Avancei.

    Não dei nem meio passo.

    O mundo girou, e antes que eu pudesse entender o que havia acontecido, minha visão já estava deitada no chão, o céu rachado por trás do vulto em chamas que era Maximus. O golpe nem sequer tinha tocado meu rosto. Ele apenas moveu a perna num chute que deslocou o ar e meu espírito do corpo.

    Morte.

    Voltei.

    Avancei de novo.

    Dessa vez, canalizei mana nos punhos, mana morta, negra como vazio, um raio se formando nos dedos. Tentei me teleportar, crente que o pegaria desprevenido.

    Ele apareceu atrás de mim.

    A mão em chamas atravessou minha coluna.

    Morte.

    Voltei. Tonto. Determinado.

    Tentei de novo.

    E de novo.

    E mais uma vez.

    Usei as sombras, as ilusões, o tempo e o espaço. Em cada uma delas, morri.

    Não era só que ele desviava. Ele lia meus movimentos como se já tivesse visto todos os futuros possíveis. Como se soubesse o que meu punho queria fazer antes de mim. O inferno havia recomeçado. E dessa vez, as mortes vinham mais rápidas, e mais dolorosas, porque agora eu via cada detalhe do meu erro.

    Maximus não zombava. Apenas assistia. Cada morte era uma lição silenciosa. Cada falha era uma etapa da forja.

    O corpo caía. Mas a alma, a alma só crescia.

    A cada retorno, algo dentro de mim se ajustava. Pequenas engrenagens invisíveis giravam, refinando o que antes era erro bruto em tentativa lapidada. Eu acordava com os punhos mais firmes. A postura menos exposta. A mente mais clara.

    Na décima vez, percebi que ele sempre girava o quadril um centímetro para a esquerda antes de disparar um soco. Na vigésima, notei que ele deixava o pé direito ligeiramente afastado antes de saltar para trás. Na trigésima, entendi que seus olhos traíam a rota de seus punhos com milésimos de antecedência.

    E mesmo assim, morri. E morri de novo. E morri sorrindo.

    Porque cada derrota era um alicerce. Cada queda esculpia em mim uma precisão que eu jamais havia conhecido. Cada morte me devolvia mais leve, mais rápido, mais letal.

    As magias começaram a se moldar ao meu corpo de forma quase instintiva. Já não conjurava os relâmpagos negros. Eu os evocava com o olhar. O Ignis Mortem se acoplava aos meus punhos como uma extensão da vontade. E a mana morta, ela já não era um recurso. Era meu sangue.

    Na quadragésima oitava morte, quase toquei Maximus.

    — Melhor. — Ele disse. — Mas ainda um inseto tentando derrubar um dragão.

    Na quinquagésima quinta, meu punho raspou a borda da armadura dele. Vi a surpresa nos olhos flamejantes por uma fração de segundo antes de ser explodido como uma folha contra um furacão.

    — Quase. — Ele comentou. — Mas quase também é o nome dos mortos que foram esquecidos.

    E voltei. E voltei melhor.

    As mãos já não tremiam. O medo da morte havia se tornado memória antiga. E eu lutava não como um aprendiz buscando acertar o mestre. Eu lutava como um igual, esperando o momento em que minha chama superaria a dele.

    Pers observava tudo da arquibancada, sentada com as pernas cruzadas, a cabeça apoiada nas mãos. Seus olhos carregavam a mesma tensão e orgulho que vi quando enfrentei Moradina. Ela sabia que eu estava me moldando, me transformando em algo que nem mesmo os deuses esperavam.

    A centésima morte veio silenciosa. E então a centésima primeira.

    Eu caía, cuspia sangue, e me levantava com mais precisão.

    Meu corpo havia se tornado arma. Meu espírito, ferramenta. E meu coração, âncora, sempre puxado pelo olhar de minha deusa. O nome dela em mim era o que me mantinha inteiro. E era isso que Maximus queria ver: se minha força era bruta, ou se ela era forjada por um ideal.

    E era.

    Porque eu lutava por nós. Por ela. Por mim.

    E Maximus… Maximus sorria como quem vê um cometa que não sabia que esperava.

    A centésima vigésima terceira vez que voltei, algo foi diferente.

    Maximus havia me socado com tanta força que minha alma chegou a oscilar entre os planos, e ali, entre a dor e a lucidez, eu tive um vislumbre. Um estalo no fundo da mente, como se o eco de todas as minhas mortes estivesse me sussurrando uma resposta.

