Capítulo 73 - "Nobreza e Lama"
O sol já se escondia atrás das colinas quando as carruagens da caravana pararam à beira de um lago. O reflexo dourado na água se misturava ao brilho crescente das tochas, enquanto o som ritmado de cordas sendo puxadas e estacas cravando o solo marcava o início do acampamento.
Aisha chegou por último.
Cada passo era uma batalha contra o próprio corpo. O ar entrava frio, saía áspero. E para Aisha, o mundo parecia girar em torno de um único pensamento.
— Viva… — murmurou entre os dentes. — Cheguei viva.
Quando parou, simplesmente desabou no chão, os braços estendidos, deixando o peso do corpo afundar na terra fria. Acima, o céu ainda estava claro, começando a tingir de tons alaranjados anunciando aos poucos o fim de mais um dia.
Thamir desmontou do cavalo ao lado, ajeitando as rédeas com um meio sorriso.
— Parabéns, conseguiu não morrer — disse, num tom casual. — E ainda manteve o ritmo o dia inteiro.
Aisha tentou responder, mas o fôlego escapou antes que as palavras se formassem. Tudo que conseguiu foi um gesto fraco com a mão.
— Hm — Thamir cruzou os braços. — Amanhã o treino é com o Kael. Então, depois do combate, você descansa.
Ela virou a cabeça devagar, sem energia nem para xingar. Thamir apenas riu, se afastando.
— Vou ajudar com as tendas. Tenta não se fundir com o chão.
Os passos dele foram sumindo aos poucos. Aisha fechou os olhos e respirou fundo. O corpo inteiro pulsava uma mistura de dor surda e formigamento. E mesmo assim, havia orgulho escondido na exaustão.
Alguns bons minutos se passaram com Aisha ainda olhando o céu quando finalmente conseguiu se sentar, puxando o ar com calma, ouviu passos leves se aproximando. Um perfume doce, de flores e metal polido, denunciou quem vinha antes mesmo de levantar os olhos.
— Então é você — disse uma voz firme, mas polida.
Aisha ergueu o olhar. À sua frente, estava uma jovem de postura impecável. O vestido azul e prata trazia o brasão da Casa Krosys. Atrás dela, um rapaz de expressão mais branda observava em silêncio.
Seris Krosys. E o irmão, Sylas.
Aisha respirou fundo, apoiando-se num joelho para tentar se levantar.
— Senhorita Krosys — disse, com formalidade. — É uma honra.
Mas ao estender a mão, viu Seris hesitar. O olhar da jovem desceu para o estado lastimável de Aisha, lama até os joelhos, suor, poeira, e um cheiro que definitivamente não combinava com chá e veludo.
— Ah… — Seris recolheu a mão com elegância ensaiada. — Não se preocupe. Não quero atrapalhar seu descanso.
Aisha entendeu o gesto e, mesmo com o constrangimento queimando por dentro, forçou um sorriso leve.
— Imagino que o protocolo da nobreza não preveja apertos de mão cobertos de lama.
Seris pareceu notar o tom amistoso e relaxou o semblante.
— Fui apenas descuidada. Peço desculpas.
— Sem ofensa. — Aisha deu de ombros. — Eu também teria recuado.
O irmão, porém, não disfarçou o interesse. Deu um passo à frente e a observou com curiosidade.
— Então você é a discípula do Guardião do Norte. Impressionante.
— Impressionante? — Aisha arqueou uma sobrancelha.
Sylas sorriu, um sorriso franco, diferente dos olhares calculados de nobres.
— Sim, impressionante. — Estendeu a mão, ignorando o estado dela. — Sylas Krosys.
Aisha apertou a mão dele, surpresa com o gesto.
— Você realmente correu desde o amanhecer? — ele perguntou. — Nem mesmo um cavalo aguentaria isso.
— Não recomendo. — Aisha respondeu. — Mas Ian tem um talento especial pra transformar tortura em treino.
Sylas riu, sincero.
— Eu gostaria de ver isso.
Atrás dele, Seris observava a cena com uma mistura de desconforto e curiosidade.
— Posso fazer uma pergunta? — ela disse, inclinando levemente a cabeça. — Quantos anos você tem?
Aisha piscou devagar. Por um instante, o silêncio pairou. Então, arqueou a sobrancelha com um meio sorriso.
— A senhorita Krosys não sabe que é indelicado perguntar a idade de uma dama?
Seris corou, visivelmente constrangida.
— Eu… só estava curiosa.
Sylas riu, cruzando os braços.
— Acho que não vamos descobrir quem ganhou a aposta.
— Aposta? — Aisha perguntou, desconfiada.
— Digamos que queríamos adivinhar a idade da “discípula misteriosa” — respondeu Sylas. — Eu apostei que você era mais jovem do que todos imaginam.
Aisha riu baixo.
— E quem errou feio?
— Ainda não sei — ele disse, com um brilho desafiador no olhar. — Mas posso descobrir… se você permitir.
Ela o olhou, intrigada.
— É mesmo?
— Sou espadachim — respondeu ele, indicando a espada na cintura dela. — Se eu te ajudar no treino de hoje, você me conta?
Aisha soltou uma risada curta.
— Que proposta curiosa… mas não aceito trocas tão baratas.
— Então o que sugere?
