Índice de Capítulo

    Renato e Clara já podiam ver, ao longe, o local indicado.

    Era uma terra indígena, cercada por florestas, e com um rio que a dividia feito uma cicatriz na terra, cujas águas corriam tão negras quanto pó de café.

    Apressado, Renato obrigou suas asas fantasmagóricas a baterem com ainda mais velocidade. O vento chicoteava o rosto. Clara o acompanhava.

    — Acho que é ali! — Renato apontou para uma clareira.

    — Sim! Combina com o local que a Lua indicou.

    — Sua amiga elemental poderia ter vindo conosco! Facilitaria as coisas.

    — Problemas no reino das fadas, aparentemente! Ela não pôde vir.

    — Que tipo de problemas um reino encantado poderia ter?

    Clara deu de ombros. Suas asas vermelhas e pretas eram elegantes e se moviam com o vento.

    — A presença que você sentiu lá na biblioteca… tem certeza de que não era um demônio?

    Renato pensou por uns segundos.

    — Não conheço nenhum demônio que tenha uma presença como aquela. Aquilo foi… diferente.

    — Anjo, talvez?

    Ele balançou a cabeça.

    — Com certeza não. Era sombria demais; mas não do jeito demoníaco.

    — Os sussurros de que você falou… eram como fantasmas, você disse.

    — Sim. Como se fantasmas tentassem falar comigo.

    — Abigor! Os vultos das vítimas que ele fez durante milênios o acompanham e sussurram nas sombras dele. Poderia ser…

    — Não. Os fantasmas de Abigor estão em sofrimento. Eles gemem de dor e arrependimento. Os que eu ouvi na biblioteca não estavam sofrendo. Pareciam apenas que… queriam falar comigo. E tinha mais coisas. As tochas se acenderam…

    — Tochas? Não há tochas na Biblioteca das Luzes.

    — Eu as vi. E cães uivaram…

    — Chegamos! Vamos investigar isso mais tarde!

    Pousaram na clareira. Em volta, apenas árvores. O cricrilar dos grilos e o piado de corujas compunham a sinfonia para o céu noturno.

     Havia dois homens os esperando. Ambos eram altos e de porte físico musculoso e, assim como Renato, também tinham muitas cicatrizes na pele morena. Seus olhos eram amendoados e castanhos.

    Usavam calças jeans surradas e camisetas, e botinas nos pés.

    Um deles carregava um longo arco de madeira preso ao ombro, e tinha uma tatuagem no braço direito que lembrava a pata de uma onça cheia de garras. Provavelmente a tatuagem continuava sob a camiseta, formando uma onça inteira.

    O outro era um pouco mais baixo, mas tinha a cara ainda mais fechada.

    Os olhos espertos de Renato perceberam o volume de uma arma na cintura dele, embaixo da camiseta.

    Ele tinha pinturas no rosto, com traços coloridos e pequenos losangos.

    Aquele que trazia o arco deu um passo adiante.

    — Bem-vindos à aldeia Eterna — disse ele. — Sou o cacique Ysani Presas de Onça, o chefe e protetor desse povo.

    Renato fez uma mesura, abaixando a cabeça levemente.

    — Sou Renato Yakekan. E essa que me acompanha é Clara Lilithu. Somos gratos pela hospitalidade.

    Clara abriu um sorriso sereno e bonito, mas os olhos dela tinham um brilho malicioso e um toque de vermelho.

    — Fomos avisados de que chegariam — respondeu o cacique. — E também de que precisam de respostas.

    — Sim. Me disseram que eu poderia encontrar algumas respostas aqui.

    Ysani sorriu e assentiu.

    — Disseram? Pois bem! Aqui nós não temos respostas. Temos apenas perguntas. Às vezes, apenas uma pergunta responde outra. Talvez seja isso de que precisa.

    — Talvez.

    — Acompanhem-me.

    O cacique virou as costas e caminhou em direção à mata fechada, saindo da clareira.

    O rapaz que o acompanhava lançou um olhar de soslaio, levemente hostil, a Renato e Clara, antes de segui-lo.

    Ele disse baixinho, como um sussurro apenas para o cacique ouvir, mas a audição de Clara era boa, então ela pôde ouvir:

    — Tem certeza de que eles são confiáveis?

    — Se não forem, a gente resolve. A gente sempre resolve.

    Clara sorriu. Adorava a sensação de perigo iminente. O desafio a excitava. Ela olhou para Renato da mesma forma que uma onça olharia para uma presa e passou a língua nos lábios.

    Assim que o cacique Ysani ficou bem perto da mata fechada, ele tocou uma árvore.

    Pareceu, inicialmente, uma ilusão de ótica. Uma miragem se desfazendo.

    Foi como se as árvores derretessem. A floresta estava desaparecendo, e no lugar dela, emergia a aldeia.