    Aura e mana.

    Eu sempre as tratei como mundos separados. Mana era ferramenta. Aura era instinto. Mas ali, naquele momento entre o fim e o renascimento, percebi que elas não eram rivais. Elas eram complementares.

    Ao voltar para a arena, ainda arfando, coberto de suor e sangue seco, fechei os olhos. Senti minha mana correr pelas veias, o frio gélido da morte pulsando nos músculos, vibrando nos ossos. Mas ao mesmo tempo, senti a aura quente, ardente como o núcleo do mundo, brotando do centro do meu esterno.

    Frio e calor.

    Razão e emoção.

    Magia e fúria.

    Não as misturei, mas usei-as em sinfonia.

    Quando Maximus avançou, o mundo desacelerou. Usei minha aura para mover os músculos com mais violência, com mais urgência. E a mana para proteger meus tendões, para antecipar o movimento dele com pequenas expansões sensoriais.

    Um soco veio.

    Eu rolei para o lado antes mesmo de ele completar o movimento, meus pés já envoltos por energia morta me lançando para a esquerda como um borrão.

    Maximus arqueou uma sobrancelha.

    — Isso foi… diferente.

    Tomei a ofensiva. Usei a aura para endurecer os punhos, e mana para turbilhonar relâmpagos negros entre os dedos. Não como uma mistura instável, mas como duas linhas que corriam paralelas, se alimentando uma da outra.

    O impacto rachou o chão ao redor dele, e embora Maximus ainda tenha desviado com a elegância de um imperador, a pressão do golpe fez seus pés se arrastarem alguns centímetros para trás.

    — Você está aprendendo, garoto. — Ele murmurou, dessa vez com mais seriedade.

    Pers, do alto da arquibancada, estava de pé. A expressão em seu rosto era de quem via algo florescer que não deveria existir: um apóstolo morto-vivo que agora manipulava aura e mana com a precisão de quem nasceu para isso.

    Continuei a luta.

    Aura nos punhos. Mana nos pés. Aura para bloquear. Mana para atacar. Aura para suportar os golpes. Mana para amplificar os músculos. Um passo, dois, três, uma sequência de socos com aura queimando minha pele e mana protegendo meus ossos. O mundo ao redor se desfazia em uma tempestade cinzenta, uma dança entre a fúria e a lógica.

    Maximus começou a rir.

    — SIM! — gritou com o punho cerrado. — É ISSO QUE EU QUERIA VER! NÃO SEGUINDO MEUS PASSOS, MAS ESCULPINDO OS TEUS!

    Então ele veio com tudo.

    E pela primeira vez, eu desviei e reagi antes que sua próxima investida estivesse completa.

    Eu estava aprendendo. Não a superar Maximus pela força, mas a me transformar num novo tipo de guerreiro. Nem só mago. Nem só lutador. Algo entre a aura e a morte. Algo que nascia entre os extremos.

    E o mais estranho?

    A cada novo passo, eu ria. Não de alegria, nem de soberba, mas de… alívio.

    Estava encontrando meu próprio caminho.

    E pela primeira vez, senti que ele era só meu.

    A luta havia recomeçado como tantas outras vezes. Eu sabia que morreria de novo. Era a ordem natural das coisas naquele Coliseu. Maximus ainda era inalcançável. Sua força, sua técnica, sua fé, uma muralha esculpida por eras.

    Mas eu estava ficando mais rápido.

    Mais instintivo.

    Mais completo.

    Aura e mana fluíam em mim como correntes gêmeas. Usava a aura para dar peso aos meus punhos. A mana, para enrijecer o ar ao meu redor como escudo. Mas meus ataques ainda não surtiam o efeito que eu queria. Maximus desviava de todos, como se estivesse dançando.

    Foi quando ele me acertou um soco direto no peito.

    A dor veio em ondas. Os ossos quebraram com um estalo seco, o ar deixou meus pulmões. A visão escureceu.

    Mais uma morte.

    Mas, dentro do vazio, algo brilhou.

    Eu sentia aura como calor.

    Sentia mana como vento.

    Mas e se…

    E se eu condensasse a mana?

    Se ao invés de invocar o fogo ou o raio, eu apenas a endurecesse?

    Voltei.

    Os olhos se abriram antes do corpo acordar. Quando me levantei, apenas cerrei os punhos. Canalizei.