— Me derrote. — disse, firme, mas com humor. — Se conseguir, eu digo.
Sylas sorriu como quem aceita um desafio de verdade.
— Fechado.
Ao redor, soldados começaram a murmurar, atraídos pela promessa de um duelo para quebrar a monotonia do acampamento. Quando Aisha arrumou a postura ainda cansada, mas com os olhos acesos um semicírculo já se formava ao redor deles.
Ela alongou o pescoço, sentindo o corpo protestar, e sorriu de canto.
— Só não se arrependa depois. — disse, retirando as luvas sujas.
Sylas caminhou até sua carroça, pegou uma espada embainhada em prata, cuja lâmina refletia o último brilho do pôr do sol, e respondeu:
— Damas primeiro.
O murmúrio cresceu. Guardas, servos e até mercadores deixaram o que faziam para assistir.
O Guardião do Norte ainda não havia aparecido mas todos sabiam, algo interessante estava prestes a acontecer acontecer.
As tochas já estavam sendo acessas iluminando o centro do acampamento. O ar trazia o cheiro de terra molhada, e o lago refletia o céu que se tornava laranja com o por do sol.
Aisha e Sylas se posicionaram frente a frente.
Ambos seguravam as espadas ainda embainhadas.
O círculo se formou ao redor. Guardas, servos e curiosos se entreolhavam, o murmúrio crescente abafado pela expectativa.
— Sem lâminas. — disse Aisha, erguendo o queixo. — Apenas técnica, vamos usar nossas bainhas.
Sylas assentiu, ajustando a postura. — Concordo. E prometo não pegar muito leve só porque correu o dia inteiro.
Aisha sorriu, discreta. — Espero que não.
O primeiro passo ecoou entre eles. Sylas iniciou o avanço, golpe em linha reta, rápido, confiante.
Aisha girou o pulso, desviando o golpe de lado e avançando em contragolpe com fluidez impecável. O som seco das bainhas se chocando ecoou pelo ar.
Os movimentos seguintes foram um diálogo mudo, ataque, defesa, rotação, contra-ataque.
Cada golpe de Sylas era limpo, ensaiado, digno de alguém treinado desde a infância.
Cada resposta de Aisha era adaptável, viva o corpo movendo-se como água, sem rigidez.
Aisha sabia reconhecer talento e Sylas era de fato talentoso. O equilíbrio entre postura e força mostrava que ele realmente era espadachim, não um nobre entediado brincando de guerreiro.
Mas o corpo dela já não obedecia tão bem. As pernas pesavam, os pulmões queimavam.
O ritmo intenso do dia inteiro começava a cobrar o preço.
Sylas percebeu e avançou, buscando o limite dela. Aisha desviou o primeiro golpe, aparou o segundo, mas o terceiro raspou de leve sua bainha, arrancando-lhe um sorriso.
— Está ficando lenta. — provocou ele, respirando com calma.
Aisha girou o corpo, trocando o apoio dos pés. Quando o próximo ataque veio, ela parou de responder no mesmo ritmo. Deixou que o golpe passasse rente ao ombro, o suficiente para fazer Sylas desequilibrar a guarda.
Então ela deixou cair a bainha.
O som da madeira batendo no chão foi tão nítido que até o lago pareceu prender o reflexo do vento.
Sylas mal teve tempo de reagir.
Aisha avançou, movimentos secos e controlados uma sequencia de socos que acertaram o peito de Sylas que perdeu o equilíbrio por um momento, quando ele finalmente retomou o ritmo Aisha deu um passo lateral, o corpo girando em torno dele, o antebraço interceptando o golpe dele e redirecionando o peso, a mão livre indo direto ao peito, empurrando-o para trás.
Ele tentou recuperar o equilíbrio, mas um chute rápido o fez cair sentado, mas Aisha não parou dando um giro, o calcanhar tocando o chão e o punho desceu até o queixo dele parando a um dedo de distância.
O impacto não veio, mas o silêncio sim.
Sylas congelou, o corpo travado pela precisão do golpe final.
Aisha, ainda ofegante, sustentou o olhar dele por um instante, o peito subindo e descendo devagar.
Então baixou o punho e deu um passo para trás.
— Luta encerrada. — disse, em tom neutro.
Sylas respirou fundo, um sorriso misto de espanto e respeito atravessando o rosto. — Acho que subestimei o quanto o Guardião ensina.
— Pois é. — respondeu Aisha, recolhendo a bainha do chão. — acho que você pode gostar de treinar com ele.
O silêncio se quebrou em aplausos tímidos, risos e exclamações.
Aisha ajeitou o cabelo e olhou para ele, o tom mais leve.
— E quanto à sua aposta… — disse, cruzando os braços. — Tenho dezoito.
Sylas piscou, surpreso, antes de rir. — Então eu ganhei?
Aisha deu de ombros, sorrindo de canto. — Só dessa vez.
O lago refletiu as tochas como estrelas caídas.
Entre risos e comentários, o acampamento voltou ao som de panelas e conversas.
Mas alguns olhos inclusive os da herdeira Krosys permaneceram fixos em Aisha.
Aquela não era apenas uma discípula. Era alguém forjada no ritmo brutal de Ian e, mesmo exausta, ainda se movia como quem nasceu para lutar.

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