Capítulo 67 - A Serva da Alteza
Na sua sala particular, no mais alto andar da sede da Torre, Ava atendia o intercomunicador que vibrava com insistência. Do outro lado, a voz de Nahome soava apressada, muito carregada de cansaço, apesar de ainda firme.
— Comandante, estamos no hospital de Goiânia — começou Nahome; ele ofegava minimamente — Saik acordou. E… ele tem informações importantes, talvez ligadas à Fundação ou ao Conclave.
Ava suspirou, apoiando a mão na mesa, com os olhos fixos no painel com os dados de São Paulo.
— Não posso ir até Goiânia — respondeu ela. — Preciso permanecer aqui. As suspeitas de bombas em São Paulo ainda não foram totalmente verificadas. Não há calmaria.
— Entendo, comandante, mas ao menos pode conversar com ele na chamada?
Ava não tirava os olhos do monitor.
— Faça isso.
Houve um clique seco, e a voz de Saik entrou na linha, mais rouca do que o habitual.
— Ava… estou acordado — disse, pausando. — Preciso te contar… algo aconteceu em Campo Verde, quando eu e Koji estávamos a caminho de Cuiabá.
— Fale. Estou ouvindo. — Ava inclinou-se para frente e apoiou o queixo na mão esquerda.
— Na madrugada daquele dia, Max estava nos guiando através de um drone da Torre, e a gente chegou até uma casa. Mas lá… caímos numa armadilha. Quase morremos. Koji só sobreviveu por causa do Spherea. Eu só me salvei porque encontrei uma entrada no chão, uma espécie de caverna. E lá… achei uma menina, presa por um selo ritualístico.
— Uma menina? — Ava ergueu uma sobrancelha, inclinando levemente a cabeça. — Explique melhor.
— Ela estava sendo usada para algo que dominava a casa… Mas então apareceu uma mulher… cabelo curto, branco. Ela disse se chamar L… pelo menos, era isso que queria contar sobre o nome dela.
— E essa “L” — indagou ela, sussurrando — te ajudou?
— Sim. Ela lutou comigo contra os rituais, contra as pragas do subterrâneo. Havia armadilhas, feitiços que prendiam, enganavam, atacavam. E no final… encontramos o selo máximo: uma tábua com vela, marcada com um F. F de Fundação.
— Entendi… E depois?
— Ela me enganou. Me paralisou com uma técnica e fugiu com a menina que estava sendo usada como sacrifício vivo para o rito que transformou todos os civis da cidade em zumbis.
Uma coisa estranha parecia aumentar diante das descobertas que se faziam. Diante disso, Ava deixou escapar apenas um murmúrio:
— Não há mais dúvida… Fundação e Conclave estão diretamente ligados.
— Saik, o Alaric confirmou que o Conclave age como um grupo terrorista, buscando integrar-se à Fundação. Ou seja, é um vassalo. Campo Verde… tudo o que aconteceu lá… está sob influência direta deles.
Saik deixou clara sua confusão.
— E a L? Ela está ligada a quem?
Ava franziu levemente a testa, coçava o queixo e perdia seu olhar nas estantes de livros.
— Pelo que sabemos… ela levou a criança embora, salvou a criança, aparentemente. Lutou ao seu lado contra os ritos… Talvez não seja nem do Conclave nem da Fundação.
— Então, a quem pertence? — Saik observava sua mão esquerda tremendo em meio à curiosidade contida. Esse tremor não partia da curiosidade, mas do choque em seu corpo devido ao que fez em Cuiabá, e do qual ainda sofria mínimas consequências.
— Ainda não sabemos…
De repente, na sala particular do hospital onde Saik estava internado, uma porta se abriu atrás de Nahome, e Tovah entrou rapidamente, trazendo consigo o menino Davi e sua irmã.
— Os dois queriam te ver, Saik — disse Tovah, fechando a porta da sala, comendo seu típico picolé de morango, em meio às falas altas das duas crianças.
A voz de Ava se levantou ao perceber a voz de Tovah e das crianças pela ligação.
— Tovah… quem são eles?
Tovah, quase gritando para que a comandante ouvisse na chamada de viva-voz, respondeu:
— São as duas crianças que estavam no meio da confusão em Cuiabá!
— E os pais? — indagou a comandante.
— Não temos confirmações sobre isso ainda — respondeu Tovah, após encarar atentamente a expressão de Nahome, que balançou a cabeça negativamente para que nada de ruim fosse dito na presença de Davi e sua irmã.
Dotada de uma experiência invejável, Ava percebeu o clima tenso, decidiu cortar a confusão e avançou.
— Como essas crianças estavam ligadas ao problema em Cuiabá?
