Logo pela manhã, um homem celebrava um rito de despedida.

    Usava um robe negro de tecido símples, nada chamativo, amarrado com uma corda para prender a região da cintura. Sua face era revelada a todos. Muito comum. Do tipo que se olha uma vez e não presta atenção em uma segunda olhada.

    Sua voz, entretanto, era calma e acolhedora. Transitava entre os ouvidos dos presentes com mansidão, provocando um clima sereno, mesmo que melancólico.

    Essa estranha combinação, mesmo que quase opostas, traziam ao homem um estranho carisma único que conquistava a confiança sem obstruções.

    — … e que, apesar de ter andado por um caminho tortuoso, o todo poderoso pai celestial, nosso Deus, possa, em sua piedosa compaixão, mostrar misericórdia a essa pobre alma perdida

    — Entregamos a ti, Senhor, nosso irmão Luriuz, que chamaste deste mundo. Concede-lhe a felicidade, a luz e a paz. Amém

    Como se uma deixa tivesse surgido, várias vozes se elevaram ao mesmo tempo, se somando:

    — Amém! — disseram em uníssono.

    Era natural para as pessoas se despedirem de seus mortos. O pequeno grupo enlutado era composto por dez pessoas, sendo três delas uma mulher com duas crianças pequenas. Choravam bastante.

    Dentre as pessoas reunidas, um jovem estava no meio. Não por luto, nem compaixão. Movido pela maré do destino. Kael.

    Em relação a Croco, ele achou melhor deixar o cão a alguns passos de distância. Perto, mas nem tanto, para não atrapalhar em nada.

    Virou os olhos para trás e lá estava ele: deitado. A cabeça recostada no chão o olhava de volta, abanando o rabo e levantando alguma poeira do chão ao fazê-lo. Kael gesticulou para aguardar mais um pouco. 

    Aproveitando a oportunidade, ele olhou os poucos rostos — todos conhecidos — que estavam ali presentes. Em suas faces estavam várias expressões; choro, lamento, luto.

    Em especial as duas crianças. Choravam profusamente. Kael os viu apenas uma vez e desviou a atenção; a situação lhe trazia uma memória que ele não queria recordar. Não agora.

    Mas tirando as emoções, todos tinham uma direção em comum nos olhos: a cova. 

    O homem morto foi amarrado em um saco de juta improvisado e posto ali naquele buraco retangular. Foi tudo feito às pressas. As secreções estavam vazando pelos orifícios, fazendo com que um odor malcheiroso se instaurasse.

    Tragicamente cômico. O luto fazia as pessoas quererem se despedir apropriadamente, mas o cheiro as afastou. Os mais próximos estavam a cinco passos de distância. Algum desconforto ainda era visível, se prestasse atenção.

    Nesse caso, nem mesmo algo tão forte como o amor poderia superar essa barreira invisível.

    Todavia, um enterro é um enterro. Mesmo que feito rudemente. E mais: abençoado com a presença de um novo irmão.

    Pela norma, isso seria impossível. Um ladrão não poderia ter sido enterrado em solo consagrado, muito menos ter tido a presença de um fiel celebrando o rito, porém, o caso foi resolvido ‘diplomaticamente’ entre o lorde local, Varn, e Beltrão Moura, o comerciante líder da caravana mercantil. A justificativa para os cidadãos foi de que não haviam provas o suficiente para declarar o falecido culpado de qualquer transgressão à lei. O comerciante lesado por Luriuz não protestou contra, assim sendo, o caso foi declarado encerrado.

    Não houve objeção do público. Qualquer tentativa de contestação era rapidamente silenciada. A lei do lorde era absoluta e Varn governava pelo punho de ferro, com Roderick habilmente agindo de acordo.

    O povo, então, só poderia aceitar a ‘verdade’ oferecida a eles.

    Quanto ao homem celebrando o rito, era relativamente jovem ainda, no máximo tendo trinta anos, mas não haviam dúvidas quanto ao seu  ofício; o homem exalava uma aura nobre e justa, algo que apenas aqueles que caminhavam através das dificuldades da fé o possuíam.

    Elizabeth propôs que ele conduzisse este rito, já que também era um servo de Deus, e o homem aceitou no mesmo instante. E assim, sem qualquer sinal temeroso, conduziu a ocasião até o momento presente. 

    Kael, curioso, foi ao local mesmo não sendo próximo do finado; em parte pelo pedido de Elizabeth, sim, mas também movido pela vontade de conhecer o homem. 

    Brumalva não tinha muitos visitantes, claramente.

    Inicialmente, não colocou expectativas alguma no estrangeiro; mas não demorou para se surpreender positivamente. O novo irmão conduziu com maestria o rito. Kael não queria admitir, mas ele manipulava a palavra tão bem ou até melhor do que Elizabeth.

    “… que cara estranho. Veio de onde?”, pensou, mas as palavras seguintes lhe trouxeram de volta à realidade:

    — Em sinal de despedida… — O novo irmão disse. — Lancemos um pouco de terra sobre o falecido, na esperança  de acolhimento pelas mãos do pai celestial; pois somos pó, e ao pó retornaremos. Amém

    — Amém!

    — Amem, Senhor!

