Alguns instantes atrás, um menino observava distante, mas nem tanto. Atrás de uma cerca, via um homem que empunhava sua espada. Brandia-a habilmente, mas lutava contra algo ou alguém invisível.

    Essa era a visão de Elian enquanto segurava o líquido alcoólico que pesava em suas mãos. A garrafa de vinho.

    Seu coração se agitava incontrolavelmente com a ideia de se aproximar, pois, em verdade, ele não sabia como fazer e nem tinha a coragem para isso.

    Ele havia vindo cedo, a mando de sua avó, Alzira, que o aconselhou e disse: “O capitão da guarda, Roderick, mantém uma rotina de treino toda manhã. Vá, meu neto, e não faça besteira”.

    E assim fez, porém, quanto à última parte do pedido de sua avó, ele não podia garantir nada. Ultimamente, as coisas não vinham a funcionar como deveriam.

    Primeiro, a situação que se encontrava com o dito capitão da Guarda, Roderick; depois, a ocasião que provocou um afastamento com seu amigo, Kael; por último, este sentimento estranho que o acompanhava desde o começo da manhã.

    Desde que acordou, algo não estava certo. Nem ideia do que era, mas estava lá dentro. Diferente. E elian não sabia lidar.

    Um vazio enorme.

    Alzira, sua avó, não soube explicar. Suas palavras foram: “Foi apenas um sonho ruim”. Ditas enquanto o confortava, acariciando os fios negros da cabeça de seu neto. 

    O gesto, mesmo bem vindo, não aliviou.

    Essa angústia, embora única, também veio acompanhada com um novo desejo: poder.

    Não tinha consciência de como isso era importante antes. Não precisava. Mas agora sabia: sem a força para se proteger, seria frágil.

    Sem tal força, seu destino era, quase que com certeza, ser esmagado por outras forças maiores.

    Seja em um beco, ou talvez com uma flecha atravessada na garganta.

    Não se lembrava de seus sonhos com frequência, porém, o de ontem lhe mostrava a visão de como uma existência indefesa era facilmente engolida e silenciada pelo mundo.

    Sua vontade, então, sendo apagada; não valendo de nada sua vida.

    De suas experiências recentes, foi isso que aprendeu.

    Portanto, era apenas natural o jovem estar fascinado vendo a exibição de combate do homem a frente dele.

    Roderick vestia seu gibão acinzentado, marcado com o tempo, mas perfeito para a situação atual. Era um simples treino, mas a mobilidade era essencial e nunca se sabia como o destino agiria.

    Em caso de alguma eventualidade, deveria estar preparado. Essa era a natureza do homem.

    O suor se acumulava em sua testa, mas sua respiração era controlada. Ainda poderia manter o ritmo por um longo tempo.

    Sua espada descia de baixo para cima, em um movimento ascendente; depois adotava uma postura defensiva, enquanto preparava um novo golpe.

    Cada um era executado de maneira a se encaixar com o outro, formando uma sequência. 

    Suas botas de couro levantavam poeira pelo chão, à medida que se movimentava. Ele não ficava parado apenas jogando os golpes de qualquer jeito.

    Era quase como… se a espada não fosse apenas uma espada, mas uma extensão do corpo. Uma parte natural que sempre esteve ali.

    E Elian percebeu isso. Embora sempre protegido por sua avó, Alzira, ultimamente ele saia mais de casa, em grande parte graças a Kael, e já tinha visto alguns desentendimentos entre a população, em maioria os bêbados. Os motivos pelos quais brigavam eram muitos: desde aos simples desentendimentos, até a perda de uma vaca em um jogo de azar nas apostas.

    Seus golpes, desajeitados, mal acertavam seus oponentes. Era diferente do que o capitão da guarda estava mostrando nesse momento.

    Era tudo calculado. Mesmo enfrentando um adversário invisível.

    “Essa é a principal diferença entre um bêbado e um soldado?”