— Literalmente… — Tovah respirou fundo — a menina era o sacrifício vivo usado pelo portador falso Leal. E, além disso, criava um domo de energia sobre a região central da cidade, impedindo entradas.
— O de sempre… Crianças em rituais…
— É o básico, comandante — explicou Saik do outro lado da linha. — Quanto mais puro o sangue, maior o efeito. Sangue impuro não causa o mesmo impacto.
— E quem guiou você e Koji em Campo Verde? — ela buscava confirmar os detalhes.
— Max.
Ava repetiu mentalmente: “Max… Max…” e então murmurou em voz baixa, para si mesma:
— Então talvez Max saiba quem é a L… mesmo que seja aliada dele ou não.
— Pode ser — Saik ouviu o pensamento falado de Ava — mas as linhas entre Conclave e Fundação são mais estreitas do que imaginamos.
— Obrigada pelas informações, agentes Saik, Tovah e Nahome. Eu preciso ir agora! — abruptamente, ela desligou.
Logo ao se levantar, virou-se rapidamente, saindo de sua sala e caminhando pelo corredor em direção ao elevador. Mais ao fundo, a alguns metros à frente de Ava, que se encaminhava naquela direção, o elevador se abriu, e uma mulher de roupa social, quase uniformizada, de cabelo curto e branco, surgiu, caminhando na direção oposta à de Ava. As duas se cruzaram. Ava lançou uma olhada rápida, com os olhos estreitando-se com suspeita.
“Cabelo curto… branco… L… É ela”, Ava se tocou de quem poderia ser essa mulher, a L dita por Saik anteriormente.
No instante exato em que se cruzavam, Ava não hesitou.
— Pare agora — disse a comandante, firme, mas sem usar o tom de alerta que geralmente reservava a seus subordinados.
A L desviou apenas o olhar, erguendo um canto da boca em um sorriso frio.
— É melhor que nada faça… — a voz da mulher era baixa, sussurrante.
Ava não respondeu. Em vez disso, lançou-se, tentando um golpe direto no tronco da L. A mulher recuou um passo ágil, evitando o contato, com seu cabelo branco balançando com o movimento.
— Rápida… — pensou Ava, analisando cada passo da adversária e tentando antecipar a próxima ação.
Pelo contrário, a tal L era tão confiante em seus movimentos que impunha uma velocidade ditada por ela mesma. E enquanto Ava rapidamente constatava a velocidade inimiga, a moça avançou em um movimento lateral que quase fez Ava perder o equilíbrio.
A primeira troca de golpes foi rápida, quase imperceptível: Ava acertou um chute na lateral da L, que desviou torcendo o corpo, usando o ombro para amortecer a força. Ava girou, tentando um soco no rosto da oponente, mas a L abaixou-se, deslizando pelo corredor como se fosse feita de sombra, e respondeu com um chute frontal que atingiu o estômago de Ava, empurrando-a alguns metros para trás. Ava engoliu em seco, sentindo a força do impacto. Não era só habilidade física — havia algo mais na presença da L, um certo peso invisível que fazia cada contato parecer mais difícil de controlar. Ela respirou fundo, pois necessitava reorganizar a estratégia.
— Não é só força… — pensou Ava. — Ela antecipa tudo… Saik disse que ela usou sua técnica contra ele. Ela é uma portadora… Não tenho chances de vencê-la.
A L reconheceu a hesitação da comandante.
— Não acho melhor que continue. Vai acabar morta — disse, antes de lançar um golpe com a lateral do pé, atingindo a clavícula de Ava.
Ava desviou parcialmente, mas sentiu o braço vibrar com a força do impacto. A dor era o suficiente para alertar seu corpo. A comandante recuou, ajustou a postura e sentiu os músculos tensos.
— Preciso manter a distância — pensou, enquanto avaliava os corredores à volta. — Não posso permitir que ela me acerte de novo.
A L avançou sem pressa, em passos leves e quase silenciosos. Em seu ato, cada movimento parecia calculado, quase estudado, aparentemente fomentado por um conhecimento próprio dela que sabia exatamente como Ava reagiria. Ava tentou um soco baixo, mirando a lateral da coxa, mas a L inclinou o corpo para trás, pegando impulso com a perna e girando o quadril, aplicando um golpe no ombro de Ava que a desequilibrou novamente.
Ava sentiu um arrepio percorrer a coluna. Ela era treinada, ágil, rápida, mas aquela mulher tinha uma presença que transcendia qualquer treinamento físico convencional. A comandante sabia que era impossível um humano comum vencer um portador. Cada movimento da L era fluido, com precisão milimétrica e sem sinais de esforço.
