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    “‘E o drama infame começa de novo, e de novo, e de novo. Quando terei paz?’”

    Izandi, a Oniromante


    Começara com um simples aviso, lembrava-se bem Willmina. Irei ao quimtel, sire. Encontrava-se enfurecida, agora, pois continuara aquela fala. Invés de apenas ela, Nianna e o cocheiro, e talvez cile Henri, agora que boa parte dos feridos encontrados por Cei Kinnes estavam bem o suficiente para cuidarem-se. Queria rezar por sua filha sequestrada, por seu marido cujas cartas não chegavam nunca, pelo filho que muito possivelmente nem se lembrava que sabia escrever e por sua gestação. Agora, dividia a carruagem com Nianna, seu gordo sire e Bert Boldey, que fedia à velhice excessiva.

    “É mais velho que a criação do perfume, barão Boldey?”, quisera perguntar, mas concentrou-se na paisagem. Considerava valer mais a pena — e era linda a floresta renascendo no Olho que Chora. O alvinegro da neve e dos troncos nus davam lugar a troncos marrons cheios de vida, a folhas verdes como esmeraldas e aves que voltavam a piar mais uma vez. O Olho que Chora continuava a derramar águas morro abaixo, agora enchendo o ducado dos Beesh com lama e vida.

    Os Beesh não adoravam os Quinze antes de serem rendidos pelos Bloemennen há mais de um milênio. O quimtel mais próximo ficava a quase quarenta minutos a cavalo, mas era belo como todo lugar de adoração haveria de ser: suas altas paredes arredondadas formavam uma cúpula cercada por quinze pilastras de mármore, mas seu frontão era de uma única pedra repartida — quebrada. Aberta para sempre.

    E para todos.

    Willmina sorriu ao ver a estrela de quinze pontas entalhada na abóbada do templo, com o símbolo de um dos Quinze em suas pontas. Prestara mais louvor ao Cordão Umbilical de Lohssau, a Mãe. “Rogo-te por meus filhos, ó Mãe, para que os ofereça um milagre.” Os cavalos relincharam quando finalmente chegaram próximo dos degraus de entrada, e os ventos altos assobiavam entre a grama e as rochas, beijando as bochechas da grávida e de todos, mas somente ela e Nianna entraram imediatamente no templo.

    Os bancos estavam distribuídos em quinze fileiras para os Quinze Deuses, rumando ao altar elevado em quinze degraus de bordas de prata e jade. Jarros com tulipas e violetas, flores de figo e erva-cidreira, rosas e um único crisântemo estavam dispostos nos degraus, distanciados como se formando um desenho de estrelas. O vento estava calmo lá dentro, visto as janelas fechadas, e toda iluminação provinha de cadeeiros acesos próximos dos vitrais do teto, projetando ao chão pinturas dos Santos-Dormiteiros.

    Tal qual a imaculada reconstrução do sarcófago do Profeta no topo do altar, de pé e cercado de flores, cristais estrelados e quinalfero, que brilhava como os olhos da filha.

    Nianna fez um gesto e um olhar silente, e logo despediu-se para à esquerda do altar, onde estavam as alcovas com a Sábia e a Justa. Nianna era nascida em Lummas, e tinha a Justa como padroeira. Willmina, porém, não tinha certeza de quando nasceu. Nunca a contaram.

    Sentia-se confortável perto da Mãe, e para lá fora.

    A Mãe era representada aqui como uma grávida cuja face era coberta pelo Sol resplandescente da alvorada. Seu corpo era coberto por uma túnica de lã violeta, mas sua cabeça era adornada por uma coroa de rubis do tamanho de uma mão, e em seus braços segurava um homem adulto e um cabrito recém-nascido. Willmina não conseguia ficar sem um sorriso ao olhá-la. Era piedosa. Era clemente, mas também rígida. Não havia lábios ou nariz, olhos ou cabelos em sua estátua, e mesmo assim a gestante de carne sentia-se com ombros comprimidos de repreensão — e de coração liberto.

    “É esta a sensação de ter uma mãe?”, pensara, fazendo esforço para ajoelhar-se na almofada fronte a alcova. “Sentir-se banhada de clemência eterna e rigidez justa? Dei ao meus filhos este lar?”

    Juntou as mãos e abaixou a cabeça.

    Mãe que és milagre

    Oferece aos meus filhos os seus.

    Mãe que és Milagre

    Oferece aos seus filhos os seus.

    Mãe que és bondade

    Ofereça aos meus filhos a Sua.

    Mãe que és clemente

    Seja clemente com os meus.

    Mãe que és justiça

    Que ela não falhe com os meus.

    Mãe que és justa

    Oferece Sua justiça a todos nós.

    — A senhora conhece as orações mais velhas, não? — perguntara uma voz jovial. Willmina não abrira os olhos até ouvir o barulho dos óleos pingando sobre os pés da estátua da Deusa.

