Índice de Capítulo

    A manhã seguinte chegou sem que Karl tivesse realmente dormido.
    O ar do jardim ainda cheirava a fumaça e pedra queimada. A claridade pálida que atravessava as fendas do teto mal iluminava o abrigo improvisado.

    Ele e Laura trabalhavam em silêncio, separando mantimentos e ferramentas que haviam conseguido na troca do dia anterior. O som dos frascos e o tilintar do metal ecoavam como pequenas lembranças do que restava de normalidade.

    — Ainda não acredito que deixamos tanta coisa pra trás… — murmurou Laura, despejando um punhado de grãos num jarro de barro. — Aquela casa ainda tinha a maior parte remédios e o nosso fogareiro de ferro.

    Karl limpou as mãos na calça, hesitando. — Dá pra voltar e pegar.

    Ela ergueu os olhos, incrédula. — Voltar? Agora?

    — Se deixarmos lá, alguém vai achar. — respondeu, evitando o olhar dela. — E depois do que aconteceu ontem, qualquer coisa útil vai desaparecer antes do meio-dia.

    Laura cruzou os braços. O rosto dela trazia o cansaço de quem já passou por mais problemas do que consegui se lembrar e mesmo assim seguia.
    — É loucura, Karl.

    — Só se a gente demorar. — disse ele, ajustando as alças da mochila. — Vamos, mãe. A gente sabe o caminho melhor do que qualquer um.

    O silêncio que veio depois foi uma espécie de concordância.
    Laura suspirou e encaixou um pequeno cristal do Véu no suporte improvisado. A luz azulada cortou a penumbra e projetou sombras longas pelas paredes rachadas.

    Os túneis estavam diferentes. O chão, antes firme, agora era uma mistura de lama e fragmentos de rocha. Em muitos pontos, as passagens haviam desabado

    — Cuidado aqui. — Karl avisou, apontando para uma fenda no teto.

    Laura se abaixou, passando com esforço. O som das respirações era o único ruído vivo naquele vazio.

    Mais à frente, uma poça refletiu a luz azul mas algo na cor viscosa fez Karl parar.
    Era espessa. Escura demais para ser agua.

    Ele desviou o olhar sem dizer nada. Laura, ao perceber o corpo encolhido contra a parede, levou a mão à boca.
    — Deuses…

    Mais dois corpos adiante. Talvez exploradores. Talvez vizinhos.
    Karl engoliu seco. — Vamos passar rápido. — disse, tentando manter a voz firme.

    Seguiram por passagens estreitas, contornando desabamentos e respirando o ar pesado que vinha do fundo. A luz do cristal tremia, mas em muitos trechos era a visão de Karl que os guiava.

    Desde criança, ele possuía uma facilidade incomum em enxergar mesmo em ambientes escuros e localizar objetos— Por aqui. — apontou, virando à esquerda, onde o corredor torto levava até o antigo lar.


    A casa ainda estava de pé.
    O teto tinha rachaduras novas, mas as paredes resistiram. O cheiro de mofo se misturava ao de pedra úmida, trazendo memórias que doíam.

    Laura soltou um suspiro aliviado.
    — Ainda inteira.

    Karl começou a revirar armários e móveis, recolhendo o que pudesse servir, mantas, ferramentas, remédios, o pequeno fogareiro de ferro.
    — A gente deu sorte, estão em ótimo estado. — disse Laura, tentando sorrir.

    Então o silêncio mudou.
    Um som distante, abafado, mas ritmado. Passos.

    Karl ergueu a cabeça. Não era o ruído de pedras caindo, nem o farfalhar de ratos. Eram passos firmes, calculados. Vários.

    Laura apagou o cristal por instinto. A escuridão caiu como um golpe.
    Karl ficou imóvel, sentindo o ar vibrar. os contornos do espaço ao seu redor dançavam em sua visão, revelando a passagem principal.

    — Alguém está vindo. — Laura murmurou.

    As vozes se aproximaram. Baixas, contidas, mas tensas.
    Karl a olhou, tenso.
    — O que a gente faz?

    Laura prendeu a respiração. — Espera. Primeiro precisamos saber quem é.

    O som de metal raspando pedra ecoou e o mundo pareceu prender o fôlego.

    Luz. Tochas se acendendo uma a uma, refletindo nas paredes úmidas.
    Sombras longas se projetaram antes do grupo aparecer em formação.
    No centro, uma mulher de postura rígida, o emblema dourado reluzindo sobre o peito, era a capitã que viram na noite anterior.

    Karl sentiu o estômago afundar. — Merda… são oficiais.

    Laura deu um passo à frente, o pequeno cristal tremendo entre os dedos.
    — Karl, escuta. Se der pra correr, você corre.

    — Mãe, o quê?

    — Apenas corra. — repetiu, firme. O tom dela não pedia discussão.

    O grupo parou a poucos metros.
    A mulher à frente alta, fria, e com o olhar de aço deu um passo à frente.
    — Laura de Halven… e Karl. — disse, sem emoção. — Sou a capitã Elandra, líder dos exploradores de Altheria. Vocês precisam nos acompanhar.

    — Acompanhar pra onde? — Karl retrucou. — A gente não fez nada.

    — Encontraram cristais de alta pureza. Queremos apenas entender onde conseguiram. — Elandra ergueu a mão e duas exploradoras se aproximaram. — Se cooperarem, ninguém sai ferido.

    Laura riu sem humor. — “Entender”… ou encontrar alguém pra culpar pela explosão?

    O silêncio que se seguiu respondeu por ela.

    — A explosão matou dezenas. — disse Elandra, impassível. — As famílias exigem respostas.

    — E, como sempre, vocês vêm cobrar da periferia. — respondeu Laura, amarga.

    Karl tocou o ombro dela, mas já era tarde.
    Laura ergueu o cristal e o jogou no chão o estalo seco foi seguido por clarão branco antes da escuridão total.

    O caos veio junto.

    O som de metal, gritos abafados, o clarão azul de uma lâmina.
    Laura avançou primeiro, com a agilidade que a doença ainda permitia. O primeiro golpe de Elandra foi contido, o segundo acertou o ombro da mulher.

    — Mãe! — Karl gritou, mas mãos o agarraram por trás, torcendo-lhe o braço.

    — Foge, Karl! — Laura tentou dizer, mas a voz se perdeu quando Elandra girou o bastão e o encaixou contra o pescoço dela, imobilizando-a.

    — Chega! — a capitã ordenou. A voz era fria, mas havia algo nos olhos dela… pena, talvez.

    Karl lutou, chutou, mordeu, o rosto queimando de raiva e medo.
    — Vocês não têm direito! Foi aquele desgraçado do mercado! Ele vendeu—

    Um golpe interrompeu a frase. A dor veio primeiro. Depois, o silêncio.

    O mundo girou.
    A última coisa que viu antes de apagar foi a sua mãe ajoelhada, imobilizada no chão de pedra, e o olhar distante de Elandra, a luz azul de um cristal refletindo no metal frio da armadura.

    Então, a escuridão o engoliu por completo.


    O som de vozes o trouxe de volta.
    Primeiro, um zumbido abafado. Depois, a voz da mãe.
    — … não foi ele, senhor. — Laura dizia, firme, mas a respiração denunciava o cansaço. — Eu sou a responsável. Fui eu quem mandei ele voltar às ruínas.

    A visão de Karl se clareou aos poucos. O teto acima era de pedra polida, o ar mais limpo do que estava acostumado. Havia luz natural entrando por uma abertura alta, refletindo nas paredes lisas.
    Quando tentou se mover, percebeu as correias em volta dos pulsos e dos tornozelos. Preso a uma cadeira, no centro de uma sala ampla, de aparência simples demais para o poder que emanava dali.

    — E o mercador? — perguntou uma voz grave.

    Karl virou o rosto na direção da voz. Atrás de uma mesa de madeira escura, um homem de cabelos negros e com óculos escuros observava os dois com calma predatória. Vestia o manto do Círculo de Altheria, mas sem os adornos pomposos que Karl imaginava.

    Laura manteve o olhar fixo nele. — O mercador mentiu. Ele tentou culpar meu filho pra se livrar.

    O homem tamborilou os dedos sobre o tampo da mesa, pensativo.
    — Mentir exige imaginação. O problema é que as mentiras dele coincidem com detalhes que não teriam como inventar.

    Laura respirou fundo. — Eu juro, nós não—

    — Por hora já chega. — ergueu a mão, sem elevar a voz. — Seu filho acordou.

    Os olhos dele se voltaram para Karl. Por um instante, a sala pareceu encolher.

    — Karl Halven, certo? — perguntou.

    Karl tentou endireitar o corpo, mas as correias o impediram. — Sim, senhor.

    — Então me escute com atenção. — se levantou devagar, apoiando as mãos na mesa. — Me chamo Malrik, e acho que você deve saber o que sabemos sobre a explosão na periferia até o momento — ele abaixou os óculos por um instante revelando um olhar vazio — A explosão matou quarenta e duas pessoas registradas. Cento e nove feridos, vinte e três famílias desabrigadas. — Parou por um instante, os olhos fixos nos de Karl. — E esses são apenas os números que conseguimos contar em um dia, ainda há corredores soterrados, túneis inteiros inacessíveis. Não sabemos quantos corpos ainda estão lá.

    O ar sumiu dos pulmões de Karl. O chão pareceu girar sob os pés que mal tocavam o solo.
    Laura tentou se adiantar, a voz tremendo:
    — Ele não tem nada a ver com isso!

    Malrik apenas inclinou a cabeça. — Talvez. Mas vocês insistem em negar tudo quando claramente estão envolvidos… — A expressão dele endureceu. — Em qualquer outra situação, vocês dois já teriam sido executados e os corpos lançados ao subsolo.

    Silêncio. O som da respiração de Laura era o único ruído.

    Então Malrik deu um passo à frente. — Mas há… circunstâncias. E eu quero ouvi-las. — Cruzou os braços. — Conte o que aconteceu. Tudo.

    Karl hesitou, o coração batendo no pescoço.
    — Eu… achei o pilar rachado — começou, a voz rouca. — Vi os cristais dentro, e… e um baú. Não toquei no baú. Só tirei os cristais sem runas. — Engoliu seco. — Levei pra casa. Usei quatro pra estufa. Depois trocamos o resto com um mercador.

    Malrik não desviava o olhar. Cada palavra parecia pesar mais que a anterior.
    — Esse baú. — interrompeu. — Descreva.

    Karl franziu a testa, tentando lembrar. — Era pequeno, metálico, tinha entalhes, mas… nada que parecesse runa. Um brilho estranho ao redor.

    Malrik ficou imóvel. Lentamente, estendeu a mão para o lado e puxou um rolo de pergaminho. Abriu-o sobre a mesa. Ali havia esboços de artefatos antigos, selos, inscrições. Entre eles, figuras de pequenos baús de metal quase idênticos ao que Karl descrevera.

    — O baú era assim?

    Karl se inclinou para a frente tentando ver melhor os desenhos — Era bem parecido. Mas as runas… eram diferentes.

    O olhar de Malrik se tornou distante, quase inquieto.
    — …Interessante. — murmurou.

    — Senhor? — Karl perguntou, mas o homem não respondeu. Continuava analisando o pergaminho como se tivesse encontrado algo que não queria ver.

    Por fim, Malrik enrolou o documento e se voltou a ele novamente.
    — Continue.

    Karl falou do encontro com o mercador, da troca, da explosão na noite seguinte. Quando terminou, o silêncio tomou a sala novamente.
    Malrik respirou fundo, o olhar fixo no chão.

    — Muito bem. — disse por fim. — Aqui estão suas opções.

    Laura se inclinou para frente, tensa.

    — Poderíamos entregar vocês ao tribunal das famílias. Deixar que decidam. Mas isso seria uma sentença certa. — Fez uma pausa. — Ou… podem aceitar a segunda alternativa.

    — Qual? — Karl perguntou, desconfiado.

    Malrik o fitou com frieza e algo próximo de curiosidade.
    — Trabalhar para mim. Tornar-se um explorador sob a Casa Krosys. — Se aproximou mais. — Sob a minha proteção.

    O silêncio pesou como chumbo.
    Laura arregalou os olhos, com surpresa e incredulidade se misturando.
    Karl apenas o encarou, sem saber se aquela oferta era uma chance… ou uma nova forma de condenação.

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