    A mana girou, turbulenta, indomável.

    Mas então a controlei.

    Comprimi.

    Condensei.

    E ela solidificou.

    Meus braços tremeram com o novo peso. Não era mana apenas canalizada, nem manifestada. Era mana densa. Sólida. Um metal morto forjado pela vontade.

    Levantei o punho. E Maximus pareceu notar algo.

    — Hm? — Ele arqueou uma sobrancelha. — E o que é isso agora?

    Corri.

    Não rápido como antes. Mas inevitável.

    O primeiro soco ele defendeu. Os braços dele chiaram com a colisão.

    O segundo, ele bloqueou com a palma.

    Mas no terceiro…

    Eu o acertei no ombro.

    Não causou dano. Mas o fez recuar.

    Maximus olhou para o próprio corpo, onde o impacto havia marcado. E então soltou uma gargalhada.

    — HA! Ele me avisou. O velho Oliver me disse. “Não tente ensinar esse garoto. Só mate ele, e ele aprenderá tudo sozinho.”

    Ele cuspiu no chão e girou os ombros.

    — Você entendeu algo que magos tentam por séculos e falham. Mana não é só energia. Ela é o feitiço.

    Me aproximei, os punhos ainda envoltos em energia sólida, negra como breu, brilhando com rachaduras como obsidiana viva.

    — E o que eu faço com isso agora?

    Maximus estalou os dedos.

    O chão tremeu.

    Sua aura explodiu como um vulcão.

    — Agora? Agora é sua vez de me matar.

    Sorri.

    — Então você vai aprender alguma coisa comigo também, velho.

    Nós nos lançamos um contra o outro. Aura contra aura. Mana sólida contra punhos de chama.

    O impacto foi como o estrondo de um trovão.

    E mesmo quando ele me acertou e quebrou meu maxilar, eu sorri.

    Porque naquela morte, eu tinha aprendido mais uma lição.

    O corpo pode cair.

    Mas o espírito? O espírito já estava se erguendo de novo.

    Continuamos trocando socos.

    Não mais como mestre e aprendiz.

    Agora era homem contra homem. Guerreiro contra guerreiro.

    Meus músculos, temperados por centenas de mortes, já não hesitavam. Meus pés sabiam onde pisar antes de eu pensar. Eu estava dançando com a morte, e pela primeira vez, ela dançava no meu ritmo.

    Maximus sorriu entre os socos.

    — Você é diferente. Eu te quebrei em mil pedaços, e em cada volta, você trouxe algo novo.

    — E ainda não terminei de trazer — retruquei, desviando por baixo de um cruzado e acertando um gancho no flanco dele, forte o bastante para fazê-lo deslizar para trás.

    O impacto fez parte da arquibancada ruir.

    Ele passou a mão no abdômen onde o golpe acertou.

    Riu.

    — Se fosse qualquer outro, eu diria que você é impossível. Mas você é o apóstolo dela. Claro que é impossível.

    Mais aura queimou em torno dele. As chamas se erguiam como uma capa viva. Mas eu avancei mesmo assim.

    Golpes trocados em uma velocidade que quebrava o som. Em um momento, Maximus me jogava contra o chão, abrindo uma cratera. No instante seguinte, eu me projetava de volta, acertando seu queixo com um direto que fez o imperador cambalear pela primeira vez.

    — Isso foi por jogar meu corpo no pilar de mármore três dias atrás! — gritei.

    — E ISSO — ele respondeu com uma cotovelada no meu estômago que me fez cuspir sangue — é por ter dito que seus músculos estavam ficando melhores que os meus!

    Nós dois rimos.

    Mesmo lutando até a beira da morte.

    Mesmo quando eu caía e ele me pisava no peito e perguntava se eu ia levantar, eu respondia cuspindo sangue na cara dele e dizendo:

    — Só se você me der um motivo.

    E ele dava.

    Ele dava com gosto.

    Mais e mais socos.

    Mais e mais aprendizado.

    Eu sentia cada fibra do meu ser se moldando à batalha. O Hades que começou esse combate já não existia mais. Em seu lugar, havia algo novo. Algo afiado. Algo puro.

    Em uma das trocas, agarrei seu pulso e o puxei para um clinch. Nossos rostos a centímetros um do outro. Ele arfava. Eu também.

