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    Era dito que nos dias anteriores ao céu azul, o mundo era coberto por uma grande nuvem de areia, criada por Eresh, quando este governava os céus e fazia chover sal, areia e enxofre sobre o mundo. Ele detestava a humanidade, suas misérias, vícios e fragilidades, então tentou soterrar o mundo dos homens para que nele nada crescesse.

    Mas Ash’hurr, seu irmão, teve compaixão.

    O deus criou poços e lugares verdes em meio ao deserto seco, onde os homens se abrigaram. E impediu que as criaturas deformadas de Eresh adentrassem-nos.

    Mas esses poços eram sempre cobertos pela areia e pelo enxofre quanto mais passavam os dias. Então Ash’hurr criou a passagem de pedra. Um lugar que nunca poderia ser coberto inteiramente pela areia e morte de Eresh. Onde os homens puderam viver com segurança.

    Furioso, o deus que governava os céus lançou suas hordas de seres impronunciáveis, sobre os sobreviventes.

    Sabendo que a humanidade não poderia resistir ao incessante ataque das criaturas, Ash’hurr escolheu jovens, homens, mulheres, velhos e viúvas, e os abençoou com dons.

    Os homens usaram esses dons para repelir as criaturas, e as hordas de Eresh recuaram.

    Cansado da injustiça e da crueldade do irmão, Ash’hurr ousou desafiá-lo pelo controle dos céus. Mas Ash’hurr sabia que não poderia lutar contra a força superior daquele que fazia chover morte apenas com sua vontade. Então tomou dez de seus mais devotos abençoados e pediu a eles algo valioso demais para homens comuns.

    Mas sabia que aqueles não eram homens comuns, eram abençoados, escolhidos por ele, e assim pagaram o preço de bom grado, dando seus sangue e sua vida ao deserto, e colorindo uma parte dele de vermelho, matando as criaturas de Eresh que ali viviam.

    Ash’hurr tomou a essência desses seres, milhares deles, e fez para si uma arma tão mortal que poderia rasgar os céus, e assim o fez. Teceu um corte, desfazendo as pesadas nuvens de areia e ferindo gravemente a Eresh e libertando os homens.

    Não poderia matá-lo pois eram irmãos, mas baniu-o para o mar dourado ao lado da passagem de pedra, onde seu antigo espírito viveria para ser pisado pelos viajantes, sendo obrigado a dar-lhes viagem seguro por seus caminhos, perdendo força cada vez que o sangue de um deles era derramado.

    Mesmo assim, o ódio de Eresh pela humanidade e seus filhos não arrefeceu, e ele continuou a guardar suas criaturas nas entranhas do deserto e a levantar tempestades de areia sobre a passagem de pedra.

    Levantava-as cada vez mais alto, desejando subir com elas até os céus, onde seu irmão agora estava. Mas cansava-se e adormecia, por dias e dias, até ter força para fazê-lo novamente.

    Zaya recordava cada detalhe dessas histórias. Sua mãe contou-lhe dezenas de vezes. E toda vez que conseguia olhar para o horizonte além da passagem de pedra, onde o mar dourado estava, via ali Eresh preparando-se para, mais uma vez, tentar alcançar os céus.

    Estavam no alto de uma torre construída pelos homens antes do céu azul, quando precisavam vigiar o mar dourado contra os seres de Eresh.

    Ainda não havia anoitecido completamente, mas o sol já não podia ser visto além das pesadas e negras nuvens do horizonte distante. Um lembrete de que as tempestades estavam chegando.

    O gordo cantarolava uma melodia sem ritmo, enquanto Ítalo ajeitava a lenha seca que haviam encontrado. A garota, Daisy, olhava na direção oposta à de Zaya, para o labirinto feito pelas fendas rochosas e áridas da passagem. Talvez vigiando, preocupada com coletores que poderiam descobri-los ali.

    Estava procurando perigo na direção errada, sabia Zaya. Nada na passagem representava mais perigo para eles naquele momento do que as nuvens negras no horizonte.

    Logo Eresh as ergueria sobre a passagem, derramando sua vingança sobre os homens que ajudaram Ash’hurr a trancafiá-lo na terra. Não podiam ficar ali quando isso ocorresse. Não sobreviveriam. Nada sobrevivia. Precisavam ir para dentro de uma vila.

    Mas para onde?

    Zaya não conhecia outras aldeias além da sua. Podia senti-las, claro, percebendo muitas sombras amontoadas em um mesmo local. Por isso, percebia que ali perto havia uma, mas não sabia como chegar até ela, pois os caminhos de todas as aldeias eram secretos, conhecidos somente por seus moradores.

    Ela sabia apenas o da sua. E sabia que estavam longe dela. Sentindo-se completamente alheia de para onde estavam indo.

    Seguiam a direção que Daisy indicava, e só.

    Mas ela não era da passagem, disso Zaya tinha certeza. E por isso não conhecia nenhum caminho para nenhuma vila. E, mesmo se soubesse. Zaya tinha completa certeza que nunca chegariam a passar pelos portões.

    Conseguia apenas lembrar do que Baaz fez aos últimos invasores que tentaram se esgueirar para dentro.

