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    “Agora um adendo interessante: das praias de Aavier, uma possuía areias rosadas. Era um porto tão belo que os recifanos tomaram para si.”

    Izandi, a Oniromante


    Ezekel não conseguia pensar em uma forma melhor de descrever a cidade entre cinco colinas e cinco torres do que austera. Artreni lançou um piado alto enquanto seu Draconeiro a puxava suas penas no ângulo certo, a fim de avisar tanto o populacho dos Cyreck quanto os senhores em Mão da Queda e os cuidadores. Logo, o jovem príncipe entendeu de onde o nome da cidade havia surgido.

    Cinco colinas altas e pontiagudas erguiam-se tortuosas como se uma mão de dedos de rocha negra, soterrada por dezenas de séculos de terra, delimitando e se unindo ao único anel de muralhas cinzentas. Ezekel conseguia vê-las à distância, tornando-se cada vez maiores conforme o vento de descida roçava sua pele e disparava seus cabelos espetados e endurecidos pelo tempo de voo.

    Se tinha percebido uma coisa no tempo que passou voando — ou simplesmente perto da majestosa e orgulhosa dragão-real — era essa estranha peculiaridade. Pensava ser consequência do Sangue Antigo fluindo nas suas veias. Os registros e contos selados no castelo dos Godwill relatavam o sangue de sua família como contentora de propriedades milagrosas e poderes antigos.

    Graças a isso, sempre foram de beleza estimulante. Ouvira muitas vezes na Mata dos Grilos que a beleza de sua irmã Graycejoy faria soldados pararem a guerra, e de fato tal coisa aconteceu com seus ancestrais. Leini Godwill, a Princesa dos Retalhes, teria sido perdida em infância e vivido toda sua curta vida trajada em retalhes, abandonada em ruelas de uma cidade de lordes cruéis. No entanto, quando crescida, jogou-se no campo de guerra para resgatar o marido da sede de sangue contra os imperiais.

    Tanto os soldados dos Cinco Reinos quanto os eztrielizianos teriam parado o combate violento somente por terem visto seu rosto de pranto no campo de batalha. Havia também a história de uma bruxa, nas velhas épocas que prescindiam a união dos Cinco Reinos e do Tratado da Boa Magia, quando os inquisidores quimteístas perseguiam os bruxos malignos. Ela teria enganado o filho do duque Godwill, um garoto de coração tão puro que em tenra infância estava decidido em trocar sua primogenitura pelo sacerdócio… arrancado o coração do garoto com uma faca de dentes de lobo e feito uma poção que a daria vida eterna.

    A cabeça da bruxa foi incrustada em dentes de ferro e até os dias de hoje adornava o tesouro dos Godwill.

    Ezekel dava crédito a essas histórias. Afinal, nasceu sabendo falar uma língua antes mesmo de aprender a falar… No entanto, havia muitas em que era receoso, e os pelos eriçando em Artreni não parecia ser uma das coisas que o Sangue Antigo parecia ser responsável. As penas da dragão-real… O príncipe sentia choques contra sua pele toda vez que voavam alto demais, mas também toda vez que passavam muito tempo no ar.

    A dragão-real cansava após algumas horas de voo, todavia vez ou outra Ezekel decidia voar por mais tempo do que deveria… Talvez esperança de que, se chegasse mais cedo em Mão da Queda, Suas Majestades também chegariam — e resolveriam os problemas diplomáticos rapidamente. Fariam mais uma vez seus acordos e decidiriam suas partes…

    E voltaria para os braços de Ofina e dos filhos… “Ah, falta tão pouco!”, choramingou consigo. Estava contando os dias para o nascimento dos filhos, se não acontecesse mais cedo…

    — Abaixe um pouco menos, irmão! — gritou Natharel, segurando-se nas alças da sela de Draconagem. — Neste ângulo, colidirá com as muralhas da cidade!

    — S-sim! — respondeu com um grito fino. Imediatamente corrigiu o ângulo que puxava os grandes amontoados de penas de Artreni, que piou alto mais uma vez.

    — Precisa pensar melhor nisso! Para voar bem, não basta imaginar o caminho! Tem que pensar que Artreni não sabe onde estamos indo e muito menos o porquê! — Retirou uma das mãos da alça e deu um tapinha no ombro do irmão mais novo, que suspirou e absorveu a informação. — Todavia não subestime a inteligência da Chamativa, Ezekel. Ela saberá pousar sozinha. Você só precisa dizer onde! Mostrá-la isso!

    Ezekel absorveu as palavras do irmão com o máximo de concentração que seus olhos secos pelo vento conseguiam. Ainda a uma vintena de quilômetros, as altas muralhas de Mão da Queda se tornavam mais nítidas, com suas cinco torres de vigia e fortalezas externas, ladeando e distantes do imponente rio Nelieth, que banhava todo o oeste de Aavier. Centenas de quilômetros ao leste, o bifurcado e inclinado rio logo se uniria ao Lijje e ao rio Invertido, formando o Canal das Flores, um único rio com águas poderosas, largo o suficiente para que uma vintena de navios passasse lado a lado.

    “Navios”, pensou Ezekel. “Quanto… custaria um navio para as ilhas de minha esposa?”