    — Está ficando mais forte, garoto. Mas ainda falta o soco que me faça cair.

    — Então para de me dar aula e me deixa lutar.

    Nos separamos com um choque de aura e mana que fez o Coliseu estremecer.

    E continuamos.

    Soco por soco.

    Respiração por respiração.

    Morte por renascimento.

    Dançando entre a dor e o instinto.

    E cada vez mais…

    Eu sentia que estava chegando perto.

    Maximus avançou. Eu também.

    Nossos corpos se chocaram no centro da arena como dois cometas em colisão. A aura vermelha dele explodiu como labaredas sagradas de um Império perdido. A minha mana, densa como ferro, escura como o véu da noite, endurecida pelo puro ódio do esforço, rebatia cada centelha em ondas brutais.

    Trocação sincera.

    Punho contra punho.

    Sem feitiços. Sem truques. Só suor, dor e uma vontade obstinada de provar quem ainda respirava depois de tudo.

    O primeiro direto dele veio pelo alto. Eu bloqueei com o antebraço. O impacto soou como o bater de dois titãs. Meus pés arrastaram no chão e abri dois sulcos na terra. Mas não caí.

    Rebati com um cruzado que acertou seu ombro. Ele sequer pestanejou.

    Devolveu com um gancho no meu queixo. Minha cabeça virou, meu pescoço estalou, uma fileira de sangue saiu da minha boca. Mas meu olhar não vacilou.

    — Você aguenta mesmo, hein — ele disse, quase admirado.

    — Eu já morri tantas vezes que o conceito de parar perdeu o sentido.

    E então nos jogamos de novo.

    Meus socos agora vinham com precisão letal. Aprendi, finalmente, a usar minha aura como extensão do movimento. Quando eu puxava o ar, era como se puxasse também um fragmento do destino. Quando eu golpeava, era como se ordenasse ao mundo que sentisse.

    E Maximus, mestre da destruição, ria com selvageria a cada vez que meu punho roçava a pele dele.

    — É ISSO! — ele gritou, saltando no ar com o joelho carregado de fogo — ESSA É A RAÇA QUE FUNDA IMPÉRIOS!

    Rolei pro lado no último instante. Me ergui num giro, apliquei três jabs, um chute baixo, e um direto no abdômen que, pela primeira vez, fez ele ajoelhar.

    Um joelho.

    Meus pulmões gritavam.

    Meu corpo ardia.

    Meu coração pulsava num compasso novo. Mais calmo. Mais mortal.

    — Eu não vou parar, — sussurrei, cada sílaba um trovão. — Eu não sou um herói. Não sou um mártir. Sou a mão dela. A mão da Deusa da Morte. E vou socar até os céus tremerem.

    Ele se levantou.

    Sangue escorria do nariz.

    Riu.

    — A mão dela, é? Então me mostre se você merece tocá-la.

    E veio.

    Veio com tudo.

    Eu também.

    Ficamos tão próximos que o mundo desapareceu. Não havia mais Coliseu, nem céu, nem chão, nem dor.

    Só o som seco e surdo de punhos chocando-se.

    Só dois homens, treinados para matar, testando até onde ia a vontade de sobreviver.

    Meus músculos choravam. Minha alma ardia.

    Mas minha vontade…

    Minha vontade gritava.

    Trocação sincera.

    A forma mais honesta de conversar com outro guerreiro.

    A linguagem antiga.

    A dança crua da luta sem palavras.

    E naquela dança…

    Eu estava vencendo o medo.

    A dor.

    A mim mesmo.

    E sabia.

    O próximo soco talvez fosse o soco.

    A luta já não parecia uma luta.

    Era um hino primitivo, uma balada ancestral forjada no atrito entre dois mundos, o velho, representado por Maximus, o mais temido imperador de Emberfell e o novo, encarnado em mim, apóstolo da deusa da morte, discípulo de um mago insano, amante da própria finitude.

    Meu corpo queimava de dentro para fora.

    A aura se entrelaçava com minha mana endurecida, negra e densa como obsidiana líquida.

    E foi então…

    Que a visão veio.

    Um lampejo.

    Vi o chão.

    Vi as correntes invisíveis da mana que fluíam sob a arena como raízes esperando florescer.

    E então soube.

    Não precisava mais de truques, nem de feitiços longos.

    Minha mana era minha vontade.

    E minha vontade queria segurar um império.

    — Vamos ver se você consegue escapar disso, Maximus…

    Afundei os pés.

    A mana correu pelo solo com a velocidade do instinto.

    Como espinhos emergindo da terra, mãos negras gigantescas surgiram com dedos esqueléticos e deformados, feitas de mana sólida. Elas agarraram Maximus pelos braços, pelas pernas e pelas costas.

    Ele se moveu.

    Tentou recuar.

    Mas pela primeira vez…

    Foi contido.

    — TÁ BRINCANDO COMIGO?! — ele gritou, com um sorriso maior que qualquer ferida, mesmo enquanto lutava contra as garras etéreas que o prendiam.

    — ISSO QUE EU CHAMO DE PROGRESSO!

    Eu não respondi.

    Todo meu corpo foi envolto pela minha aura, que cintilava num tom sombrio de púrpura escarlate.

    Por cima dela, a mana endurecida cobria meus punhos como armaduras de marfim negro.

    As duas forças não se anulavam.

    Não brigavam.

    Elas dançavam em sincronia.

    — Por Pers — murmurei.

    E então disparei.

    Meu corpo rompeu o espaço com tamanha velocidade que o ar ao redor se contorceu.

    Meu punho direito, carregando o peso da minha fé, da minha dor, do meu amor, da minha morte, voou como um martelo contra o queixo de Maximus.

    O impacto explodiu como um trovão.

    As mãos de mana se despedaçaram no mesmo instante, incapazes de conter o choque.

    Maximus foi lançado como uma flecha em chamas pela arena, seu corpo colidindo contra a arquibancada imperial.

    As colunas de mármore se romperam.

    O eco da destruição soou como sinos de uma nova era.

    Poeira subiu.

    Silêncio.

    Eu respirei.

    Não como alguém cansado.

    Mas como alguém vivo.

    Olhei para as mãos.

    As minhas.

    As da morte.

    E soube que aquele soco, foi mais do que um golpe.

    Foi uma declaração.

    De que eu não era mais apenas o apóstolo da deusa da morte.

    Eu era sua extensão.

    Seu braço.

    Sua ira.

    Seu amor.

    Agora, só restava saber se Maximus ainda conseguia rir.

    Então escutei.

    Uma risada grave, selvagem e orgulhosa, como um trovão gargalhando.

    — HAAAAAAAAAAAAAA—!

    A explosão de mana que veio a seguir sacudiu as ruínas da arquibancada e o ar em meus pulmões.

    Fagulhas rubras surgiram entre os escombros, e uma coluna de fogo subiu até os céus.

    Dela, emergiu Maximus.

    O corpo coberto de poeira, o sorriso maior do que qualquer dor, e os olhos estavam em chamas.

    Chamas da alma de um guerreiro que acabara de encontrar um igual.

    Sem dizer nada, ele estendeu a mão direita para o lado.

    A aura flamejante ao redor de seu braço condensou, se solidificou, e se moldou como ferro líquido.

    Uma espada nasceu em sua palma feita de fogo cristalizado.

    Vermelha como sangue fervente, com veios negros e uma energia antiga que pulsava como se tivesse vontade própria.

    Ele apontou a lâmina para mim.

    — Sim… você está pronto.

    Sua voz carregava uma certeza pesada como os deuses.

    — Um bom guerreiro não pede armas. Um bom guerreiro forja as suas com o que tem. Com sua mana, com sua aura, com sua vontade. Essa espada é minha. E agora, quero ver a sua resposta.

    E sem hesitar…

    Maximus avançou.

    O chão rachou sob seus pés.

    Um estrondo cortou o vento.

    Ele vinha como um cometa flamejante.

    Reagi por instinto. Me joguei pro lado.

    A lâmina passou a milímetros do meu rosto, tão quente que queimou o ar.

    O impacto do golpe que atingiu o chão explodiu uma cratera na arena, fazendo pedras voarem e a poeira erguer um véu turvo entre nós.

    — Quero ver o que sua fé é capaz de fazer, apóstolo! — ele gritou do outro lado da névoa flamejante.

    — Então venha ver, imperador. — respondi.

    A luta reiniciou.

    Desta vez, com armas.

    Ele girava a espada com uma perícia absurda.

    Cada corte vinha de ângulos imprevisíveis, o calor cortando o oxigênio, a lâmina mais viva do que algumas pessoas que eu conheci.

    Eu usava tudo.

    Saltava entre as mãos de mana que evocava no solo, fortalecia meus punhos com aura, endurecia a mana nos antebraços para bloquear cortes.

    Por duas vezes fui arremessado contra os pilares da arena.

    E por duas vezes voltei de pé.

    Começávamos a rir entre os golpes.

    Não era zombaria.

    Era êxtase.

    Dois homens que sabiam o que era a guerra.

    Dois homens que sabiam que naquele campo, palavras não bastavam.

    Nossos corpos cantavam.

    Os golpes eram as notas.

    A arena era o palco.

    E a música era pura destruição.

    Maximus atacava com fúria e técnica.

    Eu respondia com instinto e evolução.

    Um deus da guerra contra o amante da morte.

    E, naquele momento, nenhum de nós queria que terminasse.

    Trocamos mais alguns golpes. Um, dois, três, os punhos encontraram carne, os joelhos esbarraram nas costelas, as auras se cruzaram como trovões.

    Mas não havia mais força. Nem fúria. Apenas o eco de dois titãs que tinham dado tudo.

    Ofegante, cambaleei para trás.

    Maximus também deu um passo em falso, os ombros arqueados como se por fim sentisse o peso da eternidade sobre si.

    Nossos pés falharam ao mesmo tempo.

    Caímos.

    Corpos lado a lado, estirados no chão da arena, fitando o céu laranja-âmbar do fim de tarde que se estendia acima das muralhas.

    Por um momento, houve silêncio.

    Então, ele soltou um riso curto, seco.

    — Chega por hoje.

    Eu não discordei.

    Respirávamos fundo, como se o ar fosse um prêmio conquistado.

    Ele virou o rosto na minha direção, ainda deitado, os olhos semicerrados.

    — Amanhã… — disse, entre um suspiro e outro — amanhã eu cumprirei um pedido de Regis.

    Apenas ergui uma sobrancelha.

    — Pedido?

    — Ele me pediu isso há muito tempo. Agora chegou a hora.

    — E o que ele pediu?

    Maximus apenas fechou os olhos, relaxando os músculos como um guerreiro que sabia o valor do descanso.

    — Descubra amanhã.

    Eu respirei fundo. Não insisti.

    O sol começava a sumir atrás das arquibancadas destruídas.

    E ali, sob os últimos raios do dia, um imperador e um apóstolo repousavam… como iguais.


    Depois do treino, como de costume, fui direto para o banho. Cada músculo do meu corpo parecia pesar uma tonelada. A água quente escorria pelos meus ombros, levando embora o suor, a poeira, a dor, quase tudo.

    Quase.

    A porta deslizou silenciosa.

    — Amor, trouxe sua toalha… — disse Pers com a voz suave, e só então percebi que ela não estava vestida. Apenas uma toalha envolta ao corpo.

    Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela entrou sob o vapor comigo e, com a palma delicada, empurrou-me de leve para frente.

    — Fique parado. Hoje eu vou cuidar de você.

    A espuma dançava em suas mãos enquanto ela lavava minhas costas. Seus dedos firmes deslizavam com precisão, conhecendo cada linha da minha cicatriz, cada músculo, cada marca que eu havia colecionado nesses treinamentos absurdos.

    Mas o que me tirou o ar foi o toque da pele dela contra a minha. Quente, macia e  envolvente.

    Meu corpo respondeu antes da minha mente conseguir fingir alguma dignidade.

    Ela percebeu.

    Um sorrisinho ladino escapou em sua respiração. E então seus dentes afundaram de leve na curva do meu pescoço.

    — Não é a hora ainda, amor — sussurrou, próxima demais, a voz embargada por algo que ela também tentava conter.

    — Você gosta disso? — perguntei, com um meio sorriso.

    Ela me olhou por cima do ombro, olhos semi cerrados.

    — Gosto. Muito.

    Virei o rosto para encará-la de lado, e murmurei baixinho, com um tom travesso:

    — Então, se prepara. Porque vai ter volta.

    Ela apenas riu, e seu riso era como vinho quente num dia de inverno. Não houve mais palavras. Ela terminou de me lavar com todo o cuidado do mundo e depois saiu primeiro, sem pressa, como se deixasse para trás a promessa de algo que ainda viria.

    E eu fiquei ali, com o coração acelerado e um sorriso idiota no rosto, pensando que até o inferno seria um lugar agradável se ela estivesse por perto.

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