    E assim foi feito, conforme a tradição. Cada um dos reunidos ali jogou sobre o falecido um punhado de terra.

    Aquela era a última forma dos que ficaram dar seu último adeus para a àqueles que já foram.

    Cada um dos presentes próximos ao falecido tinham suas próprias falas, lamentos e murmúrios a serem feitos antes de por fim saírem do local.

    E assim, o enterro de Luriuz foi encerrado.

    Ali só restavam os dois servos de Deus e Kael, que estava esperando; olhava a última figura que estava no funeral anteriormente sumir de vista, desaparecendo atrás de uma residência.

    “Pelo menos esse cara tinha alguém. Sortudo”

    — Você foi ótimo, Natanael — Elizabeth disse.

    Ela agora estava ao Lado de Kael, apoiando sua mão gentilmente sobre o ombro do garoto.

    — Fico lisonjeado, irmã Elizabeth. Entretanto não fiz mais do que meu dever como um servo, portanto, não mereço glória alguma. Que ela seja dirigida ao nosso senhor Deus

    Elizabeth sorriu.

    — Sua modéstia continua a mesma, como deve ser. Mas deixemos disso, deixemos disso — continuou, enquanto balançava as mãos. — Quero te apresentar uma pessoa

    Seu olhar desceu um pouco até se encontrar com os do garoto abaixo dela.

    — Este jovem bonito e forte aqui se chama Kael. Ele anda meio sumido, mas é um bom garoto

    Elizabeth pareceu se lembrar de algo.

    — … Ah, você precisa me falar o porque você sumiu esses tempos, Kael. Nem mesmo veio as missas, como costumava a fazer

    A proximidade da mulher deixava o garoto desengonçado.

    — Ah… é que, bom… eu… eh

    Kael coçou a nuca, desviando o olhar.

    Natanael riu suavemente.

    — Criança interessante, Elizabeth. Ele me lembra de outros irmãos que eu cresci junto. Você se lembra do Potrius? Ele também gaguejava assim quando o reverendo o pressionava

    — Hehe, eu lembro sim

    Natanael então se abaixou. Agachado sobre os calcanhares, sua altura se igualava por pouco com a de Kael.

    — Prazer, pequeno jovem — estendeu a mão. — Me chamo Natanael

    O garoto aceitou o comprimento.

    — Kael… apenas Kael

    “Que mão áspera”

    Natanael estreitou os olhos por uma fração de segundo.

    — Hehe, realmente interessante Kael… “apenas Kael”

    — Não! Meu nome é só Kael! — retrucou, com alguma vergonha transparecendo.

    Estava sendo tratado como criança na frente de Elizabeth.

    Cômico.

    A mulher riu, enquanto ‘amenizava’ a situação:

    — Não brinque com Kael, Natanael. Ele é um menino de temperamento forte

    — Ah, tenho certeza que Kael não se importa — Natanael disse, tirando algo de um pequeno bolso. — Certo, Kael?

    Um pedaço de carne seca.

    Antes da resposta do garoto, ele tirou outro pedaço.

    — … E eu não esqueci do seu amigo ali atrás — Natanael continuou. — Qual o nome dele?

    — … Croco

    — É um bom nome!

    Os dois pedaços de carne ainda estavam entendidos. Demorou algumas respirações antes de Kael aceitar.

    — Obrigado, irmão Natanael

    O homem sorriu gentilmente.

    — Não precisa dessa educação toda. Apenas Natanael já está bom. Oferta de paz aceita, né?

    — … Sim

    Elizabeth assentiu, satisfeita. 

    — Que bom que vocês dois se deram bem. Eu sabia que daria certo. Agora… — fez uma pequena pausa, antes de prosseguir. — Estou com fome. Você não quer vir conosco, Kael? Temos pães 

    A menção do pão fez Kael lembrar algo importante.

    — É mesmo! Desculpa, tia Liz, mas eu tenho que resolver algo! Até mais!

    Ele deu alguns passos apressados, se afastando, antes de olhar para trás

    — E obrigado, Natanael pela carne!

    — De nada, jovem!

    Kael fez uma pequena reverência ao homem e à mulher antes de sair apressado.

    “Caramba, esqueci daquele negócio!”

    — Vamos, Croco!

    O cão latiu, acompanhando.

    Elizabeth estreitou os olhos à medida que a figura do menino e do cão iam diminuindo mais e mais.

    Kael, até então, nunca recusaria uma oportunidade como aquela, mas assim o fez. Aquilo foi inesperado.

    — Esse é o menino que você tinha falado, eu suponho?

    A voz do homem era indecifrável nesse momento.

    — É sim

    — Ele é interessante, de fato, mas eu pensei que ele já estava pronto

    Elizabeth virou-se para encará-lo nos olhos.

    — Algumas coisas aconteceram, mas…

    — Mas… ?

    Tsk!

    — No devido momento o planejado vai seguir de acordo com a vontade maior

    O homem apenas bufou, afastando-se.

    — O tempo que você ficou aqui, nesse lugar decrépito, deixou-a mais mole, irmã…

    As palavras eram quase um sussurro, mesmo assim, Elizabeth as ouviu.

    — Não passe da linha, Ulisses

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota