Capítulo 69 - "Cristais do Véu"
Mapas e relatórios estavam espalhados pela mesa central, alguns riscados com tinta vermelha, outros cobertos de notas recentes. O ar era pesado, carregado de dúvidas marcadas e pergaminhos abertos.
Thalien mantinha-se ereta à cabeceira da mesa, as mãos firmes sobre a madeira. A voz não era alta, mas tinha o peso de quem estava acostumada a ser obedecida.
— O setor leste precisa de reforços na drenagem. Se mais um túnel ceder, vamos perder a passagem direta para o entreposto.
Malrik bufou, recostando-se na cadeira, os braços cruzados.
— Sempre a maldita drenagem. Não adianta ter teto firme se o povo morre de fome lá embaixo. A prioridade devia ser comida, não pedras.
Ydrine ergueu os olhos do pergaminho que lia, a expressão fria.
— E se o teto cair sobre os campos de cultivo subterrâneos? Vai alimentar cadáveres, Malrik?
Ele estreitou os olhos, mas conteve a resposta. O silêncio que se seguiu foi cortado apenas pelo ranger da porta. Um assistente entrou apressado, carregando um pergaminho lacrado com cera vermelha.
— Relatório urgente da periferia. — A voz do jovem tremia.
Quem recolheu o relatório foi Ydrine, que começou a ler o relatório com a mesma feição apática, mas a cada linha uma sombra tomava seus olhos, mas ao chegar na última linha, mesmo sem notar ela leu em voz alta, e um leve tremor podia ser visto no papel, a voz dela falhou.
— “…Rallen foi visto levantar após a morte, repetindo frases desconexas, até ser contido e eliminado.”
— Ydrine… o que houve? — Thalien perguntou notando a reação incomum.
Ydrine entregou a carta a Malrik que começou a ler em voz alta:
— “Explosão registrada nos túneis da periferia. Origem incerta. Estimativa de dezenas de mortos e desaparecidos. Relatos afirmam que o explorador identificado como Rallen foi visto levantar após a morte, repetindo frases desconexas, até ser contido e eliminado.”
A sala ficou em silêncio, tão pesado que até o estalo das velas pareceu distante.
Malrik quebrou a tensão com uma risada curta, forçada.
— Morto que levanta… que piada é essa? — Mas a risada morreu antes de terminar. Os olhos dele buscavam qualquer sinal de que aquilo era apenas um exagero.
Ydrine tomou de volta o pergaminho com força.
— Não é piada. O selo é de Capitã Elandra. Ela não escreveria isso nem em delírio.
Thalien apoiou as duas mãos sobre a mesa, o olhar duro. Mas mesmo ela, acostumada a absurdos, demorou um instante antes de falar.
— Se há testemunhas… então temos que considerar.
A palavra pairou entre eles: considerar.
Ydrine falou baixo, quase num sussurro.
— Vocês entendem o que isso significa? Se for real, não estamos falando de explosão. Estamos falando de algo que … rompeu o equilíbrio da própria morte.
Malrik engoliu em seco, mas se manteve firme.
— Então mais motivo pra descobrir o que houve e de onde veio aquela explosão. Uma explosão dessa não nasce do nada.
— O povo da periferia já está vivendo com medo das ruínas. Se esses rumores se espalharem sem controle, teremos pânico. Precisamos de respostas rápidas. — Thalien ergueu o queixo, firme, mas sua voz tinha um peso diferente agora. — Malrik, pode verificar esse incidente?
Um suspiro pesado pode ser ouvindo ao fim da reunião.
A sala de Malrik estava abafada, mesmo com a luz difusa que entrava pelas frestas da pedra. O homem permanecia de braços cruzados, apoiado na mesa repleta de relatórios. Do lado de dentro, o silêncio só era quebrado pela pena arranhando o papel da assistente, que no salão externo fazia a triagem dos cidadãos apavorados da periferia.
Ele, no entanto, tinha outro foco. À sua frente estavam duas figuras, a capitã dos exploradores destacados na noite anterior e uma das mulheres que compunham sua tropa responsável por finalizar Rallen. Malrik as observava em silêncio, deixando o peso da própria presença pressionar o ambiente.
— Capitã. — sua voz era baixa, firme. — Quero sua descrição exata do que ocorreu. Sem metáforas por favor.
A capitã assentiu, postura rígida.
— Rallen surgiu dos túneis em estado crítico. Metade do rosto queimado, braço direito decepado, sangrando em volume incompatível com o que o corpo humano pode aguentar, era fácil deduzir que ele iria morrer mesmo com intervenção.. Ainda assim, de alguma forma ele teria caminhado desde as profundezas da explosão até a saída. Localizamos o epicentro da explosão e era ruinas já saqueadas da família Eryndral, estimo no mínimo, duas horas de deslocamento. Fisicamente… impossível naquelas condições.
Malrik não reagiu, apenas pediu com um gesto para que prosseguisse.
— A mana reagia de forma estranha ao redor dele. — a capitã continuou. — O sangue não seguia o fluxo comum, parecia jorrar em excesso, como se o corpo fosse incapaz de manter coesão. E, quando caiu… voltou a se mover. O corpo se reconstituiu parcialmente, retrocedendo os ferimentos a um estado anterior. Como se a morte tivesse sido negada por uma força externa.
O silêncio pesou sobre a sala. Malrik tamborilou os dedos contra a mesa, respirando fundo. Então, desviou o olhar para a segunda exploradora.
— Você. Quero sua versão.
A mulher respirou fundo antes de falar. Sua voz tinha menos rigidez, mas havia nela uma clareza desconfortável.
— Havia uma energia ao redor dele e não era natural. Não era cura. Pareciam fios… fios de mana branca, costurando músculos, forçando os pulmões a inflar. Não havia consciência ali, só repetição. Ele estava como um boneco quebrado.
Ela engoliu em seco.
— Quando atravessei a lança pela cabeça dele, senti os fios se romperem… e a energia se dispersou. Foi a única vez que vi algo assim…
Malrik se recostou na cadeira, os olhos fechados por um instante. O ar na sala era pesado, denso, como se cada palavra tivesse acrescentado mais peso à pedra sobre suas costas.
Foi nesse momento que a porta rangeu. A assistente entrou, cabelo escuro, calça e blusa longa de alfaiataria, segurando uma prancheta.
— Senhor, encontrei alguém com informações concretas. Não é rumor, eu verifiquei, é bom ele ser ouvido.
Atrás dela, um homem pálido entrou, carregando uma mochila de couro gasta. Malrik abriu os olhos, endireitando-se na cadeira.
— Tragam. — disse apenas.
O mercador caminhou até o centro da sala e, sem esperar ordem, retirou da mochila um cristal do Véu. O brilho intenso iluminou o espaço, arrancando um murmúrio involuntário até das exploradoras.
Malrik estreitou os olhos.
— Onde conseguiu isso?
O mercador não respondeu de imediato. Apenas sorriu nervoso e puxou a mochila mais uma vez. De dentro, tirou outro cristal. Depois outro. Até que quinze deles reluzissem, empilhados sobre a mesa.
O silêncio foi absoluto.
Malrik não disfarçou o choque. A pureza daqueles cristais… e a quantidade… eram impossíveis de ignorar.
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