    Havia navios por todo o rio, indo e voltando pelo Nelieth cristalino à luz primaveril recém-nascida. Florestas de copas esverdeando se desenhavam por quase todo o caminho antes de dar à luz aos prados ondulados aos redores das fortalezas externas, enquanto o verde vegetal seguia em um caminho serpentinoso, transpassando a bifurcação oeste do Nelieth e se aglomerando em uma floresta tão densa que não conseguia sequer ver as cores dos troncos das árvores.

    “Druidas”, lembrou Ezekel.

    A dragão-real emitiu mais um piado estridente, dispersando as nuvens mais baixas em um rasante profundo e súbito. Ezekel engoliu em seco e agarrou as penas com a força do seu desespero… Um bando de aves coloridas e viajantes estava planando pelo amanhecer, retornando para o reino.

    Já a dragão-real abriu seu focinho lupino que, de alguma forma, lembrava Ezekel de um grande e grosso bico de um pintassilgo, e o fechou em nos pássaros azarados, com uma força que empurrou os que deram sorte. Os pássaros dentro da boca de Artreni ainda tiveram tempo de piar antes da língua da dragão-real ceifá-los, fazendo os ossos estralarem. Então um sonoro deglutir fez o príncipe Godwill desviar o rosto congelado.

    — Você tem que parar de fazer isso… — ele sussurrou para a dragão-real, afagando a base do pescoço longo e plumoso. Apesar da palidez de seu montador, Artreni parecia… alegre e revigorada. Suas penas de ouro e prata de repente pareciam mais vivas.

    Natharel dava uma risada silenciosa.

    — Ruyach também tem esse hábito, irmão! — riu Natharel. — No entanto, seu pescoço é tão longo que ele nunca precisou descer tão rápido…! Veja pelo lado bom! Ao menos nós estamos em um ângulo mais rápido! Artreni nos levará mais rápido!

    “Estou contando com isso!”, bradou Ezekel consigo, comprimindo os lábios. “Como Ofina está agora? Sempre foi boa em ficar sozinha…” Embora suas cinco aias recifanas sempre estivessem dois passos atrás de sua dona, seu semblante era tão… solitário… “Desvencilhe-se. Quanto mais rápido terminar, mais rápido irá vê-la.”

    Com isso, Ezekel corrigiu o ângulo que segurava as penas e apertou o estribo. As cordas de segurança, amarradas nos pitos do seu lugar da sela, ficaram retesadas com o novo Draconeiro mudando o ângulo do seu corpo. Faça assim, dissera Natharel, sentado num tronco, quando estivermos descendo. Você deu sorte de Artreni ser uma dama muito bem educada. Se ela fosse maior ou mais rápida, as cordas poderiam ter rompido, jogando-te ao céu abaixo. Ezekel congelou de medo. Não precisou ouvir duas vezes.

    “Eu sou corajoso.”

    O vento gélido do alto dos céus traçou retas e curvas enevoadas bem visíveis nas longas asas da dragão-real, deixando um rastro branco no céu. Seu grande corpo plumoso e esguio se inclinou mais profundamente, focando na alta construção próximo do dedo maior de Mão da Queda — o Ninho-do-Dragão dos Cyreck. Ainda aos olhos do mais baixo, parecia uma torre grossa de lama mal banhada pela luz do sol. No entanto, quanto mais se aproximava, começava a notar vigas de metal e madeira louçados com azulejos marrons, semelhantes a marcas de garras brilhantes.

    As garras enormes e um pouco mais brilhantes que o resto da construção de dezenas de metros apontava para entradas semiovais, como bocas de metros de altura. Sua língua de pedra era sustentada por arcobotantes e se projetava por metros e metros, iluminadas por veletetos imensas e os azulejos reluzentes. De tanto olhar para a construção, Natharel teve que avisá-lo para elevar Artreni alguns metros acima — atravessaram a muralha com a cauda longa da dragão-real quase colidindo com os merlões.

    “Ahhhhhg! Pelos Deuses!”

    A dragão-real fez esse trabalho ela mesma. Bateu seu par de asas contra o ar e disparou seu corpo cansado para o alto, causando uma rajada de vento que balançou as janelas das casas e disparou nuvens de poeira para o alto. Fileiras de soldados se formaram pelas ruas, seguindo Artreni em um cortejo desesperado. “Estamos baixo demais! Baixo demais!” Ezekel cerrou os dentes e puxou o estribo. “Erga-se, garota!”

    Artreni piou alto, um pio tão estridente que fez os Draconeiros não ouvirem nada senão um zunido. Então ergueu seu peito e asas, voando disparada para os céus, fazendo todas aquelas pessoas virarem nada senão pontos numa rua fina como uma linha de costura.

    — Do lor ache, Artreni! — gritou Ezekel. A dragão-real piou mais uma vez, balançou a cabeça e centrou seus olhos no Ninho-do-Dragão dos Cyreck.

    Natharel deu tapinhas nas costas do irmão.

    — Está aprendendo bem, irmãozinho! Talvez vocês formem um Vínculo!

    — Seria… bom…!

    — É sério que falou isso?! Ter duas mulheres ciumentas prescrutando sua alma não me parece bom!

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