    — Versicolista? — perguntara. — Não lhe conheço. Não é…

    — Versicolista Duniel? — riu o homem de sobrancelhas grossas e jovens. — Não, não, ele não está mais aqui. Digo, ainda está, mas não presidirá mais este quimtel. Despediu-se de todos na onzena passada. — Abriu um sorriso, por mais que boa parte de seu rosto estivesse coberto por um chapéu longo com um véu fúnebre, sujo com algumas cinzas. — Sabe como dizem, a idade da…

    — A idade da fofoca vem quando a do bom senso se vai?

    — …Me lembro de ser bem diferente o ditado!

    Willmina pôs a mão no queixo e sorriu. O homem coçou a nuca, então volveu o olhar à Deusa.

    Monta Primartia,

    Soarda ài tuthe iti,

    Estianot.

    O Versicolista jovem tinha talvez seus trinta e alguns anos, e um longo e adunco nariz separava seus olhos escuros e lábio torto. Vestia um ferraiolo, porém, não tinha o cíngulo amarrado na cintura. Willmina nunca tinha visto um Versicolista que o amarrasse no ombro, e muito menos um que prendesse uma moeda nele — uma moeda grande de latão, com um único rosto rodeado de quinze números em Sântico.

    — Centralista — ela pensou em voz alta.

    — É uma senhora realmente tarimbada — ele respondeu, fechando os olhos e dando-a um sorriso gentil. — Gostaria de ajuda para se levantar, …senhora?

    — Willmina Zwaarkind.

    — Que nome complicado, por Deus! — Bateu suavemente as palmas, abafadas pelas luvas. — Não nasci para viver em um lugar com nomes tão difíceis de falar.

    — É de onde, então? — riu Willmina, aceitando a mão do homem e ficando de pé.

    — Kierelrún. Me chamo Ainderhardt.

    — Ah!

    Willmina comprimiu os lábios e soltou o cenho como água caindo em uma chaleira.

    — O lobo ri do cão, não dizem isso aqui? — Deu de ombros.

    — Conheço o ditado, Vossa Graça. — Fungou. — Perdoe-me, perdoe-me.

    — Ah, Vossa Graça, eu é quem diga! — prestou uma curta mesura. — A senhora perdoe-me pela indelicadeza de interromper sua oração. — Erigiu as costas e abaixou a cabeça. — Isto não se deve fazer.

    A mulher suspirou e abriu um sorriso, do tipo que não fazia há muito tempo.

    — Não precisa se desculpar por isso. — Pôs a mão direita no peito. — Meu Sântico não é dos melhores. Fez bem em pedir por minha prece. — Aumentou o sorriso. — Agradeço por isso.

    E desenhou o símbolo da Mãe no peito em seis pontos. Ele deu-a um olhar agradável, mas não repetiu o ato. “Os centralistas veem isso como uma ofensa, não?”, pensara ela, se corrigindo.

    O homem suspirou e devolveu o chapéu à cabeça, olhando para a entrada do quimtel. Theolor Beesh, Bert Boldey, um ferido Cei Ehrle Asseliers e mais senhores e cavaleiros entraram de pouco a pouco, caminhando silentemente em direção de seus Padroeiros. O Versicolista deu um sorriso à Willmina, tirou as cinzas de seu chapéu e disse:

    — Foi uma dádiva conversar com a senhora. Espero que seu filho nasça com saúde e viva longos verões.

    Estiranoth — ela pronunciou.

    Estianot — Ainderhardt respondeu, sorrindo.

    Willmina ficou sozinha com os Deuses mais uma vez, e desta vez, partira aos Menores. Fora à Mahiu para rezar pelo filho e esposo, onde rezou a “oração do guerreiro que retorna à casa” no melhor Sântico que pôde. Fora e se ajoelhara à Mahra, pois sua filha amava a música. Fora aos outros e rezou, e rezou a todos os Menores até que passasse a sentir a garganta secar.

    Estianot — respondera ao final de cada prece. Foi ao rezar ao último dos Menores que Nianna retornou para ajudá-la. Willmina já tinha suor na face de tanto esforço que fizera pelos nove Menores, e sentia que estava longe de rezar o suficiente.

    Theolor Beesh e Bert Boldey estavam sentados nos bancos, olhando para frente e eventualmente trocando alguma palavra. Os seus outros acompanhantes continuavam a rezar aqui e ali, e de pouco em pouco, camponeses adentravam o templo. Alguns eram da Vila do Rio, outros, de vilas mais próximas do templo. “E maioria destes ficará profundamente irritada quando ouvir um centralista falar de nossos Deuses como se fossem um único. Um Deus de Quinze formas e rostos…”, pensara.

    O Sântico era uma língua difícil, ela sabia e tinha certeza, mas como permitia que “São Quinze os seus Deuses” pudesse também ser traduzido como “É um único Deus de quinze rostos”?

    “Não é de minha conta”, concluíra, e de repente um antigo fogo que não sentia acender ardeu no seu peito.

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