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    Eu ainda sentia o coração acelerado pela vitória. Selene nos reuniu no centro do salão da guilda, o barulho das conversas ao redor mal conseguia esconder a expressão orgulhosa dela.

    — Vocês conseguiram — disse, com aquele sorriso confiante que parecia sempre estar no lugar certo. — Parabéns, agora vocês são aventureiras oficiais.

    Aquelas palavras deveriam soar como uma conquista definitiva, e de certa forma soaram. Mas, ao meu lado, Rose estava diferente. O olhar dela parecia perdido em algum ponto distante, como se estivesse em outra realidade.

    Selene arqueou uma sobrancelha.

    — Rose… não está feliz com isso?

    — Estou… — respondeu ela, a voz calma, mas fria. Os olhos, no entanto, não mostravam nenhuma faísca de felicidade.

    Um silêncio desconfortável caiu por alguns segundos. Então Rose se virou, a expressão impassível.

    — Vou sair um pouco. Preciso de ar. — E se afastou sem esperar resposta.

    Eu a segui com os olhos até que desaparecesse pela porta. O vazio que deixou ao meu lado me pesou mais do que eu queria admitir. Respirei fundo e, com o peito cheio de dúvidas que vinham se acumulando há algum tempo, me aproximei de Selene.

    — Eu… queria te perguntar uma coisa.

    Ela me olhou com interesse.

    — Pode perguntar.

    Mordi o lábio. Não era um assunto que eu pudesse expor ali, diante de todos.

    — Não aqui. É… algo que não quero discutir no meio do salão.

    Selene me avaliou por um instante, mas pareceu compreender.

    — Certo. Venha comigo.

    Seguimos juntas até uma porta ao fundo. Sem hesitar, Selene a abriu. Reconheci a sala imediatamente: era a de Aqua. Para minha surpresa, ela não estava sozinha.

    Aqua parecia irritada, os cotovelos apoiados na mesa, enquanto Eren — o garoto que eu havia enfrentado no teste — falava de forma insistente.

    — Só mais uma chance… eu posso provar… — ele dizia, a voz embargada.

    — Já disse que não vamos discutir isso hoje — respondeu Aqua, impaciente, como alguém que já estava no limite da tolerância.

    Selene franziu o cenho.

    — Atrapalhei alguma coisa?

    Aqua soltou um suspiro longo, de puro cansaço.

    — Não. — Fez um gesto com a mão, dispensando o garoto.

    Eren se virou de má vontade, e quando passou por mim, seus olhos encontraram os meus. A raiva que carregavam me atingiu como uma lâmina invisível. Desviei o olhar, incomodada, mas não deixei que me abalasse por muito tempo. Eu tinha coisas mais urgentes para lidar. Assim que ele saiu, Selene voltou-se para mim.

    — Agora que estamos em um lugar mais reservado… o que queria me perguntar?

    Aqua bufou, revirando os olhos.

    — Estão usando a minha sala para encontros secretos agora?

    — Não é isso. É que… eu precisava da sua opinião também, Aqua — pensei rápido.

    Ela me lançou um olhar desconfiado, mas permaneceu em silêncio. Respirei fundo, tentando organizar as palavras.

    — Eu queria saber… se é possível duas pessoas diferentes viverem no mesmo corpo.

    As duas me olharam como se eu tivesse acabado de falar algo absurdo.

    — Nunca ouvi falar de algo assim — disse Selene, a expressão carregada de seriedade.

    — Também não. E olha que eu conheço histórias bem estranhas. Mas duas pessoas num só corpo? Não, isso não existe — Aqua concordou, cruzando os braços.

    — Por que essa pergunta? — Selene inclinou a cabeça, me analisando como se buscasse entender a origem daquilo.

    Minha garganta secou. Mas era tarde para voltar atrás.

    — Desde que conheci Rose, percebi… que quando o cabelo dela muda de cor, seu comportamento muda. No começo pensei que era apenas uma questão de humor, ou talvez algum efeito dos poderes dela. Mas… não parece ser só isso.

    As palavras saíam pesadas, cada uma trazendo à tona uma angústia que vinha crescendo dentro de mim. Aos poucos percebi que… quando ela está com o cabelo verde, não parece se lembrar do que faz quando está com o cabelo roxo. É como se… fosse outra pessoa.

    O silêncio se prolongou, denso, sufocante. Selene desviou os olhos por um instante, pensativa.

    — Isso é… preocupante. Pode ser algum efeito desconhecido dos poderes dela, mas também pode significar algo muito mais grave.

    Aqua bateu os dedos na mesa, impaciente.

    — Se for verdade, significa que temos uma garota que nem sabe quem é de fato. Duas personalidades, dois comportamentos… isso não é só estranho, pode ser perigoso.

    Olhei para elas, buscando respostas, mas só encontrei mais incerteza. Selene, no entanto, pousou a mão no meu ombro, com firmeza.

    — Vamos investigar isso, Ashley. Mas, até entendermos melhor, não conte nada a Rose. Pode ser… complicado.

    Senti meu coração apertar. Eu não queria mentir para ela. Mas também não podia ignorar aquele peso na consciência em saber que o perigo pode estar mais perto dela do que imagina.

    Pude ouvir o som de passos se afastando do lado de fora da porta, troquei olhares com Selene e abri a porta, mas para minha surpresa não encontrei ninguém, apesar de claramente ter ouvido aquilo. Quando chegamos ao salão, alguém perguntou se estava tudo bem; disseram que a garota de cabelo verde havia saído correndo. Não pensei duas vezes, cabelo verde? Os passos na porta… certamente eram da Rose. Corri para fora da guilda na esperança de ainda encontrá-la.

    A cidade estava mais calma do que no dia em que chegamos; barracas ainda fumegavam e algumas pessoas limpavam mesas. Meu coração batia alto, cada rua parecia fazer um eco do meu próprio passo, ela não devia ter ido longe Rose sempre pareceu gostar de lugares com comida. Procurei primeiro na estalagem, vasculhei quartos, corredores, mas ela não estava em lugar algum… pensei em quais lugares já tínhamos visitado a praça, a resposta pareceu se encaixar como uma luva. Segui correndo em direção a praça onde havíamos provado as comidas das barraquinhas, ela estava sentada no mesmo banco, os olhos vermelhos e inchados, as mãos cruzadas no colo.

    Sentei ao lado dela devagar, como se qualquer movimento brusco pudesse quebrar algo que ainda estivesse intacto. Pela primeira vez em dias eu a via frágil de um jeito que não o habitual.

    — Está tudo bem? — perguntei, a voz menor do que eu queria.

    Ela virou os olhos para mim e começou a falar, a fala tropeçando entre lembranças e lacunas. Contou que lembrava de ter vindo comigo, de termos ido provar as comidas, de esperar na fila; lembrou de uma mulher rude que nos pressionou, e então um espaço vazio em sua memória, relatou como se fosse um flash em que um momento ela estava com Ashley na fila e no outro já estavam de volta nos bancos, como se tivesse dormido por alguns minutos. A medida que ela continuava decidi apenas ouvir o que tinha a dizer, pois eu não conseguia ainda compreender totalmente a situração. Ela seguiu dizendo que isso já tinha ocorrido outras vezes, ela achava que era apenas algum lápso de cansaço ou algo do tipo, começou a contar da noite anterior a que nos conhecemos, ela diz que lembra bem de ter acendido uma pequena fogueira para passar a noite na floresta, ela aperta os dedos a medida que diz que lembra dos bêbados que se aproximaram do seu acampamento e de como eles estavam agindo, quando um deles a pegou pelo pulso tudo que ela lembra é de ter acordado presa numa cela. A lembrança dela deixou seu rosto sombrio por um instante, e a descrição da cela veio com certa rigidez na voz… atrás dela, corpos pendurados por raízes como se fossem lenha disposta para queimar.

    — Eu fiz isso, Ashley? — a pergunta saiu fina, quase uma súplica.

    Antes que eu pudesse formular qualquer palavra, a transformação veio. Num estalo, como se alguém tivesse virado uma página brutalmente, os olhos dela se tornaram ametista. O cabelo também mudou; a cor era intensa. A voz que veio então não tinha o tremor da menina assustada: era cortante, carregava desprezo.

    — O que porcaria você ganha por falar essas coisas com ela? — disparou, apontando para mim com desprezo.

    Meu corpo recuou um passo, tonto.

    — Então é você… — eu disse. — Você é… a outra pessoa dentro da Rose?

    Ela riu: um som seco, sem alegria.

    — Meu amor… você não sabe de nada mesmo hein? Outra pessoa… — ela tenta abafar o riso. — Não sou outra pessoa dentro da Rose, eu SOU a Rose Hemlock… assim como ela. Tudo que faço é poque sempre no fim do dia acabo sendo necessária.

    A palavra “necessária” cortou mais que qualquer lâmina. Minha pergunta veio do fundo do peito, mas soou pequena:

    — O que Rose disse… você… matou aquelas pessoas?

    O riso que saiu foi curto, sem reverência.

    — Matar? Chamar de morte é ser sentimental demais se levar em consideração o que aqueles lixos mereciam. Foi uma punição pelos seus crimes. Talvez eu tenha sido severa, mas e você? Se estivesse naquele lugar eu duvido que acharia matá-los uma ideia ruim.

    As palavras dela eram afiadas, e no final havia um orgulho gelado que me fez recuar por dentro. Meu estômago virou. Havia naquelas frases uma convicção que não deixava espaço para dúvidas: de certa forma, para ela o ato havia sido uma obrigação, não um crime. Procurei uma resposta que não traísse o turbilhão de sentimentos, mas não encontrei nada que se encaixasse naquela situação.

    — Mas como… a Rose que conheci não faria uma coisa dessas tão facílmente, você está usando ela?

    O rosto de Rose — ou a face que dizia ser Rose — suavizou por um instante, como se uma sombra batesse contra algo que havia sido guardado à força.

    — Talvez — disse ela, baixo. — Mas não como você está imaginando, talvez eu tenha lembranças que prefiro manter esquecidas. Você não entenderia de qualquer maneira, mas somos a mesma pessoa se é isso que quer saber, Ashley. Há um preço para viver em paz consigo mesma. Eu paguei o meu, mas as vezes o preço que pagamos pode ser mais alto do que podemos aguentar sozinhas.

    A confissão pairou entre nós como um metal aquecido. Por um instante, o silêncio entre nós foi quase ensurdecedor. O ar da praça parecia mais pesado, como se cada palavra dita ali tivesse aberto uma ferida invisível. As luzes amareladas do sol tremeluziam entre as folhas, refletindo nos olhos ametistas dela, que agora me observavam com uma calma desconcertante: como se toda a fúria de antes tivesse se dissolvido num lago frio. Eu não sabia o que dizer. Cada frase que me vinha à mente parecia tola diante daquilo que acabei de ouvir. Rose ou a outra Rose parecia ter consciência demais do próprio tormento, e ainda assim, falava como quem aceitava um destino inevitável.

    — E a Rose que conheço… — murmurei. — Ela sabe de você?

    O sorriso que se formou foi melancólico, quase triste.

    — Ela sente. — respondeu. — Mas não entende completamente. E talvez seja melhor assim. Se ela soubesse de tudo que carrega dentro de si, se lembrasse de cada detalhe… talvez perdesse o pouco de luz que ainda tem.

    Ela desviou o olhar para o chão, os dedos apertando o tecido do vestido como se segurassem algo prestes a escapar. A voz que veio a seguir foi mais baixa, quase um sussurro arrastado.

    — Diga a ela que não há o que temer… Eu não quero machucá-la. Só quero que ela viva. Eu existo pra isso.

    Aquilo me atravessou. Eu esperava aquela arrogância, uma ameaça, mas o que ouvi foi quase… culpa. Antes que eu pudesse tentar alcançá-la, algo no olhar dela começou a mudar. As pupilas dilataram, a cor roxa se esvaiu, e em poucos segundos o verde suave voltou. A respiração dela estava ofegante, como se tivesse despertado de um pesadelo.

    — Ashley…? — a voz trêmula da Rose que eu conhecia voltou. — Eu… o que aconteceu?

    Eu engoli em seco, sem saber por onde começar. Pensei em contar tudo, mas o olhar cansado dela dizia que já tinha sofrido o bastante por hoje. Me limitei a um gesto de cabeça, forçando um sorriso que mal convencia a mim mesma.

    — Está tudo bem agora. — respondi. — Vamos voltar, está tarde.

    Ela pareceu hesitar, mas assentiu. Levantou-se devagar e, antes de darmos o primeiro passo, murmurou:

    — Eu te assustei de novo, não foi?

    — Não — menti. — Me preocupou um pouco, mas você não tem o que temer.

    Caminhamos lado a lado em silêncio, o som de nossos passos misturado ao da brisa que vinha do porto. Eu olhava de relance para ela, tentando perceber se havia algum resquício da outra presença, mas só encontrei a mesma serenidade confusa de sempre. Quando a guilda começou a aparecer à distância, decidi que não adiantava insistir mais naquele assunto.

    No fundo, porém, algo queimava dentro de mim: a imagem das raízes, os corpos, a voz fria que dizia existir apenas para proteger ela.

    Assim que voltamos, Rose foi direto para o quarto que a guilda nos disponibilizou, sem dizer mais nada. Fiquei parada diante da porta fechada, com o som abafado de passos atrás dela. Meu reflexo no vidro da janela parecia tão distante quanto os seus próprios pensamentos.

    “Somos a mesma pessoa”, ela havia dito. Mas como alguém poderia ser duas e continuar inteira?

    Me sentei no parapeito da janela e olhei para o céu: as nuvens escondiam boa parte do céu, talvez hoje acabe chovendo, mas as núvens ainda não pareciam estar carregadas. Toquei o anel em meu dedo. Ele pulsou levemente, uma única vez, como se respondesse a um sentimento que nem eu sabia nomear naquele momento.

    Me levantei da janela, ainda mergulhada naquele emaranhado de pensamentos, quando uma vibração percorreu o ar: um som metálico, seguido de um eco mágico que parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo. A mesma voz que ouvi mais cedo.

    — Atenção, cidadãos e aventureiros de toda Nautiloria! — anunciou a voz, firme e solene. — Por decreto de Sua Majestade, o rei Enrico Marines, estão todos convidados a se reunir daqui a trinta minutos nos portões do Palácio Real para a cerimônia de reconhecimento e premiação dos aventureiros que conquistaram a Torre do Abismo.

    O som se dissipou aos poucos, deixando um rastro de murmúrios que começou a se espalhar pela cidade. Lá fora, janelas se abriam, passos apressados ecoavam nas ruas, e a expectativa pairava no ar como uma centelha prestes a incendiar algo muito maior. O rei nos esperava…

    Fim do Capítulo 63: Ecos de uma Mesma Alma.

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