— Eu não posso perder… — Ava pensou, tentando forçar a mente a encontrar um ponto de entrada. — Ela não usou nada além do corpo. Nenhuma técnica, nenhuma energia.
Neste momento, discretamente, Ava apertou algo semelhante a um dispositivo simples de emergência, presente na parte interna de seu terno. Não demorou, e no segundo seguinte, toda a sede da Torre recaiu sobre um alerta alto de emergência interna máxima, uma espécie de truque controlador de problemas da Torre. O vermelho intenso das luzes de emergência tingia o corredor, pintando Ava e L como duas sombras em meio ao caos.
Ava não pensou duas vezes: avançou. Seus passos foram rápidos, certeiros e movidos mais pela necessidade de conter a intrusa do que pela convicção de vitória. O corpo dela disparou em direção a L.
— Não vou deixar você escapar! — pensou Ava, cerrando o punho enquanto corria.
O impacto foi brutal. Ava lançou-se sobre L, empurrando-a contra o chão, e ambas caíram rolando pelo corredor. A força do choque fez o ar escapar de seus pulmões. L, surpreendida pela decisão agressiva da comandante, ergueu os braços para bloquear e, vista sua força superior frente a uma humana, entortou os braços de Ava, jogando-a para o lado.
— Essa mulher tem coragem para se arriscar tanto assim — refletiu L, enquanto se levantava.
O embate parecia prestes a se intensificar, mas algo novo começou a se espalhar. Das paredes, dos cantos do teto e até das frestas do chão, um gás esbranquiçado começou a jorrar em fluxos contínuos. Era frio, denso, e logo tomou conta do corredor como uma névoa opressiva.
Ava não hesitou em respirar. Para ela, nada mudava. Mas para L, o primeiro contato foi um choque invisível. Ela tossiu com uma certa força incômoda, seu peito começou a arder, e a visão, antes precisa e focada, agora oscilava levemente.
— Gás de Nullite… S1… — L arregalou os olhos por um instante, reconhecendo imediatamente a substância.
Ava manteve o olhar firme, aproximando-se dela e empurrando-a contra o chão.
— Então é verdade… você é mesmo uma portadora. Só eles reagem assim.
Mesmo com os músculos já pesados, L tentou uma última reação. O braço dela se ergueu, mas sua força estava minguando rápido. O gás não era letal como outras formas de uso do Nullite, mas roubava-lhe a consciência em ondas, como marés inevitáveis. Enfim, como esperado, nos próximos segundos L caiu inconsciente. Indiretamente, e abusando de um método raramente usado, Ava venceu.
Sem perder tempo, Ava correu até sua sala particular no corredor, entrou e pegou o intercomunicador da mesa, caminhando com ele nos braços pelo corredor. Ligou para Nahome, atualizando-o do que havia ocorrido.
Lá no hospital de Goiânia, Nahome estava sentado em uma cadeira, ao lado do leito onde Saik repousava, ainda pálido, mas desperto. Tovah, na parte mais espaçosa do cômodo hospitalar, distraía as crianças que insistiam em brincar com o equipamento médico.
— Comandante? Está no viva-voz… Diga! — Nahome atendeu, levantando-se um pouco da posição deitada em que estava na cadeira.
Ava, ainda olhando para L caída no chão:
— Avisa o Saik que a L está sob nosso controle.
No hospital, Saik ergueu minimamente a cabeça, atento, ao ouvir aquelas palavras. Ava, porém, hesitou antes de continuar. As ideias passavam rápidas em sua mente, como um quebra-cabeça que não se encaixava: se não era Conclave, se não era Fundação, a quem L serviria?
Então, enquanto ainda estava na ligação e em silêncio, ela se abaixou próximo da L, revirou seus bolsos e encontrou algo: a foto de uma criança, uma menina.
“Lina… Lina Sugg…”
A comandante voltou seus olhos para o rosto de L.
— Por que ela está com uma foto da neta mais nova do Rod Sugg?…
Ainda confusa, Ava encarava a foto, mas em um momento virou-a do avesso, dando de cara com coisas escritas na parte de trás do retrato da garota. A comandante começou a ler o que tinha escrito:
“Rod, sua neta está segura. Espero o pagamento conforme tratado em até 24 horas. Não sonhe em descumprir isto.”
Ava havia descoberto.
— Comandante? Ainda está na ligação? — Nahome perguntava agitadamente.
Então, ela lhe respondeu:
— Nahome… avise o Saik… que é a Rod Sugg que a L serve. E que a menina que ele viu em Campo Verde, e que foi salva e levada pela L, é Lina Sugg, a neta mais nova de Rod Sugg…

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