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    Conto: Li Wang

    Não havia frio, nem calor. Nenhum som. Nenhum chão.

    Li Wang flutuava, ou talvez caísse, não sabia dizer. O corpo não respondia, e os sentidos se perderam naquele mar de luz silenciosa. Por um instante, pensou que tivesse morrido. Que, enfim, o Everest a havia vencido.

    Mas então… o branco começou a se dissipar.

    A luz recuou lentamente, como uma névoa sendo sugada por algo invisível. E, aos poucos, ela sentiu o chão.

    Era macio. Úmido. Coberto por grama.

    Li Wang abriu os olhos com dificuldade, piscando várias vezes até que a claridade se ajustasse. Seu corpo doía. As roupas ainda estavam molhadas pela neve da montanha, mas o ar ali era diferente… mais quente… mais doce.

    Ela se ergueu com esforço, apoiando-se nos joelhos. Estava num bosque. Árvores altas e finas balançavam suavemente, suas copas delicadas deixavam a luz passar em feixes dourados. O som distante da água correndo misturava-se ao canto de pássaros que ela nunca ouvira antes.

    Li Wang se virou lentamente, observando os arredores.

    — Onde… eu estou? — sussurrou, temendo que sua voz quebrasse o encanto.

    O bosque era calmo demais, quase sagrado. Não havia frio, não havia medo, apenas uma estranha serenidade que a envolvia como um abraço. E, ainda assim, algo dentro dela se mantinha alerta, como se o próprio silêncio a observasse.

    Li Wang começou a andar.

    Os passos eram hesitantes, mas havia um chamado sutil, uma curiosidade, talvez, ou um instinto. Seguiu uma trilha de terra macia, guiada pelo som da água, até que as árvores começaram a se abrir diante dela.

    E então, viu.

    Um penhasco.
    Não muito alto, talvez vinte metros, mas dali o mundo se abria diante de seus olhos.

    A cidade.

    Um imenso aglomerado de construções de pedra clara e telhados coloridos, cercado por uma enorme muralha. Era como uma pintura viva, cheia de vida, mas silenciosa àquela distância. O céu… o céu era estranho. Azul, sim, com nuvens brancas como algodão, mas com tons que ela jamais vira. Havia uma leveza ali… quase como se fosse um céu pintado, mas em movimento. Uma ilusão viva.

    E então, o que mais chamou sua atenção: o rio.

    Um gigantesco rio cristalino cortava a cidade de cima a baixo, numa linha quase perfeita. Ele nascia de uma colossal queda d’água nas montanhas à sua direita, um paredão de pedra e espuma tão alto que parecia tocar o céu e seguia para o horizonte, onde os olhos de Li Wang já não conseguiam alcançar. A água era límpida como vidro, refletindo o céu com uma clareza absurda, e iluminava os arredores com um brilho prateado.

    No centro, sobre uma colina suave, erguia-se o palácio.

    Era diferente de tudo o que já havia visto. Elegante, sim. Mas não ostentoso.

    As colunas brancas se erguiam como dedos finos em direção ao céu, adornadas com detalhes dourados que reluziam à luz suave daquele mundo. Cúpulas arredondadas cobriam as torres mais altas, e bandeiras esvoaçavam lentamente ao vento, carregando símbolos que ela não reconhecia.

    Por um momento, Li Wang esqueceu da dor. Do frio. Do sangue que secava em suas roupas.

    Tudo aquilo… parecia um sonho.

    — O que é isso…? Onde estou? — Murmurou, quase sem voz.

    A brisa fresca sussurrava entre as árvores, e o som constante da queda d’água ao longe dava àquele mundo uma ilusão de paz. Li Wang permanecia imóvel no topo do penhasco, ainda contemplando a vastidão a sua frente.

    A cidade parecia intocada, como se tivesse sido eternamente moldada para o equilíbrio.

    Mas então… o chão tremeu.

    Primeiro sutil, um tremor tão leve que ela pensou ser imaginação. Depois, mais forte. Uma onda vibrante percorreu o solo sob seus pés, fazendo com que pequenas pedras rolassem penhasco abaixo. Os pássaros silenciaram e a floresta pareceu prender o fôlego.

    Li Wang virou o olhar para os portões da cidade.

    E viu.

    Diante da entrada colossal da cidade, dois arcos duplos de pedra branca, guardados por torres esguias, enquadravam uma cena impossível de ignorar.

    Guerra.

    Havia caos à sua frente, mas um caos quase silencioso àquela distância. O portão, antes majestoso e imponente, estava tomado por uma torrente de guerreiros. Centenas, talvez milhares, marchavam em direção a um pequeno grupo.

    Do outro lado, apenas dez figuras.

    Quatro estavam ligeiramente à frente: suas presenças exalavam algo antigo e inevitável, como o prenúncio de tragédia.

    Mesmo sem rostos visíveis, Li Wang sabia.

    Ela sentia.

    Um deles parecia ser Hendrick. Cada gesto, cada movimento carregava uma precisão cruel, uma dança coreografada de destruição.

    Atrás deles, seis outras silhuetas lutavam lado a lado.

    Ela não sabia seus nomes.

    Não reconhecia ninguém, apenas especulava.

    Mas tudo dentro dela dizia que aquele era um combate desigual.
    Dez contra centenas.

    E mesmo assim… os dez avançavam.

    o chão tremeu. Novamente.

    Li Wang se encolheu instintivamente, os olhos fixos no que parecia ser uma guerra.

    Então, viu e ouviu algo que fez ela duvidar de seus próprios olhos e ouvidos.

    Um estrondo, como trovões despencando do céu claro.

    No instante seguinte, uma esfera de luz, incandescente, girando como um pequeno sol surgiu das mãos de alguém e atravessou o ar com violência, explodindo ao atingir o solo.

    A onda de choque abriu uma cratera no chão, arremessando guerreiros pelo campo como folhas ao vento.

    Li Wang recuou, o coração acelerado.

    — O que…? — murmurou, piscando várias vezes.

    “Foi uma bomba? Não… não foi… aquilo saiu de uma pessoa…” O estômago dela se revirou.
    “Pessoas não fazem isso.”

    De repente, a ideia de estar sonhando pareceu razoável.

    Ela apertou o próprio braço com força, pensando que assim poderia acordar, mas…

    Era real. Tudo aquilo era real.

    — Isso não faz sentido… — sussurrou, a voz falha. — Eu estou… eu estou ficando louca?

    O campo diante dos portões se tornara um caos ordenado. Mesmo a distância, era possível perceber o tumulto da luta. Mas o que a deixava sem ar não era o conflito, era o impossível.

    Outra esfera de luz atravessou o campo, desta vez azulada, e fez o chão tremer.
    Ela cambaleou.

    “Não. Não. Isso não existe.”

    Mas ali estava.
    A realidade negando tudo o que ela havia aprendido até então.
    O impossível… acontecendo diante dela.

    E uma nova dúvida, sussurrada em sua mente como um eco:

    “Eles… são meus inimigos? Como Lyria e Vireon? São pecados? Esses poderes… será que é a tal Aura de que Bárbara falou?”

    Li Wang permaneceu imóvel no topo do pequeno penhasco, como se seus pés tivessem criado raízes. Havia algo hipnótico naquela luta que ela gostaria de entender.

    No centro do campo de batalha, uma figura surgiu.

    Não era possível ver os detalhes com clareza, mas a presença era inconfundível. Um guerreiro, envolto numa armadura dourada intensa, como se sua própria existência fosse feita de luz condensada.

    Atrás dele, soldados em armaduras reluzentes se reuniram, assumindo posições defensivas ao redor do recém-chegado.

    E diante dessa mudança repentina… os dez.

    As dez figuras que até então massacravam os soldados recuaram.

    Poucos contra centenas, mas a força daquele homem havia virado a maré da batalha. A simples presença dele fazia os dez recuarem com pressa, como se soubessem o que enfrentavam, como se um único ser pesasse mais que todos os exércitos reunidos.

    Li Wang prendeu a respiração.
    A pele formigava.
    — Quem é você…? — sussurrou, esperando uma resposta do vento.

    Ela ficou ali mais alguns minutos, observando o campo, o palácio, o rio. Mas seu instinto gritava:
    “Saia daqui.”

    Não sabia se aquele lugar era seguro.

    A cidade era linda, mas poderia ser só mais uma máscara, como tantas outras que a enganaram no passado.

    Decidiu descer.

    Cada passo entre as árvores era medido, cauteloso, como se a própria floresta pudesse traí-la. O coração ainda batia acelerado, o corpo exausto, mas os sentidos permaneciam aguçados, como havia aprendido no Everest.

    A cidade à frente, silenciosa e majestosa, parecia respirar, e Li Wang sabia que cada sombra poderia esconder maravilhas ou armadilhas. Ela avançou, consciente de que, dali em diante, nada mais seria como antes.

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