Capítulo 43– Porta ad civitatem abditam
Conto: Li Wang
Li Wang acordou algumas horas depois, com a garganta seca e os olhos ardendo.
Por alguns instantes não sabia onde estava. Apenas o peso do corpo, latejante, lembrava-lhe que ainda respirava.
O tecido áspero da tenda, o estalo do vento contra as lonas e o frio que se infiltrava pelas costuras trouxeram a realidade de volta.
Ela gemeu ao tentar se mover, os músculos doíam como se tivessem sido arrancados e costurados de volta às pressas.
Apoiou-se numa viga metálica interna, ainda trêmula, e permaneceu ali por um momento, tentando respirar fundo.
Mas o ar parecia pesado.
Fechou os olhos. E a imagem veio de novo.
“Yu.”
Seu irmão. Seu sol perdido.
A memória dele queimava nítida, cruel. Não como lembrança distante, mas como se estivesse vivo, parado diante dela, olhando-a com a calma que sempre a desconcertava.
— Por quê… — sussurrou, a voz falhando. — Por que você ainda está aqui…?
A dor apertou-lhe o peito como dedos frios cravando fundo.
Não sabia se era um sonho. Não sabia se era a influência maldita no fundo da alma.
Mas não importava.
O que doía não era a dúvida.
Era a saudade.
Era o arrependimento.
Era a certeza de que nunca mais ouviria a voz mansa dele, nunca mais sentiria aquela presença serena que tanto a ancorava.
Mesmo assim, ainda o via. Ainda sentia o olhar calmo, decepcionado, como se esperasse algo dela.
Ela enxugou as lágrimas que nem percebera que haviam caído.
— Eu não sou mais aquela criança… — murmurou, com os dentes cerrados.
O silêncio foi a única resposta.
E, por fim, ela fez o que precisava ser feito.
Reuniu o pouco de força que lhe restava e levantou-se.
Vasculhou cada canto com a precisão de quem já sabia o que procurar: lanternas, cordas, um novo cantil, ração de emergência, algumas munições abandonadas.
Tudo que poderia ajudá-la a continuar.
Mas, mesmo com as mãos ocupadas e a mente concentrada… o vazio dentro dela não sumiu.
Yu ainda estava lá.
Nas sombras da consciência.
Como um fantasma gentil, cobrando dela algo que talvez nunca pudesse fazer.
Li Wang agora estava envolta por um frio mais suportável graças ao novo casaco que havia encontrado em uma das tendas. Mas o corpo… o corpo parecia ter sido atropelado por uma avalanche. Cada músculo doía. Cada respiração parecia rasgar o peito por dentro.
“Não tenho o direito de parar aqui. Não ainda.”
Ao sair da tenda, o vento a recebeu como um tapa gelado.
Ainda forte, mas sem a fúria de antes.


Ela caminhou montanha acima.
E a paisagem se revelou um cemitério.
Primeiro apenas um corpo. Depois, dezenas.
Soldados da ONU, ainda reconhecíveis pelos uniformes azuis, estavam espalhados pelo gelo. Alguns, congelados, os rostos cobertos por crostas de gelo, os olhos abertos no vazio. Outros… dilacerados. Não por tiros. Não por explosões. Mas por cortes fundos, limpos, impossíveis de ignorar.
Li Wang parou diante de um deles, o olhar preso na carne rasgada.
— Que tipo de luta… aconteceu aqui…? — murmurou.
O vento não respondeu. Apenas soprou mais forte, carregando o cheiro metálico de sangue congelado.
E então ela viu.
Algo brilhou na neve.
No meio de um pequeno aglomerado de neve pisoteada, algo refletia a luz pálida do sol encoberto. Li Wang se ajoelhou e retirou com cuidado o que parecia ser uma pedra reluzente.
Era uma joia. Um cristal.
Frio ao toque. Metálico. Brilhava em tons dourados, como se respirasse por conta própria.
Imediatamente, lembrou-se do cristal de Azazel, aquele que pulsava dentro de si como uma maldição viva. O mesmo frio percorreu-lhe a espinha.
