Capítulo 51: Ferrugem velha (2)
“Amainem seus corações! Ora, pergunto-lhes, já que são homens: conhecem as dores de uma mulher orgulhosa? Dificilmente conhecem o vocabulário de dores de suas amadas esposas. Ah, duvido muito! Mas temos, cheios de palavrinhas sutis…
Vocês têm algo semelhante.”
Izandi, a Oniromante

Subitamente, o rosto do conde Siward enegreceu como se a noite tivesse chegado só para ele. Seus olhos estavam sem cor de tão sérios, olhando para Ereken como se visse sua alma.
— Agradeça aos Deuses por seu terceiro filho ainda não ter nascido, barão, e por sua esposa e filha estarem protegidas por Theolor Beesh. — Parou de caminhar e pôs a mão direita no ombro de Ereken. — Marquês Arjen Rwicks é o segundo homem mais vingativo que já vi, atrás somente de Sua Majestade. Sua Majestade, porém, não seria tolo de punir todo o Leste pela traição dos Hoones. Arjen, sim. Agradeça aos Deuses.
— Eu… — falara e se calou, empalidecido. “E se ele souber que minha filha está distante de meu sire?”
Cerrou os punhos e fechou os olhos por um segundo.
— Avisarei meu duque disso.
Conde Siward fez que sim com a cabeça e deu meia volta. Os dois voltaram a andar pelos corredores, até uma escadaria tortuosa e sem teto. Uma luz menos pálida escorria dos céus tingindo a neve com um pálido mais colorido, as paredes de rocha negra mais vívidas e as marcas das garras do dragão-real de Aavier mais profundas, com rachaduras mais notáveis aos bons olhos de Ereken. Ele piscou várias vezes até se reacostumar com a luz do dia ainda nascendo, entre nuvens passageiras.
“Andorinhas”, pensou Ereken ao ver um bando delas voando ao longe. “Andorinhas vermelhas. É realmente primavera”, constatou. “Mas que raras.” Elas piavam ao longe, mas não podia ouvi-las. Sua vida teria sido tão diferente se pudesse.
Invés disso, ouvia passos dos poucos homens de armas da Fortaleza, abafados pelo tapete de neve. Alguns estavam treinando seus corpos — atacando o vento, praticando instâncias que Ereken trabalhou muito para que aprendessem. “Meu método pode não ser dos melhores, mas funciona.” Seus professores não duravam muito. Era difícil ter um parâmetro, um guia de ensino. “Funcionou com Bert, no entanto, e ele aprendeu muito bem.”
Mas a maioria dos poucos homens que já estavam acordados não estavam treinando seus corpos. Estavam nos adarves, observando o lado de fora. Via-os — maioria jovens — com membros trêmulos debaixo das camadas de roupas… “Gostaria que fosse de frio.”
— Eles ainda não foram embora? — questionou Ereken, tomando frente na caminhada.
— Cei Hendrik Hoone e os seus ainda estão aqui. Não deram um passo fora da montanha, mesmo após o terremoto — olhou diagonalmente à direita, onde uma escadaria levava para a primeira muralha. — Ali está ele.
Ceire Joran Cyreck estava com sua reluzente armadura na muralha externa, olhando sozinho para o além da montanha e névoa gélida, das centenas e centenas de toesas abaixo da Fortaleza-Montanha. Ereken e conde Siward se aproximaram lentamente do paladino, cuja capa de ordem flamulava como uma bandeira carregada por um vento fraco, mesmo que o vento fosse forte o suficiente para fazer os archotes vacilarem.
Ereken até procurou, mas a garota não estava ao lado dele.
Depois de voltarem de todo aquele caos, o castanho ficou cansado demais para continuar acordado. Ao acordar, estava com várias faixas cheias de emplastro fedorento, talas no braço esquerdo e pontos no peito. Não havia nem percebido que estava sangrando por toda aquela caminhada, ou se fora Cei Hendrik Hoone que abriu o ferimento. Era grosso e rude como a morte. Mas a morte não fazia ferimentos tão rasos, para o bem da família Zwaarkind. Já a garota, Thirtu, desapareceu completamente mais uma vez.