    “Incrível”, pensou, mas foi apenas por umas poucas respirações de tempo, antes que o homem, Roderick, falasse:

    — Eu sei que você está aí há um bom tempo. Apareça

    Não foi um pedido. Foi uma ordem. Seca. Sua voz se elevou alta o suficiente para o garoto ouvir, entretanto, os olhos de Roderick ainda estavam focados a frente, em algo que só ele via.

    A surpresa tocou Elian como o vento frio da noite assalta o desatento quando deixa a janela aberta. Imprevisível.

    “Como ele sabia? Eu estava escondido!”

    O corpo gritou para correr. Sair dali o mais rápido que pudesse e não olhar para trás. A ironia da situação era que o mesmo corpo não se movia, fracassando na tarefa. Diversos pensamentos passando na mente.

    Porém, o luxo de raciocinar e mesmo hesitar não estavam à disposição.

    — Não me faça repetir. Revele-se

    Sobre a pressão e o coração batendo tão rápido que seus ouvidos poderiam ouvir a frequência, encontrou forças para se pôr de pé.

    Cada passo que Elian dava, sentia suas pernas ficarem mais moles e perderem a sustentação necessária para a caminhada. Todavia, continuou até estar mais próximo do homem.

    Nesse ponto, ele já tinha traspassado o limite da cerca, estando agora na área de treinamento.

    Era um espaço a céu aberto espaçoso. Tinha alguns quintains, assemelhando-se a espantalhos. Compostos de madeira, palha e couro. Feitos para treinos.

    Havia também alguns alvos para a arquearia.

    No geral, não era o melhor, mas era funcional e isso era tudo. Roderick não se importava com nada além de eficiência.

    Servia bem para estressar os músculos, suar, ficar ofegante e esquecer dos problemas.

    Seus olhos azuis acinzentados então se desfocaram do fio da lâmina, abaixando a arma e embainhando-na. O peso na cintura era familiar e reconfortante.

    Virou-se então, fixando seu olhar em um menino. Um que mal tinha ‘desmamado’ ainda, muito menos ter pelos em algum lugar que não fosse a cabeça.

    — Quem é você? — perguntou. A voz em dúvida real. Seus olhos estreitaram-se, como se buscasse nas lembranças algo relevante.

    — Eu? … ah, eu… eu

    Elian não sabia duas coisas: responder a pergunta e como parar de gaguejar.

    Sua mente, embora, ainda pensava.

    “Mas você me viu ontem! Como pode esquecer assim?!”

    A ironia é que Elian não sabia de uma terceira situação: Roderick tinha um problema com álcool.

    Depois do ocorrido, ele bebeu até onde podia. Desmaiou no campo de treinamento e como acordou ali, aproveitou para treinar um pouco.

    A ressaca ainda martelava sua cabeça.

    Não fosse por isso, ele deixaria Elian em paz. Sóbrio ele não se importaria menos com alguém o observando, mas a dor, junto com o desconforto do menino olhando ao longe o fez agir. Ele tinha percebido o pequeno intruso desde o momento que chegou.

    — Vamos, quem é você e por que está aqui, garoto?

    Elian, com a língua presa, encontrou a forma de responder apenas estendendo a mão, revelando a garrafa.

    — Tira essa coisa da minha frente — Roderick disse, espantando com uma mão enquanto a outra esfregava a testa. Podia sentir o estômago embrulhando com a visão. — Estou com uma ressaca do caralho e você ainda me mostra bebida?

    O homem não se importava menos que ali era uma criança. Se expressava sem pudor algum. Elian não estava acostumado.

    — Não… não, senhor. É que… é que…

    O homem bufou. 

    — Por Deus! Diz de uma vez!

    Elian estava olhando para o chão, para os próprios pés, antes de explicar:

    — O senhor capitão da guarda me pediu para buscar esse vinho para o senhor…

    — E quando foi isso?

    — … Ontem

    A compreensão atingiu Roderick. De alguma forma, fazia sentido com o que se lembrava, que não era muito.

    Mesmo assim, não se encaixava no seu modo de agir.

    “Por que eu ajudaria esse moleque?”

    — … Explique

    Elian encontrou dificuldade mesmo para respirar, mas não recusou.