    Após 3 dias sob o sol quente, sua carne seca se tornou um banquete para as aves carniceiras.

    Imaginava o que outros anfitriões fariam a eles, e apenas rezava para que Ash’hurr lhe concedesse uma morte indolor.

    O rosto de Aaliyah vinha a sua cabeça toda vez que o fazia.

    Pensou na irmã. Se Zaya não estivesse lá, o que lhe ocorreria? Pensou em Aaliyah, sozinha nos campos de cultivo, à mercê da vontade dos guardas e demais trabalhadores. Por quanto tempo suportaria, e que vida seria essa?

    Desejava não ter saído da aldeia.

    Desejava não tê-la deixado. Desejava seus pais sentados à mesa, juntos com elas. O pai a ler histórias das terras verdes, sua mãe a pentear seus cabelos com aquele pente de madeira.

    Desejava ver o mar.

    Ouviu um murmúrio de satisfação, olhou para o lado e viu a fogueira acesa, e Ítalo comemorando isso.

    Zaya revirou os olhos.

    O rapaz era patético, ele mesmo admitia isso. Também não negava que era tolo, nem que era fraco. Nunca conhecera um rapaz que admitisse isso, muito menos um que aceitasse.

    Ítalo a percebeu olhando para ele, e se encolheu, claramente envergonhado de sua ação infantil. Começou a assar a carne de lagarto que haviam caçado.

    Eram mais fáceis de achar naquelas ravinas do que antílopes, que ficavam mais próximos das fontes da bacia lisa.

    Zaya os ensinou quais espécies podiam ser comidas e quais eram venenosas. Embora não nutrisse nenhum amor por seus captores, ela não desejava morrer de fome.

    Daisy sentou-se próxima à fogueira quando a carne ficou pronta, então todos comeram.

    Era difícil para Zaya fazer qualquer coisa com as mãos atadas. Ítalo parecia perceber isso, pois ficava ao seu lado enquanto ela comia. Embora Zaya estivesse certa de que ele só o fazia para vigiá-la de perto.

    O vento soprava incessante. Areia batia contra seus rostos trazida de todas as direções. Zaya olhou para em direção às trevas nos confins do mar dourado.

    Estava cada vez mais forte.

    — O que pretendem fazer? — perguntou Zaya a todos.

    Ítalo olhou para ela e então para Daisy.

    A pequena garota que liderava o grupo ficou olhando para as formas escuras da passagem de pedra.

    — Esperar aqui — declarou ela.

    Zaya franziu os olhos.

    — O que está dizendo? — perguntou, desacreditada.

    — Sabe onde estamos — Daisy virou seu rosto, encarando-a.

    — Uma torre de vigia — respondeu.

    — Não, minha cara beduìna, desejo que me diga o que há alí — apontou em direção a passagem.

    Zaya olhou, sem entender, até que a resposta lhe veio.

    — Como sabe disso? — indagou.

    Daisy sorriu, o rosto iluminado pelas chamas oscilantes.

    — Então há realmente algo, mas ainda não sei ao certo o que é. Me diga então.

    Zaya engoliu em seco, olhando para a passagem e de volta para Daisy.

    — Uma aldeia — respondeu.

    — Aldeia? Como assim? — perguntou Ítalo, ao seu lado, se inclinado para mais perto de Zaya.

    — O lugar onde eles moram, presumo — concluiu Daisy. — Pode nos levar até a entrada dela?

    Zaya tremeu. Lembrou-se de Touma e de Luqa. Eles morreram rapidamente, mas seus familiares foram arrastados de suas casas e espancados até pararem de reagir de qualquer forma. Só então tiveram suas cabeças cortadas.

    — Não, não podemos. Apenas me ouça, não queira ir lá.

    — Sabe como entrar? — perguntou Daisy a Zaya, ignorando seus avisos.

    Zaya negou com a cabeça de forma veemente.

    — Conheço apenas os caminhos da minha — respondeu.

    Sim, afinal, as aldeias eram lugares secretos, onde a humanidade se escondeu das criaturas de Eresh no passado. E agora se escondiam uns dos outros.

    Daisy suspirou e olhou para as fendas sombrias mais uma vez.

    — Não fará diferença — disse. — Eles nos encontrarão, não é verdade? — Encarou a Zaya por um breve momento. — Vejo que sim. Por isso, podemos apenas esperar.

    — Esperar? — Ítalo se levantou de forma afoita. — E o que vamos fazer quando nos acharem?

    — Saberemos quando o momento chegar. Até lá, acalme-se e aguarde, obediente — Daisy respondeu.

    Ítalo suspirou de forma descontente, mas como sempre, obedeceu a garota, sentando-se novamente.

    Zaya sentiu o peito apertar com a ideia.

    Encontrariam sim. E tão perto de sua aldeia, não seriam apenas um grupo de coletores que viria, mas dezenas de guardas, ansiosos em proteger seu lar e tomar qualquer coisa de valor que ali pudesse ter.

    Ao menos era assim que se fazia na aldeia de Baaz. Ao menos era isso que ela faria.