Ereken a procurou vez ou outra, nunca a encontrando. Bastava que os jovens homens de armas respondessem que a viram bem, passeando pela Fortaleza vez ou outra. De alguma forma que ele ainda não compreendia plenamente, isso o deixava alegre. Saber que os outros homens do séquito estavam vivos também — exceto Cei Mauric. “Por quê?”, se perguntava. Por que seria chamado de assassino?
— Vossa Graça — cumprimentou Ereken, sentindo o vento frio à face.
— Barão. Conde Siward — cumprimentou o Ceire, sem tirar a mão armadurada da ameia. Um tapa-olho improvisado cobria seu olho esquerdo e uma tala fazia o mesmo trabalho com o braço esquerdo. “Uma tragédia para um arqueiro tão capaz”, pensou Ereken, amargurado. “Se tivesse sido mais rápido….” — Fico feliz que esteja recuperado, Zwaarkind.
— O suficiente — riu, levantando o braço direito.
O Ceire abriu um curto sorriso, por um curto momento.
— E então? — voltou ele. — O que os pássaros falaram….
— Desculpe-me pela grosseria, Ceire — interpôs Ereken —, mas poderia me contar como Cei Mauric morreu? Cei Hendrik Hoone chamou-me de…
— Assassino?
Ceire Joran Cyreck suspirou.
— Ele foi devorado. A criatura fez você desaparecer, então, atacou-nos rapidamente. Cei Mauric Hoone bravamente se pôs à nossa frente, mas a criatura resistiu ao seu golpe e mordeu-o da metade para a cima. Sua cota de malha não resistiu.
Ereken desviou o olhar. “Se tivesse sido mais rápido e não desmaiado!”
— Embalsamamos o corpo de Cei Mauric e enviamos com um mensageiro para a família. — Deu de ombros, cerrando os dentes com ira. — Aparentemente, fui honesto demais em minha carta, e eles cegos demais pela morte de um parente amado.
— Acreditam que por algum motivo o matei e fugi — constatou Ereken.
— Suponho que seja isso.
Conde Siward se aproximou do amigo.
— Ainda há o garoto.
— …O filho de Cei Mauric ainda está…
— Sim — interpôs o Ceire. — Não quis permitir que visse a carcaça irreconhecível do próprio pai. — A face do homem escureceu. — Cei Mauric Hoone trouxera o filho para que conhecesse seu ídolo, e agora o rapaz voltará a casa sem ter seu pai.
Ereken sentiu uma mordida no peito. Subitamente, seus olhos escureceram como se o dia virasse noite. “Não desejo isso para mim.”
— A culpa é totalmente minha — respondeu Ereken, de ombros caídos.
— É minha — refutou Ceire Cyreck. — Você estava sobre minhas ordens, somente isso. Já ele, não. Entrou para o séquito contra minhas ordens, e não o impedi, sendo ele somente um visitante. Thirtu não é um homem de armas e sequer deveria estar neste lugar. A culpa é minha por ainda permitir que ela fique aqui. Foi graças à minha falta de ação que ela ainda está aqui.
Ereken Zwaarkind sentiu uma mão gelada apertando seu coração.
— E o garoto também. — Fitou Siward. — O que acha ser o certo a se fazer? Devolver o garoto e explicar a situação, correndo chance de sermos atacados por um mal entendido?
— Privar um filho de ver sua família é uma péssima ideia.
Ereken Zwaarkind sentiu calafrios mordiscando-lhe, como se centenas de formigas estivessem picando seu corpo.
— Ainda mais um em luto.
— Devolvamos o garoto à sua família, então — afirmou por vez Ceire Joran Cyreck, irmão bastardo do ministro dos conselhos do reino. — E resolvamos esse maldito mal entendido de uma vez.
Ereken forçou um sorriso e olhou para os dois. Era um sorriso trêmulo, fraco, mas um que ainda deixava seu coração um pouco mais amainado.
— É a coisa certa, Ceire.
— Você está de ótimo humor — constatou conde Siward. — Está até rindo.
— De onde tiraram que sou tão sério? Sempre fui ótimo em rir.
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