Capítulo 74 - Dever
O acampamento ainda vibrava com a empolgação do duelo.
Risos, aplausos e o som de histórias já exageradas por quem assistira de perto se misturavam ao crepitar das fogueiras.
De um ponto mais alto, perto da encosta que delimitava o acampamento, Ian, Thamir e Lys observavam.
Aisha estava cercada por curiosos e soldados, exausta, mas sorrindo discretamente enquanto recebia cumprimentos e provocações.
Thamir cruzou os braços e soltou um assobio baixo.
— Olha só… — disse, com um meio sorriso. — Tentou copiar o seu estilo na cara dura.
Ian nem precisou perguntar de quem ele falava. O olhar dele acompanhava a discípula com o ar de quem já esperava por aquilo.
— Sim. — respondeu calmamente. — Mas não só o meu.
Thamir o encarou de lado. — O quê?
— O golpe final. — Ian explicou, a voz baixa, porém firme. — Ela soltou a bainha e entrou em movimento contínuo. Isso é meu. Mas o redirecionamento do peso e o uso da mana pra acelerar são seus. E de Naira.
Thamir arqueou uma sobrancelha, entre surpreso e divertido.
— Engraçado. Ela nunca viu a gente lutar a sério, e mesmo assim juntou os estilos.
Ian cruzou os braços. — É o que ela faz de melhor. Observa, absorve, adapta.
Thamir riu, coçando o queixo. — Uma ladra de técnicas, então?
— Mais eficiente do que nós éramos com essa idade. — respondeu Ian, o tom neutro, mas com algo de orgulho escondido.
Lys sorriu ao ouvir. — Parece que ela está indo bem. — comentou, olhando para Aisha ao longe. — Eu vou ver como está o jantar, antes que Naira resolva fazer sopão de novo.
— Vá lá. — disse Ian, num aceno breve.
Lys se afastou entre as tendas, o manto azul se perdendo nas sombras.
Thamir continuou observando o acampamento, as mãos nos bolsos.
— É assustador ver a velocidade com que ela aprende. — murmurou, começando a descer a encosta. — Espero que não se precipite.
— Eu também. — Ian respondeu. — Se ficar confiante demais antes da hora… a confiança pode matá-la.
Thamir assentiu, distraído.
Ian o olhou de lado. — Você não devia estar ajudando também?
— Com o quê?
— Montar as tendas. — Ian respondeu, sem desviar o olhar.
Thamir ficou em silêncio por um segundo.
— …Merda. Prometi pra Elenys que ajudaria. — disse, já acelerando o passo.
Ian soltou um suspiro leve. — Corre, garoto.
Thamir apenas levantou a mão em despedida e desapareceu entre as carroças e fogueiras.
Aos poucos, o som das conversas se misturou ao canto noturno dos insetos e ao farfalhar das folhas, o acampamento se acalmando sob o frio que vinha do norte.
Thamir desceu a encosta com passos apressados, desviando de estacas e cordas que já se erguiam ao redor do acampamento. As tochas formavam pequenos círculos de luz, refletindo no lago logo adiante.
A carruagem da Casa Seryn, discreta, mas de acabamento refinado, estava parada perto da borda da clareira. Diante dela, duas figuras o esperavam.
Isla, vestida com um manto leve, encostava-se à lateral da carruagem, o corpo inclinado e um sorriso que misturava curiosidade e desafio.
Ao lado dela, Serena mantinha a postura firme e o olhar atento, a tocha na mão projetando sombras duras sobre o rosto.
— Finalmente. — disse Serena, a voz calma, mas cortante. — Achei que tivesse decidido nos deixar aqui até o amanhecer.
Thamir levantou as mãos num gesto de rendição, ainda ofegante da descida.
— Atraso técnico. Fui sequestrado pelo Guardião. — respondeu com um meio sorriso. — Mas já estou aqui.
Isla riu baixo, inclinando a cabeça. — Que bom… achei que tivesse esquecido da gente. — A voz dela saiu mais doce do que o necessário, e o sorriso acompanhava o tom.
Thamir arqueou uma sobrancelha, divertido. — Eu não quebro promessa assim, pequena. — disse, já agachando-se para começar a montar as hastes. — E, convenhamos, depois de oito dias de estrada, eu já faço isso mais rápido que soldado faminto montando fogueira.
— Ainda temos que iniciar o jantar mais tarde — comentou Serena, o tom de leve censura. — E alguém atrasou a montagem.
— Então, me permita compensar — respondeu Thamir, amarrando uma das cordas. — Hoje eu faço a janta. Considere um pedido de desculpas formal.
— Então é assim que você conquista mulheres? — Isla provocou, dando um passo à frente, observando-o com um brilho brincalhão nos olhos.
— Se for, estou fazendo errado. — retrucou Thamir, sem levantar o olhar. — Porque até agora só conquistei barracas e dor nas costas.
Serena suspirou, balançando a cabeça. — Não sei se acredito nisso.
Thamir sorriu de canto e puxou a lona, esticando-a com precisão. Cada nó, cada estaca, amarrado com o automatismo de quem já fizera aquilo cem vezes.
Em poucos minutos, a estrutura começava a tomar forma.
— E onde está Elenys? — perguntou, casualmente, sem parar o trabalho.
— Foi se lavar no lago. — respondeu Serena.
O movimento dele parou por um instante. O olhar subiu devagar até encontrar o dela.
— Ela foi sozinha?
Serena ergueu uma sobrancelha. — Claro que não. Foi com as guerreiras. Naira também está lá.
Thamir soltou o ar em alívio, voltando ao trabalho. — Menos mal. Achei que teria que ir salvar uma dama inconsequente de virar a janta de uma fera… antes mesmo do meu jantar.
Isla o observava em silêncio agora, o sorriso perdendo o tom provocador.
Aquela reação rápida, o olhar preocupado, o suspiro não passou despercebido.
Ela cruzou os braços.
— Você parece se importar muito com a segurança da minha tia. — comentou, num tom leve, mas que escondia curiosidade genuína.
Thamir ajustou uma estaca e respondeu sem hesitar:
— Claro que me importo. Vocês estão sob minha proteção. — Ele lançou um olhar rápido e brincalhão. — Além disso, Elenys é boa companhia. Melhor que a dos soldados, com certeza.
Isla forçou um sorriso, mas o olhar vacilou por um instante.
Serena percebeu e também percebeu a verdade que Isla fingia não ver. Thamir não tinha o menor interesse nela.
— Tenda pronta. — disse ele, levantando-se e batendo as mãos. — Agora só falta Elenys chegar pra dizer que eu montei no lugar errado.
— Não duvido. — respondeu Serena, o tom carregado de ironia contida.
Thamir sorriu. — Eu também não.
Ele se afastou um pouco, olhando na direção do lago, onde as tochas oscilavam sob o vento. O ar já começava a esfriar, e as sombras se alongavam entre as árvores.
Isla o observava em silêncio, o olhar mais sério agora algo entre curiosidade e dúvida.
Serena apenas ergueu o queixo, encarando o mesmo ponto.
— Serena… — murmurou Isla, quase para si.
— Sim?
— É impressão minha… ou ele parece mais interessado na tia?
Serena não respondeu. Apenas apagou a tocha com um sopro e disse:
— Talvez…

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