Por um instante, não conseguiu mover-se. Apenas observou o objeto em silêncio. Então fechou a mão em torno dele e o guardou no bolso interno do casaco.
“Apenas por precaução…” — pensou, embora soubesse que era mentira. Ela queria entender aquilo.
Ao seu redor, o silêncio era sepulcral. Nenhuma vida. Nenhuma voz. Apenas a montanha, fria e impiedosa, observando.
E no fundo da sua mente, a risada de Azazel ecoava… baixa… paciente.
O rádio preso à cintura chiou. Estática, ruído, até que uma voz grave e arrastada atravessou o ar como lâmina em brasa:
— Os Imperadores… Logan Ekdias, Kenji Ryujin e Scott Stewart… estão lutando contra o homem que protege o falso rei…
A voz soava quebrada, como se o locutor tivesse os pulmões em pedaços.
— Todas as unidades… voltem para a cidade e protejam os civis. Digam a eles… que bombas nucleares foram lançadas na montanha… Isto… é uma ordem…
O rádio silenciou, mas o eco daquelas palavras não.
Bombas nucleares…?
Não houve explosão. Não houve clarão.
Mas o chão tremeu.
Um som profundo, irregular, vibrou pelas entranhas da montanha. Não era explosão. Era algo mais velho. Mais primal.
Li Wang cambaleou. Olhou para baixo.
Avalanches.
Ondas brancas despencavam em cascata, serpentes de neve engolindo tudo no caminho. O som era ensurdecedor, tão pesado que o peito vibrava com cada impacto.
— Isso não são bombas… — murmurou. — O que está acontecendo lá em cima…?
Olhou para o alto. Uma nuvem gorda e imóvel se acumulava, prestes a desabar. Sob seus pés, o gelo rangia, pronto para romper.
“Se eu não sair agora, vou morrer soterrada.”
Ela correu.
Ou tentou correr.
A neve sugava-lhe os pés como areia movediça. O casaco a pesava. O frio cortava o rosto como lâminas.
E acima dela, o céu rugia como se titãs trocassem golpes invisíveis.
“Não posso morrer aqui. Não agora. Não assim.”
Foi então que viu.
Uma rocha enorme, com cerca de cinco metros de altura, destacava-se como um pilar natural em meio ao caos branco.
Era maciça, imóvel…
Li Wang acelerou, afundando ainda mais na neve até alcançar sua base.
Ali, um detalhe chamou sua atenção: um buraco na rocha, com pouco mais de cinco centímetros. Dele saía uma luz tênue, azulada, quase viva. Ela se aproximou, arfando. Olhou de perto.
— Isso parece… — sua mão instintivamente foi ao bolso.
O cristal.
Um novo som ecoou pela montanha.
Mais forte. Mais profundo.
O vento quase a derrubou. Olhou ao longe e viu enormes lufadas de ar explodiam da encosta, levantando toneladas de neve como se fosse apenas poeira.
— Isso não são bombas… — sussurrou, assustada. — Então… o que é…?
O cristal queimava em sua mão. Pulsava como um coração vivo, cada batida acelerando a dela.
O brilho aumentava, escapando pelas frestas dos dedos.
Atrás dela, algo mudou.
O ar ficou denso. Estático.
Um brilho cegante surgiu da rocha.
Não era fogo. Nem gelo.
Era… outra coisa.
Era algo que não pertencia àquele mundo.
Quando se virou, viu uma espécie de portal se formando na rocha. O contorno era como uma porta vertical feita de luz, com bordas vibrando, quase líquidas.

Era impossível ver o que havia do outro lado.
Apenas luz. E um chamado.
O cristal parecia puxa-la, como se implorasse para voltar para casa.
Ela ergueu a mão.
Hesitou.
“E se for uma armadilha…?”
O som acima rugiu como um trovão. A neve sob seus pés gemeu, prestes a ceder.
Não havia tempo.
Sem pensar mais, ela esticou os dedos… e tocou a luz.
No exato instante em que seus dedos tocaram a superfície do portal, tudo ficou branco. O mundo desapareceu.
Sem som.
Sem vento.
Sem dor.
Apenas luz.
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