    A noite continuou, com um sussurrante vento frio a ecoar pelas fendas das rochas. Zaya não conseguia dormir. Encarava a escuridão que cercava a pequena fogueira que os mantinha aquecidos no alto da torre talhada em pedra lisa.

    Não sabia o que temer mais.

    As formas escuras dos montes secos, que podiam esconder dezenas de homens se aproximando, ou o infinito breu assombroso que se estendia pelo horizonte. Onde nuvens de areia se aproximavam pouco a pouco, cobrindo tudo em seu caminho.

    Queria fechar os olhos e ver as sombras, mas tinha medo de, ao fazê-lo, constatar que de fato haviam sido encontrados pelos hóspedes da outra aldeia.

    Respirou fundo, tentando afastar de si o medo.

    Italo, ao seu lado, tremia de frio, mesmo próximo a fogueira. Talvez porque havia lhe dado boa parte de seus cobertores.

    Não fazia sentido para Zaya.

    Daisy a via da mesma forma que Baaz e Saadi a viam. Uma ferramenta. Um pouco melhor do que a forma que Burak via os abençoados, mas ainda assim, uma ferramenta. O gordo não fazia qualquer distinção entre ela e um bloco de pedra solto. Carregando-a em seus ombros o dia inteiro.

    Mas não Ítalo. E Zaya não o entendia.

    Não entendia porquê a tratava com essa gentileza, sendo ela sua cativa.

    O garoto olhava para ela de forma semelhante a como seu pai a olhava. Não era uma parente ou um membro de sua aldeia. Mesmo assim, ele a aquecia à noite e perguntava se estava bem pela manhã. Dividia com ela parte de sua própria comida e dizia coisas sobre a passagem. Sobre como era grande e fascinante, perguntando sobre o que ela sabia, ouvindo as histórias que Zaya ouvira de seus pais como uma criança bem atenta.

    O fato de não o entender a incomodava.

    Fechou os olhos, decidindo ver as sombras, ao menos para ter algo a fazer. Então sentiu suas entranhas derreterem quando notou dezenas delas subindo.

    Abriu os olhos, tremendo de frio e medo.

    — Eles… então subindo. Estão subindo — gritou.

    Ítalo se levantou, encarando a entrada da escada

    Daisy apenas sentou e levantou a cabeça.

    — Vamos esperá-los — disse, espirrando.

    O homem gordo continuou deitado, como se nada estivesse acontecendo.

    Uma silhueta surgiu da escada. Vestia um manto que escondia seu rosto ante a luz da fogueira. Outras duas sombras subiram atrás da primeira, parando as suas costas.

     Uma voz reverberou na noite.

    — O que fazem aqui? — A pergunta ecoou.

    — Estávamos a esperá-los — Daisy respondeu.

    As silhuetas encapuzadas se espalharam pela amurada da torre. A primeira retomou a palavra.

    — Partam, imediatamente. Aqui não é lugar para viajantes.

    — Mas não somos viajantes — Daisy respondeu. — Somos seus visitantes.

    — Os únicos visitantes que recebemos jazem presos nos portões, eternamente olhando para a saída — Os encapuzados os cercaram. Zaya sabia que deviam ter armas consigo. — Agora, digam-nos, a quem servis?

     A voz de Daisy soou novamente.

    — A quem sirvo? Sou súdita leal à rainha Elizabeth II, além de completamente apaixonada por David Beckham e Cristiano Ronaldo. Mas isso não importa. Me digam; conhecem o nome do anfitrião Baaz?

    Uma perturbação sussurrante se alastrou pela roda.

    — Se são escravos dele, já não posso dar-lhes uma saída pacífica desta torre — Anunciou a voz.

    Os homens encapuzados deram um passo, fechando o círculo.

    Zaya tremeu, encolhendo-se próximo ao fogo. O que faria? Como tentaria fugir. Como preferiria morrer?

    Depois de anos como uma escrava, torturada e violada? Se jogando da torre rumo a queda na escuridão? Mordendo sua língua e engasgando com próprio sangue.

    Zaya percebeu Ítalo escondê-la dos guardas com seu corpo, se pondo entre ela e eles. Percebia seu medo pela forma como sua postura se mantinha incerta.

    — Mas não somos escravos dele — explicou Daisy, estendendo a mão virada para cima na direção de Zaya. — Apenas ela é, e creio que isso lhe será muito útil.

    — Por quê? — A voz perguntou e os encapuzados pararam.

    Daisy olhou para Zaya, que engoliu em seco enquanto era fitada pela garota mais jovem.

    — Zaya, minha cara, diga-nos. O que sabe que mais nenhum de nós sabe?

    Zaya a encarou sem perceber.

    — Para de charadas e fala de uma vez o que quer dizer — bradou Ítalo, claramente apavorado com a situação.

    Daisy estalou a língua.

    — “Conheço apenas o caminho da minha”, você disse — falou, ainda olhando para Zaya, que arregalou os olhos, compreendendo.

    — É sobre isso que falo, aceitem-nos na vossa aldeia, e poderão saber o caminho para a aldeia de Baaz.

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