    — … Ontem no mercado uma pessoa morreu. O senhor e um homem gordo discutiram, lembra? Mas antes disso, sem querer eu esbarrei nele… você… não… o senhor me ajudou com isso

    — Olha… — explicou, enquanto mostrava a garrafa — o senhor me pediu pra comprar isso pra você

    A luz do sol, irradiante, refletia no vidro soprado. Irritava os olhos.

    Entretanto, a rolha estava marcada pela cera. Uma marca poderia ser vista. Definitivamente caro.

    Roderick deu uma pequena cambaleada quando viu mais de perto.

    — Cepa dos Almeir? Santo Deus! Eu devo ter ficado louco! 

    Elian inclinou a cabeça para o lado.

    — … Cepa dos Almeir? O que significa?

    — É o nome do vinho — Roderick respondeu rapidamente, pegando a garrafa. — Está marcado na rolha.

    — Ah… entendi. 

    “… Queria saber ler também”

    Se Alzira soubesse, pediria para ela o ensinar. Infelizmente, a mulher também era ignorante nesse aspecto. 

    — … Sim, é original — Roderick disse, depois de dar uma rápida analisada. — Quanto custou?

    Mesmo lacrada, o cheiro doce era inconfundível. 

    — …. Eu não sei, senhor — Elian respondeu com sinceridade. — Você jogou dois marcos para o vendedor e falou que era o suficiente.

    — Porra! — Roderick esbravejou, ficando um pouco vermelho. — Essa merda de pilantragem do caralho de comércio! Dois marcos! Onde eu tava com a cabeça!

    O homem agora estava amaldiçoando internamente sua estupidez e mais ainda Beltrão Moura e sua caravana.

    Elian, no entanto, apenas observou sem reação.

    “… então esse é o capitão da guarda?”

    Elian não estava menosprezando Roderick, pelo contrário, sabia que o homem era forte, mas a situação atual era um enorme contraste com a visão primária que o garoto pintou sobre o homem.

    — Agora a merda já foi feita e não tem como voltar atrás — Roderick disse. — Bom… não dá pra desperdiçar. Vou tomar depois

    Dito isso, guardou a garrafa.

    — E quanto a você?

    — … Quanto a mim o quê?

    — Você, moleque, por que tá aqui ainda?

    “Que cara maluco!”, Elian pensou, mas ficou apenas no pensamento, sem demonstrar de forma alguma seu descontentamento.

    — … O senhor falou sobre eu ser seu “subordinado”

    Roderick observou Elian da cabeça aos pés.

    — Ha! Que piada. O que um garoto que nem tem pelo no saco pode fazer? Esqueça

    — Mas o senhor falou…

    — Não importa o que eu disse — Roderick interrompeu sem rodeios. — Vá embora

    Elian queria contestar, mas de alguma forma sentiu que o homem seria inflexível; desistindo da ideia.

    — … Se é só isso… obrigado por me salvar ontem, senhor — disse, se curvando levemente em agradecimento e dando meia volta para sair.

    O homem não falou nada até então, voltando a desembainhar sua espada e focar-se no treino.

    Elian estava andando para sair da área quando Roderick disse sem se virar para olhá-lo nos olhos:

    — Eu nunca te vi aqui antes. Você é parente de quem?

    A resposta veio depois de algumas respirações.

    — Alzira

    — Alzira, a padeira?

    — … Sim

    Vendo que a conversa tinha morrido, o garoto saiu, deixando somente um homem no local.

    — A velha Alzira, hm… — Disse, enquanto balançava as espada. — Não sabia que ela tinha um neto

    Roderick não se importaria menos, mas velhas lembranças vieram. Umas que apenas uma sessão pesada de treino poderia ajudar a enterrar de novo.

    Seus ataques em cadeia ficaram mais ferozes, mostrando um ritmo imprevisível.

    Do alto de uma casa, uma figura feminina observava de uma janela o homem.

    — É uma raridade Roderick ficar tão perturbado. Quem era aquele menino de antes?

    Suas mãos estavam envolvidas em um livro. Um lapso de memória tirou-lhe um sorriso.

    — … Interessante

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota