Capítulo 49 - Papo sério
Cael acabou por ceder ao cansaço e caiu no sono, o peito subindo e descendo devagar, como se todo o peso que carregava tivesse se dissolvido por um instante.
O salão ficou em silêncio, quase desconfortável, quebrado apenas pelo som irregular da respiração dele.
Os dois permaneceram ali por longos minutos, talvez horas, ninguém sabia dizer. O ar parecia suspenso, cheio de coisas não ditas, até que Ananit decidiu, enfim, levantar a voz.
— Eu…
— Vai mandar ele de volta? — cortou-a no meio da palavra, a lâmina da voz atingindo antes que pudesse erguer qualquer defesa.
O som quebrou o ar estático como vidro, espalhando estilhaços ao redor.
— Como…? — ergueu os olhos devagar, surpresa pelo tom. Ou talvez apenas fingisse bem demais; o olhar era sereno, mas algo vibrava ali, oculto.
Ananit deu um riso breve… seco, meio amargo, que morreu antes de alcançar os olhos. Um som curto demais para ser conforto e longo demais para ser só deboche.
— Assim me deixa sem graça…
Agora mentiu com força.
— Ninguém iria me procurar para saber se estou bem ou não… — comentou, balançando a mão no ar, ele mesmo afastando a própria importância; não por drama, mas por um certo fatalismo — Mas já? — ergueu as sobrancelhas, deixando escapar um fiapo de surpresa — Achei que, ao menos, iriam esperar meu aval…
Seu aval?
Hm…
Ele está mesmo imerso nisso…
Será? Será que mudou um pouco por causa dele?
— E então? — dedilhou a madeira com impaciência, preenchendo o espaço — saia da sua mente e diga, como teu eco, a verdade!
— Daqui a algumas semanas… — a voz dela saiu hesitante, um sussurro que parecia temer ser ouvido, quase fugindo antes de alcançar o ar.
— Por quê? Não estamos em guerra? — sua mão estava pesada o suficiente para quase rachar a madeira velha, a mesma que nunca cedeu a nada, nem ao tempo — Por que vão dispensar ele? Você não estava gostando?
Ela desviou o olhar, mordendo o lábio inferior, quase envergonhada de admitir.
— Estava… estou! — suspirou fundo, como quem carrega algo que não pode explicar — É que… Elyah estava ignorando, mas o julgamento foi refeito. Elohim mandou ele para a Terra… para treinar lá.
— Com terrestres? — arregalou os olhos, um riso nervoso escapando antes que pudesse contê-lo — Sério? Elohim? Certeza que isso foi decisão do conselho… só pode!
— Tem preconceito? — Rebateu, lançando-lhe um olhar de canto, afiado como lâmina.
— Não… — desviou o olhar para o teto, como se as respostas estivessem escondidas entre as sombras — … é que ninguém lá tem força suficiente para fazê-lo um guerreiro de verdade
— Mas guerreiros não nascem de tempos difíceis?
— Não! — Rebateu com força, fechando os olhos e balançando a cabeça, como quem quer afastar um pensamento perigoso — Disciplina e tática não se ensinam em meio a guerra e desespero… quantos guardiões terrestres ascenderam ao cargo? Nenhum!
— Argumento fraco! — riu, sem qualquer medo de parecer tola — O que garante que ele não seja… uma anomalia?
— Raio? Duas vezes? — Cobriu o rosto com a mão, suspirando com frustração — E… você está disposta a jogar tão alto assim?
— Eu? Você está me dando tanta importância… — Apoiou as mãos nos próprios ombros e sorriu boba, quase teatral — Sou tão incrível assim? Hihi…
— Não incrível… — Estalou a língua com desdém leve — mas terrivelmente manipuladora, igual a uma serpente.
— Uma serpente aficionada em um humano?
— Guardiões não têm prazeres e desejos comuns… — enfim se levantou, a voz já sem o peso de antes — Bem, se não posso mudar nada… vou tentar fazer ele aprender tudo antes de ir. Tá?
O clima morreu ali. E, junto com ele, o calor da discussão também se dissipou, deixando no ar apenas um silêncio estranho.
— Ah…
— Que foi? — Ergueu o olhar, desconfiado, mas sem hostilidade.
Era estranho vê-la daquele jeito.
Afinal… quando animais frios chegavam ao tédio? Quando criaturas feitas de puro cálculo e veneno paravam para bocejar diante do mundo?
Nunca!
— Nada… — respondeu, pousando os dedos sobre a mesa; sentiu um fio de eletricidade correr pela pele, breve demais para ser susto, forte o suficiente para arrepiar — …Você é mais interessante do que parece… hm…
— Não! Não sou! — disparou, a voz ecoando um pouco mais do que deveria.
E deixou o lugar. Os últimos pés a se afastarem naquela noite, sumindo entre sombras e frio.
Dizem que, depois, houve sussurros ao redor… lábios sedutores roçando o silêncio das redondezas.
Mas só boatos.
Terminava mais uma noite.
Bem, nem todos iriam dormir ou seduzir corpos adormecidos. O velho… Hayashan Beyoter ainda caminhava pelas terras vazias sem ao menos bocejar, deixando atrás de si um rastro de caos sem nem ao menos suar.
Sombras reduzidas a pedaços. Não eram duas, nem dez… eram centenas de milhares de manifestações, despedaçadas e lançadas para além — rasgadas do próprio tecido em que existiam.
Se fosse brasileiro, estaria sem aposentadoria.
Suspirou, firme, tão fundo que fez as veias saltarem no pescoço e nas têmporas.
Que estranho…
Pensou ao erguer os olhos para o horizonte, algo lá longe chamando mais atenção do que deveria, como um convite silencioso e incômodo.
Não disse mais nada.
Mas viu, com um estrondo, o horizonte ser tragado por uma escuridão infindável. Atrás de si, as sombras que antes caminhavam foram desfeitas em pó.
Tudo aconteceu rápido demais…
Mal teve tempo de entender o rompante de caos que o atingiu: um corte violento rasgou-lhe a perna, dilacerando-a e espalhando sangue quente pelo chão.
Tão fervente que chegava a queimar, igual a chama em álcool derramado pelo chão.
Eu pretendia matá-lo… A voz ecoou em todos os cantos, firme, estafada, mas onipresente.
Ele, no entanto, não se abalou.
— Na perna? — Cuspiu — Pela voz, é jovem… e pela forma como fala e se afirma, é precoce e burro! — riu — Mas admiro sua habilidade em me enganar…
Desviou dos próximos quatro golpes, vindo de todas as direções ao mesmo tempo.
Saltou para cima, rápido, e freou o avanço ao alcançar a copa de uma árvore, galhos estalando sob seus pés antes de silenciarem.
— Velho maldito!
Dali, ele via tentáculos negros tomando todo o horizonte, desde as planícies gélidas até a selva dos ladrões de amores.
Sim, esse era o nome brega mesmo.
— E estou errado?
O olhar dele se conteve no instante em que falou… e, dos tentáculos, começou a surgir um rosto — denso, viscoso, como águas de esgoto misturadas a óleo velho.
— Ahn? — escapou, mais reflexo do que pergunta.
Mas, em vez de se revelar por completo, a coisa se moveu: um dos tentáculos disparou, líquido que se enrijeceu no ar, convertendo-se num golpe perfurante que veio direto contra seu braço.
Era uma cilada, Bino.
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