Índice de Capítulo

    O caminho até o rio era silencioso, mas não daquele tipo de silêncio desconfortável. Era calmo, até acolhedor, de alguma forma. A luz suave da tarde batia na calçada, aquecendo as costas enquanto um vento leve tocava meu rosto.

    Yuki ainda estava ali, apoiada levemente nas costas. O peso dela não incomodava, nem um pouco mesmo. Os braços dela estavam ao redor do meu pescoço, e as muletas balançavam na minha mão a cada passo dado.

    O sol começava a se pôr, deixando o céu meio alaranjado. O tempo parecia andar lentamente. Cada passo durava um segundo inteiro. Nenhuma palavra era dita, mas, mesmo assim, havia um conforto silencioso entre nós dois.

    Até que a voz dela me alcançou, baixa e hesitante:

    — Shin…

    Virei o rosto de leve, sem parar de andar.

    — Hm? Que foi?

    Ela não respondeu de imediato. Um vento mais forte passou por nós, balançando algumas folhas ao nosso redor. Por um instante, achei que ela desistiria de falar, mas então, com um tom ainda mais suave, ela murmurou:

    — Me desculpa…

    Desacelerei os passos, confuso. Aquelas palavras começaram a ecoar dentro de mim.

    Ela ainda tava preocupada por causa do peso…?

    — Desculpa…? Por quê? — Virei o rosto de leve, tentando ver o rosto dela por cima do ombro. — Eu já disse que tô bem, você não é pesa…

    — Não é isso — ela me cortou, a sua voz era baixa, como se quase estivesse sussurrando. — É por… eu não ter cumprido a nossa promessa.

    “O quê…?”

    Aquilo… me deixou surpreso. Parei por um segundo, ouvindo o som do rio aumentar devagar, mesmo sem vê-lo ainda. O peso dela ali nas minhas costas… e uma lembrança bem antiga apareceu na minha mente.

    — Você quer dizer… a promessa de nós dois ganharmos?

    Ela assentiu com a cabeça encostada nas minhas costas.

    — É. Mas, eu falhei… — murmurou, a voz saiu hesitante, abafada contra mim. — Eu prometi, e no final… não consegui.

    Respirei fundo. Voltei a andar devagar, com os olhos na estrada à frente, e respondi com uma voz mais firme: 

    — Então era só isso… 

    Fiz uma pequena pausa, pensando nas palavras certas que iria falar.

    — Mas, você ainda tem o próximo ano. Ainda não é o fim, né?

    Ela ficou em silêncio por um instante, depois suspirou, a respiração batendo de leve na minha nuca.

    — Sim. Mas eu queria ter feito isso agora…

    Mesmo com tudo que ela enfrentou… ainda pensava na promessa, de algum jeito.

    Naquilo que fizemos juntos. Naquilo que ela não queria deixar de cumprir. Aquilo apertou meu peito e, ao mesmo tempo, me fez admirá-la mais uma vez.

    Ela era… incrível.

    E cada vez mais essa ideia aparecia na minha cabeça.

    — Pensando bem… o próximo ano é o nosso último — ela comentou, com a voz levemente nostálgica. — Nosso último ano antes da graduação…

    — Ah, é verdade… — murmurei, erguendo o olhar para o céu. — Mas… vai dar tudo certo. Você vai conseguir. Eu tenho certeza — completei, mas disse isso mais para mim do que para ela.

    Era o que parecia.

    Ela deu uma risada leve, quase como um alívio.

    — Eu espero que sim. No próximo ano… vou tentar não tropeçar.

    Soltei uma risada também, balançando um pouco os ombros. O peso da conversa pareceu se dissolver naquele momento, levado pelo vento, o mesmo vento que vinha do rio logo à frente, carregando junto o silêncio que viria a seguir.

    Continuamos andando até o caminho abrir diante de nós.

    O rio surgiu, largo, calmo, grande. A luz do fim de tarde refletia na água, deixando a superfície de tons dourados. Havia uma ponte simples alguns metros dali, e o som da correnteza era… suave, relaxante.

    Do tipo que esvazia todo os pensamentos e fazia qualquer um respirar.

    Me aproximei da grama um pouco perto da margem e me agachei com cuidado para ela descer. Yuki desceu devagar pelas minhas costas, apoiando-se em mim até sentar.

    Ela moveu a perna enfaixada com cuidado, posicionando-a diante dela e então ergueu o olhar ao redor.

    — Uau… — ela disse, quase num sussurro. — É bem lindo aqui…

    Nos sentamos lado a lado, um espaço pequeno mas confortável entre nós. O vento balançava as folhas das árvores próximas e levemente os nossos cabelos. O mundo parecia mais lento ali, naquele instante.

    Ela virou o rosto para mim, curiosa.

    — É aqui então? Esse era o lugar especial?

    — É — respondi, sem tirar os olhos da água.

    Ela continuou olhando para mim, mais curiosa ainda.

    — Por quê? Quero dizer… por que um rio?

    Demorei um segundo para responder. Olhei o reflexo do céu se movendo lentamente sobre a superfície e então falei, simples:

    — Eu gosto de rios.

    Ela me olhou, um pouco admirada. Mas quando viu que eu ainda encarava a água, parecia ter voltado o olhar pra lá também.

    — Eles seguem em frente. Sempre — continuei. — Carregam tudo que encontram, sem parar. Mesmo com madeira, pedras ou lixos, eles nunca param de avançar. E nem recuam também.

    Ela me escutava em silêncio, atenta a cada palavra.

    — É como se… eles tivessem o poder de levar com eles o que a gente não consegue carregar mais. Tudo o que pesa, e… tudo aquilo que a gente carrega sozinho sem contar pra ninguém — continuei, sem tirar os olhos do fluxo da água

    O olhar dela se fixou no rio, os olhos levemente mais brilhantes. O vento passou mais uma vez, levantando alguns fios de cabelo que caíram sobre o rosto dela.

    E então eu completei:

    — E aqui… — completei, olhando para ela. — A brisa é forte. Então se você quiser chorar… sua voz vai embora junto com ela. Vai embora com o rio. Como se ninguém precisasse ver… ou ouvir.

    Olhei pra ela nesse momento, e encontrei seus olhos voltados pra mim. Não havia nada a dizer depois disso.

    — Entendi… — ela murmurou, com um sorriso pequeno, um sorriso que parecia frágil.

    Mas logo, o sorriso dela começou a vacilar.

    Os olhos dela se fecharam por alguns segundos. A cabeça baixou um pouco. A respiração… perdeu o ritmo.

    E então…

    Uma pequena lágrima escorreu sobre o seu rosto.

    Outra pequena apareceu. Mais e mais vinham.

    E ela chorou.

    Era alto…

    Como se, por muito tempo, ela estivesse guardando aquilo só para ela. Sem contar nada para mais ninguém.

    A cabeça se apoiou nos joelhos dobrados, que tremiam assim como os ombros. As lágrimas desciam com força, sem controle. Como se tivessem esperado aquele momento pra sair.

    — Eu perdi… — ela soluçou, chorando alto.. — Eu perdi…

    Fiquei parado. Por um segundo, tudo em mim travou.

    A cena doía… muito. Mais do que imaginei que doeria.

    A Yuki que sempre sorria, que sempre dizia que estava tudo bem… estava ali, chorando alto, angustiada.

    Eu…

    E eu não sabia o que fazer.

    O que eu deveria fazer em uma situação daquelas?

    O choro dela continuava alto, as lágrimas não paravam de descer. Mas, mesmo sem saber o que fazer, fiz algo que minha mente me mandava.

    Meu corpo se moveu sozinho…

    Me aproximei do seu lado e a abracei.

    Ela não hesitou. No mesmo instante, Yuki agarrou minha camisa com força. Como se tivesse medo de afundar.

    E… continuou chorando.

    Chorando com tudo que tinha. Sem tentar esconder, sem filtrar. Sem se preocupar com o que parecia. Sem vergonha. 

    Foi um choro verdadeiro. Um choro real…

    — Eu trabalhei tanto… — ela disse, entre soluços. — Treinei todo dia. Recusei passeios, horas com amigos… só pra me focar naquilo. E… — a voz dela caiu em mais choros, muito mais fortes. — Eu nem cheguei na linha de chegada. Nem consegui mostrar o que fiz. Decepcionei todo mundo. Até você… Desculpa.

    Eu senti meu coração apertar.

    — Desculpa… desculpa… — ela continuou.

    Fiquei em silêncio e olhei para o rio por um segundo, como se ele pudesse me dizer o que dizer naquele momento.

    Mas as palavras escaparam antes que eu pensasse:

    — …Não é verdade.

    Ela não respondeu, mas o choro dela diminuiu por um instante. Talvez me ouvindo melhor. 

    — Você deu tudo de si! Eu vi, Yuki. Eu tava lá. E só isso… já te torna incrível!

    As palavras saíam, quase por impulso. Mas vinham de um lugar sincero, mais fundo do que eu mesmo entendia.

    — Você não falhou. Você lutou. Com tudo. Com o corpo, com o coração, alma. E isso… isso nunca é em vão.

    Respirei fundo, engolindo em seco.

    Eu não sabia o que estava dizendo, mas talvez deveria continuar.

    Espera, talvez não?

    Ah, nem sabia.

    Aquilo nem deveria fazer sentido na hora.

    Mas só… talvez ela precisasse de escutar aquilo.

    — Eu sei como dói… decepcionar as pessoas ao seu redor. — Meu olhar baixou, encarando a grama. — Mas você não correu sozinha, Yuki. Todo mundo que torceu por você… ainda torce. E quer te ver levantar e seguir em frente. 

    Desviei o olhar do chão, voltando para a água dourada.

    — Não porque esperam algo vindo de você… mas sim porque te admiram…

    Ela fungou o nariz, lentamente se afastando do meu peito. Ainda chorava, mas mais controlada. Seus olhos estavam vermelhos e as bochechas úmidas e coradas.

    — Eu entendi… — ela dizia enquanto limpava as lágrimas com a manga da camisa dela.

    Fiquei ali parado por um instante, meio perdido entre o alívio e a dúvida. Ela parecia um pouco mais aliviada… isso era bom.

    — Ah! D-desculpa… — murmurei, passando a mão pela nuca, envergonhado. — Eu falei um monte de bobagem, nem sei se fez sentido…

    No entanto, ela ergueu o rosto e sorriu. Um sorriso que parecia… genuíno.

    — Fez sim. E… obrigada, Shin.

    Ela desviou o olhar para o rio, ainda fungando, acompanhando o fluxo da água que seguia seu caminho sem pressa, no seu tempo, como se realmente tivesse levado tudo que ela carregou por tanto tempo nas suas costas.

    — Obrigada por me trazer aqui… 

    Olhou o céu, e completou com um sorriso doce… e lindo:

    — Você tinha razão… ele realmente carrega tudo que você sente.

    E quando ela disse isso, o vento nos tocou mais uma vez. Levantou alguns fios do cabelo dela, balançou as folhas das árvores, e tocou o rosto dela com cuidado. Eu sorri também. 

    Porque, naquele instante, naquele lugar perto do rio… algo que tinha mudado.

    Não tudo, óbvio.

    Mas, talvez parte do seu fardo tinha sido levado pelo rio e pela brisa.

    E eu sabia disso, ela parecia mais leve. Seu sorriso era mais real, quente, genuíno. Seu olhar brilhava, muito diferente de antes.

    E eu estava feliz por isso. Feliz por ter estado ali, ao seu lado. No momento e lugar certo, justamente quando ela mais precisava.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (4 votos)

    Nota