Capítulo 70 - Ecos do subsolo.
A manhã seguinte chegou sem que Karl tivesse realmente dormido.
O ar do jardim ainda cheirava a fumaça e pedra queimada. A claridade pálida que atravessava as fendas do teto mal iluminava o abrigo improvisado.
Ele e Laura trabalhavam em silêncio, separando mantimentos e ferramentas que haviam conseguido na troca do dia anterior. O som dos frascos e o tilintar do metal ecoavam como pequenas lembranças do que restava de normalidade.
— Ainda não acredito que deixamos tanta coisa pra trás… — murmurou Laura, despejando um punhado de grãos num jarro de barro. — Aquela casa ainda tinha a maior parte remédios e o nosso fogareiro de ferro.
Karl limpou as mãos na calça, hesitando. — Dá pra voltar e pegar.
Ela ergueu os olhos, incrédula. — Voltar? Agora?
— Se deixarmos lá, alguém vai achar. — respondeu, evitando o olhar dela. — E depois do que aconteceu ontem, qualquer coisa útil vai desaparecer antes do meio-dia.
Laura cruzou os braços. O rosto dela trazia o cansaço de quem já passou por mais problemas do que consegui se lembrar e mesmo assim seguia.
— É loucura, Karl.
— Só se a gente demorar. — disse ele, ajustando as alças da mochila. — Vamos, mãe. A gente sabe o caminho melhor do que qualquer um.
O silêncio que veio depois foi uma espécie de concordância.
Laura suspirou e encaixou um pequeno cristal do Véu no suporte improvisado. A luz azulada cortou a penumbra e projetou sombras longas pelas paredes rachadas.
Os túneis estavam diferentes. O chão, antes firme, agora era uma mistura de lama e fragmentos de rocha. Em muitos pontos, as passagens haviam desabado
— Cuidado aqui. — Karl avisou, apontando para uma fenda no teto.
Laura se abaixou, passando com esforço. O som das respirações era o único ruído vivo naquele vazio.
Mais à frente, uma poça refletiu a luz azul mas algo na cor viscosa fez Karl parar.
Era espessa. Escura demais para ser agua.
Ele desviou o olhar sem dizer nada. Laura, ao perceber o corpo encolhido contra a parede, levou a mão à boca.
— Deuses…
Mais dois corpos adiante. Talvez exploradores. Talvez vizinhos.
Karl engoliu seco. — Vamos passar rápido. — disse, tentando manter a voz firme.
Seguiram por passagens estreitas, contornando desabamentos e respirando o ar pesado que vinha do fundo. A luz do cristal tremia, mas em muitos trechos era a visão de Karl que os guiava.
Desde criança, ele possuía uma facilidade incomum em enxergar mesmo em ambientes escuros e localizar objetos— Por aqui. — apontou, virando à esquerda, onde o corredor torto levava até o antigo lar.
A casa ainda estava de pé.
O teto tinha rachaduras novas, mas as paredes resistiram. O cheiro de mofo se misturava ao de pedra úmida, trazendo memórias que doíam.
Laura soltou um suspiro aliviado.
— Ainda inteira.
Karl começou a revirar armários e móveis, recolhendo o que pudesse servir, mantas, ferramentas, remédios, o pequeno fogareiro de ferro.
— A gente deu sorte, estão em ótimo estado. — disse Laura, tentando sorrir.
Então o silêncio mudou.
Um som distante, abafado, mas ritmado. Passos.
Karl ergueu a cabeça. Não era o ruído de pedras caindo, nem o farfalhar de ratos. Eram passos firmes, calculados. Vários.
Laura apagou o cristal por instinto. A escuridão caiu como um golpe.
Karl ficou imóvel, sentindo o ar vibrar. os contornos do espaço ao seu redor dançavam em sua visão, revelando a passagem principal.
— Alguém está vindo. — Laura murmurou.
As vozes se aproximaram. Baixas, contidas, mas tensas.
Karl a olhou, tenso.
— O que a gente faz?
Laura prendeu a respiração. — Espera. Primeiro precisamos saber quem é.
O som de metal raspando pedra ecoou e o mundo pareceu prender o fôlego.
Luz. Tochas se acendendo uma a uma, refletindo nas paredes úmidas.
Sombras longas se projetaram antes do grupo aparecer em formação.
No centro, uma mulher de postura rígida, o emblema dourado reluzindo sobre o peito, era a capitã que viram na noite anterior.
Karl sentiu o estômago afundar. — Merda… são oficiais.
Laura deu um passo à frente, o pequeno cristal tremendo entre os dedos.
— Karl, escuta. Se der pra correr, você corre.
— Mãe, o quê?
— Apenas corra. — repetiu, firme. O tom dela não pedia discussão.
O grupo parou a poucos metros.
A mulher à frente alta, fria, e com o olhar de aço deu um passo à frente.
— Laura de Halven… e Karl. — disse, sem emoção. — Sou a capitã Elandra, líder dos exploradores de Altheria. Vocês precisam nos acompanhar.
— Acompanhar pra onde? — Karl retrucou. — A gente não fez nada.
— Encontraram cristais de alta pureza. Queremos apenas entender onde conseguiram. — Elandra ergueu a mão e duas exploradoras se aproximaram. — Se cooperarem, ninguém sai ferido.
Laura riu sem humor. — “Entender”… ou encontrar alguém pra culpar pela explosão?
O silêncio que se seguiu respondeu por ela.
— A explosão matou dezenas. — disse Elandra, impassível. — As famílias exigem respostas.
— E, como sempre, vocês vêm cobrar da periferia. — respondeu Laura, amarga.
Karl tocou o ombro dela, mas já era tarde.
Laura ergueu o cristal e o jogou no chão o estalo seco foi seguido por clarão branco antes da escuridão total.
O caos veio junto.
O som de metal, gritos abafados, o clarão azul de uma lâmina.
Laura avançou primeiro, com a agilidade que a doença ainda permitia. O primeiro golpe de Elandra foi contido, o segundo acertou o ombro da mulher.
— Mãe! — Karl gritou, mas mãos o agarraram por trás, torcendo-lhe o braço.
— Foge, Karl! — Laura tentou dizer, mas a voz se perdeu quando Elandra girou o bastão e o encaixou contra o pescoço dela, imobilizando-a.
— Chega! — a capitã ordenou. A voz era fria, mas havia algo nos olhos dela… pena, talvez.
Karl lutou, chutou, mordeu, o rosto queimando de raiva e medo.
— Vocês não têm direito! Foi aquele desgraçado do mercado! Ele vendeu—
Um golpe interrompeu a frase. A dor veio primeiro. Depois, o silêncio.
O mundo girou.
A última coisa que viu antes de apagar foi a sua mãe ajoelhada, imobilizada no chão de pedra, e o olhar distante de Elandra, a luz azul de um cristal refletindo no metal frio da armadura.
Então, a escuridão o engoliu por completo.
O som de vozes o trouxe de volta.
Primeiro, um zumbido abafado. Depois, a voz da mãe.
— … não foi ele, senhor. — Laura dizia, firme, mas a respiração denunciava o cansaço. — Eu sou a responsável. Fui eu quem mandei ele voltar às ruínas.
A visão de Karl se clareou aos poucos. O teto acima era de pedra polida, o ar mais limpo do que estava acostumado. Havia luz natural entrando por uma abertura alta, refletindo nas paredes lisas.
Quando tentou se mover, percebeu as correias em volta dos pulsos e dos tornozelos. Preso a uma cadeira, no centro de uma sala ampla, de aparência simples demais para o poder que emanava dali.
— E o mercador? — perguntou uma voz grave.
Karl virou o rosto na direção da voz. Atrás de uma mesa de madeira escura, um homem de cabelos negros e com óculos escuros observava os dois com calma predatória. Vestia o manto do Círculo de Altheria, mas sem os adornos pomposos que Karl imaginava.
Laura manteve o olhar fixo nele. — O mercador mentiu. Ele tentou culpar meu filho pra se livrar.
O homem tamborilou os dedos sobre o tampo da mesa, pensativo.
— Mentir exige imaginação. O problema é que as mentiras dele coincidem com detalhes que não teriam como inventar.
Laura respirou fundo. — Eu juro, nós não—
— Por hora já chega. — ergueu a mão, sem elevar a voz. — Seu filho acordou.
Os olhos dele se voltaram para Karl. Por um instante, a sala pareceu encolher.
— Karl Halven, certo? — perguntou.
Karl tentou endireitar o corpo, mas as correias o impediram. — Sim, senhor.
— Então me escute com atenção. — se levantou devagar, apoiando as mãos na mesa. — Me chamo Malrik, e acho que você deve saber o que sabemos sobre a explosão na periferia até o momento — ele abaixou os óculos por um instante revelando um olhar vazio — A explosão matou quarenta e duas pessoas registradas. Cento e nove feridos, vinte e três famílias desabrigadas. — Parou por um instante, os olhos fixos nos de Karl. — E esses são apenas os números que conseguimos contar em um dia, ainda há corredores soterrados, túneis inteiros inacessíveis. Não sabemos quantos corpos ainda estão lá.
O ar sumiu dos pulmões de Karl. O chão pareceu girar sob os pés que mal tocavam o solo.
Laura tentou se adiantar, a voz tremendo:
— Ele não tem nada a ver com isso!
Malrik apenas inclinou a cabeça. — Talvez. Mas vocês insistem em negar tudo quando claramente estão envolvidos… — A expressão dele endureceu. — Em qualquer outra situação, vocês dois já teriam sido executados e os corpos lançados ao subsolo.
Silêncio. O som da respiração de Laura era o único ruído.
Então Malrik deu um passo à frente. — Mas há… circunstâncias. E eu quero ouvi-las. — Cruzou os braços. — Conte o que aconteceu. Tudo.
Karl hesitou, o coração batendo no pescoço.
— Eu… achei o pilar rachado — começou, a voz rouca. — Vi os cristais dentro, e… e um baú. Não toquei no baú. Só tirei os cristais sem runas. — Engoliu seco. — Levei pra casa. Usei quatro pra estufa. Depois trocamos o resto com um mercador.
Malrik não desviava o olhar. Cada palavra parecia pesar mais que a anterior.
— Esse baú. — interrompeu. — Descreva.
Karl franziu a testa, tentando lembrar. — Era pequeno, metálico, tinha entalhes, mas… nada que parecesse runa. Um brilho estranho ao redor.
Malrik ficou imóvel. Lentamente, estendeu a mão para o lado e puxou um rolo de pergaminho. Abriu-o sobre a mesa. Ali havia esboços de artefatos antigos, selos, inscrições. Entre eles, figuras de pequenos baús de metal quase idênticos ao que Karl descrevera.
— O baú era assim?
Karl se inclinou para a frente tentando ver melhor os desenhos — Era bem parecido. Mas as runas… eram diferentes.
O olhar de Malrik se tornou distante, quase inquieto.
— …Interessante. — murmurou.
— Senhor? — Karl perguntou, mas o homem não respondeu. Continuava analisando o pergaminho como se tivesse encontrado algo que não queria ver.
Por fim, Malrik enrolou o documento e se voltou a ele novamente.
— Continue.
Karl falou do encontro com o mercador, da troca, da explosão na noite seguinte. Quando terminou, o silêncio tomou a sala novamente.
Malrik respirou fundo, o olhar fixo no chão.
— Muito bem. — disse por fim. — Aqui estão suas opções.
Laura se inclinou para frente, tensa.
— Poderíamos entregar vocês ao tribunal das famílias. Deixar que decidam. Mas isso seria uma sentença certa. — Fez uma pausa. — Ou… podem aceitar a segunda alternativa.
— Qual? — Karl perguntou, desconfiado.
Malrik o fitou com frieza e algo próximo de curiosidade.
— Trabalhar para mim. Tornar-se um explorador sob a Casa Krosys. — Se aproximou mais. — Sob a minha proteção.
O silêncio pesou como chumbo.
Laura arregalou os olhos, com surpresa e incredulidade se misturando.
Karl apenas o encarou, sem saber se aquela oferta era uma chance… ou uma nova forma de condenação.
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