    Finalmente puderam ver.

    A aldeia não era tão grande, cercada pela floresta, normalmente escondida por uma Ilusão de Ocultamento. 

    As casas eram, na maioria, de pau à pique: vigas cravadas no chão se entrelaçam com outras na vertical, e os espaços eram preenchidos com taipa.

    O telhado era, na maioria dos casos, de palha, mas também havia telhados de Eternit e telhas de barro.

    Também havia algumas casas de alvenaria, mas eram minoria.

    As casas eram organizadas num formato circular.

    Duas construções se destacavam: uma era feita de tijolos e seguia a confluência das casas, lateralmente ao grande pátio. Era grande e até lembrava uma igreja, mas não havia nenhuma símbolo religioso que a distinguisse.

    A outra ficava bem no centro do pátio, e era totalmente de palha, como uma oca tradicional. Tão grande quanto a primeira.

    Os indígenas olhavam para Renato e Clara com certa curiosidade. As crianças apontavam e falavam alto, os adultos apenas cochichavam, mais discretos, mas não era difícil imaginar o assunto de que falavam.

    — Chegamos — disse Ysani.

    — É um lugar bonito — respondeu Renato. E era verdade. Ele ficou encantado com o pomar no canto oeste, onde conseguiu identificar várias árvores frutíferas.

    Ficou mais encantado ainda com aquela fogueira no pátio, se erguendo e tremeluzindo em direção às estrelas. 

    As pessoas usavam roupas simples, leves, e estavam sentadas em volta da fogueira. Algumas, em cadeiras feitas de tiras de bambu ou num longo banco de madeira; outras apenas sentaram-se no chão.

    Renato ficou bastante curioso com uma escultura de madeira no formato de uma onça, de pé, sobre duas patas, como se estivesse numa posição de ataque, com as garras e presas à mostra. A escultura ficava numa posição de destaque, próxima da fogueira.

    Para Renato, foi como visitar um outro mundo, longe de toda a loucura a qual estava acostumado.

    — Se aconcheguem! — disse Ysani. — Infelizmente só tem mais uma cadeira. Um de vocês vai precisar sentar no chão.

    — Eu sento no chão — respondeu Renato.

    — Então eu fico com a cadeira — disse Clara, dando de ombros.

    Em seguida, o cacique também se sentou no chão, próximo de Renato.

    O homem que o seguia sentou-se um pouco mais distante, perto de uma garota.

    Um homem velho, cego de um olho, o qual era completamente branco feito algodão, se ergueu.

    Ele estava perto da escultura.

    Trazia nas mãos uma botija de barro.

    — Agora que estamos todos aqui, podemos começar! — disse ele. — Para aqueles que não me conhecem, eu sou Piatã, o pajé. Aqueles que estão nesta roda receberam o privilégio de consagrar nossa medicina. Quero que se sintam bem-vindos!

    — Bem-vindos! — disseram os demais membros da aldeia, em uníssono.

    Renato assentiu.

    — Obrigado — respondeu.

    — Esse é o Vinho dos Mortos — continuou Piatã. — O Vinho dos Espíritos. A Ayahuasca! Aqueles que tomarem, devem meditar e deixar que a Força do chá os guie. Se precisarem, tem um banheiro logo ali! — Ele apontou na direção da grande construção de tijolos.

    Os outros membros da ladeira riram, como se o comentário fosse bastante engraçado.

    Renato apenas franziu a testa, sem saber o que deveria dizer.

    — E lembrem-se — continuou o Pajé —, vocês não estão passando mal. É o mal que está passando.

    O rapaz que tinha se sentado ao lado da garota, pegou um violão e começou a tocar uma melodia suave e bonita.

    A fumaça da fogueira serpenteava por entre eles.

    Alguns vagalumes deslizavam no ar, ao redor do rapaz do violão, como se dançassem ao som de sua música.

    As pessoas começaram a se levantar, uma de cada vez, seguindo a ordem da roda, em sentido horário.

    Elas iam até o pajé. Piatã os dava um pouco do líquido de sua botija, dentro de um copinho esculpido em cerâmica. A pessoa agradecia e bebia de uma vez, e voltava para seu lugar.

    Chegou a vez de Renato, e ele fez conforme os outros.

    Antes de lhe entregar o chá, o pajé o olhou por um tempo.

    — Você tem muitas dúvidas, rapaz.

    — Tenho sim.

    — Não deixe que elas te segurem durante o processo.

    O garoto apenas assentiu, pegou o copinho e bebeu o conteúdo.

    No início, não sentiu nada. Chegou a pensar que, talvez, não fosse fazer efeito nenhum com ele.

    Mas quando notou o mundo se desmanchando, derretendo e assumindo novas formas, percebeu que estivera enganado.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota