Esse é um dos capítulos da série de extras, e não necessariamente se trata de algo canônico.

    O silêncio na biblioteca era quase absoluto, mais denso que o usual. O zumbido baixo dos terminais de dados e o virar ocasional de uma página eram os únicos sons a perturbar a quietude do fim de expediente.

    Mirena estava sentada em frente ao computador, organizando os arquivos e aluguéis de livros. Usava uma roupa nada profissional, uma calça de moletom marrom larga, uma camiseta branca com a logo do local e um par de tênis pretos.

    Dhaha, seu melhor amigo, estava em uma das mesas, livros de fantasia épica o rodeavam aos montes. Usava uma calça bege de canos largos, chinelos de couro preto e uma regata tapa-pescoço preta, além do relógio branco com LEDs roxos.

    Quando a garota estava prestes a fechar as abas do computador, uma dupla de homens apareceu pela porta giratória.

    — Com licença… — falou um deles, um branco com roupas surradas, cabelo curto e toca de frio. 

    Mirena levantou os olhos, milagrosamente não cansados.

    — Sabe dizer onde fica a rua sessenta e nove? — perguntou o segundo, um negro de roupa mais jeitosa que o primeiro, quase um terno, pouco cabelo e corpo mais robusto.

    A garota jogou o nome da rua no browser de pesquisa e logo entregou a resposta:

    — Basta seguir em frente por mais duas ruas, virar a direita, e então seguir por mais outras duas ruas.

    — Agradecido — terminou o primeiro, seco e direto.

    O segundo o seguiu e logo saíram da biblioteca. O silêncio do local durou alguns segundos, até que Dhaha o quebrou:

    — Achamos os suspeitos, QG.

    Um chiado sutil ecoou nos fones de ouvido ocultos de ambos. — Perfeito. Mantenham a vigilância. Se preciso, interceptem, mas a prioridade é descobrir o objetivo deles.

    Os dois se entreolharam, como se não precisassem de palavras para se entenderem.

    — Entendido? — perguntou a voz.

    — Câmbio! — falou a garota, fechando o laptop.

    — Fechado — completou Dhaha.

    Quando saíram da biblioteca, os dois carregavam capacetes de motoqueiro. Mirena se aproximou do veículo enquanto girava a chave no dedo.

    — Não é mais rápido correr com os trajes? — o amigo perguntou, ao colocar o capacete sobre a cabeça.

    — Depende. Você? Talvez. E a senhorita Thalwara? Não tenho dúvidas. — Ela disse, a voz abafada pelo equipamento de proteção. — Mas eu não, minha compatibilidade não passa de trinta por cento.

    — Tendi. É mesmo uma boa.

    “Gênio desgraçado”, pensou Mirena, amaldiçoando mentalmente o amigo e sua compatibilidade de cinquenta por cento, um potencial que ele não explorava há mais de um ano. “Exibido.”

    Sentaram sobre a moto e deram partida, o veículo acelerou com a raiva da garota. Parecia que iam rasgar o chão com a força daqueles pneus. 


    Não muito longe, um imenso depósito se projetava diante dos dois homens.

    — Deve ser aqui — disse o bem vestido. — Vamos ser rápidos.

    — Não te preocupa, o CDN é família. Não vai deixar a gente se lascar — respondeu o outro.

    — Não fala esse nome, imbecil!

    — Foi mal, foi mal.

    Estava escuro, o galpão não tinha nenhuma janela em suas paredes. Lotado de ferragens e carcaças de carros, ele mais se assemelhava a um ferro-velho.

    No meio daquela bagunça, dois homens se esgueiravam em silêncio, ou tentavam.

    — Aí meu pé! — gritou o de cabelos marrons.

    — Cala a boca, Cleber! — sussurrou o outro. — Tá querendo ferrar o esquema?

    — Quero ver você ficar quieto se cair um pneu no seu pé também, Horácio.

    — Tsc! — O segundo ignorou os argumentos do aliado e se voltou para as ferragens. — A encomenda deve aqui em algum lugar. Foco.

    Ele removeu o pano que cobria uma das carcaças metálicas, mas apenas deu um suspiro e voltou a procurar.

    “Que mané “Foco”, meu pé tá doendo pra caramba”, pensou Cleber, mancando até um dos containers metálicos no canto da sala.

    O breu era cegante, é isso tornava ao menos dez vezes mais difícil abrir um container daquele tamanho. Ao acender a luz do celular, o primeiro homem teve uma visão bem melhor da fechadura.

    — Então é eu fazer assim…

    A fechadura abriu fácil. As lanternas dos celulares eram um avanço magnífico da ciência, e o motivo do agradecimento do homem.

    Dentro do container, algo surpreendeu o homem, mais que o pneu: estava vazio.

    — Tudo isso pra nada…

    Foi então que ele apagou sua lanterna, mas, estranhamente, as luzes não se apagaram. Indo contra o entendimento do invasor de galpões, uma forte luz roxa se projetava atrás dele.

    Uma dor excruciante surgiu em sua nuca, o homem desmaiou antes que pudesse reagir.

    Do outro lado do galpão, o segundo homem vasculhava mais ferragens. A frustração era notável em seu rosto, talvez o boato fosse apenas um boato.

    — Tem que estar aqui… o senhor Rubrae não pode estar errado… — falou Horácio, ao jogar um pedaço de metal para longe.

    De repente, o rosto de frustração se tornou um sorriso de satisfação. Abaixo de todo aquele metal estava uma caixa branca.

    — Encontrei! Tava realmente aqui, Cleber! — gritou ele, com os braços erguidos.

    — Muito bem, isso reduz nosso trabalho de procurar — uma voz feminina e calma soou de cima, com a cabeça apoiada em uma das mãos e o corpo em cima de um carro.

    — Sim, dimi… pera, que? — A voz do homem enfraqueceu, aquele não era Cleber.

    Em um giro rápido para a direita, o homem sacou uma barra de ferro e golpeou para trás. Mirena desviou com um pulo e retornou ao chão em um movimento sublime. O bastão, por pouco, não acertou sua camisa.

    — Quem é você?! — gritou o homem, que investiu contra a garota.

    Sem hesitar, Mirena bloqueou o ataque com sua mão direita e revidou com um chute. A barra de metal deveria ter causado um bom dano, mas o braço estava intacto.

    Sem hesitar, ela revidou com um chute no diafragma e um golpe de palma aberta no rosto de Horácio. Aquele impacto não foi normal, carne conte carne. O impacto o arremessou para trás, como se tivesse sido atingido por um martelo.

    — Prazer em conhecê-lo, pode me chamar de Agente MK — debochou a garota, ao realizar uma mesura sem um pingo de respeito.

    — “Agente MK”? Não pode ser… — Ele sacou uma pistola e apontou para a garota — Você é da Guilda!

    A garota levantou os braços em rendição, mas seu rosto não demonstrava medo algum.

    Quando o homem ameaçou disparar, um brilho roxo iluminou o lugar. Um martelo de guerra branco, pulsando de luz roxa, atingiu a cabeça dele.

    — Argh!

    — Fecha a boca, senão entra mosca — disse Dhaha, aproveitando o impulso para dar um giro e golpear a cabeça de Horácio.

    O homem caiu duro no chão, inconsciente.

    — Muito bem! Você chegou na hora exata, Dhaha — riu a garota.

    — Até parece… — O garoto, também vestido com um uniforme escolar, guardou o martelo em seu cinto. — E que ideia foi essa de encarar uma pistola e nem ativar seu traje?

    — Meu plano funcionou ao final, não?

    Dhaha não respondeu, mas desejou dizer grandes ofensas a ela.

    Após amarrarem os capangas, Mirena fez uma rápida revista nos bolsos deles e confiscou suas armas, todas de numeração raspada. 

    Os dois se aproximaram da caixa metálica. Ela era completamente lisa, retangular, sem indicativo de maçaneta ou alavanca.

    — Acha que isso é coisa da CDN? — perguntou Dhaha, que hesitava em tocar o invólucro.

    — Provavelmente… Devemos contatar a Guilda, eles vão coletar e analisar — Mirena respondeu, já com as mais sobre o fone de ouvido. — Aqui é MK, câmbio…

    A garota se afastou do objeto no chão e começou a passar seu relatório. Dhaha se levantou, esticou o corpo e passou o olho pelos arredores.

    A vista não era das melhores, fosse pela escuridão ou pela bagunça que recheava o galpão.

    — Quinze minutos para a equipe de extração chegar — afirmou a garota, de volta ao amigo.

    — Esse lugar é bem lotado, né não? — cortou ele, distraído dos assuntos oficiais de seu trabalho.

    — Como?

    — É! Ta lotado de quinquilharias, daria pra reutilizar esse metal todinho.

    — Bom, é verdade… — Mirena caminhou até o amigo, seu olhar pesava como uma lembrança antiga. — Ele fica em uma área remota, então perdeu sua utilidade original com o tempo. Então, as pessoas tomaram conta, e agora ele serve como um grande depósito.

    Seus olhos caíram sobre a caixa metálica entre eles e sua fala rapidamente mudou para um tom irônico.

    — Ou como pano para o tráfico de armas especializadas…

    O corpo de Dhaha estremeceu pelas palavras da garota, os olhos encararam a pequena caixa com um leve temor.

    — Isso é uma arma especializada então…?

    — Se veio do CDN, eu não duvido nem por um instante. Por isso, tome cuida…

    Como se estivesse o momento perfeito para isso, uma voz robotizada e cortês atravessou a fala da garota:

    — E por isso, eu agradeço por cuidarem tão bem de nossa encomenda.

    As sombras ao redor deles se dobraram, tentando engoli-los. Com saltos quase coreografados, os dois se afastaram para próximo da porta.

    Diante deles, as trevas se uniram e deram forma a uma figura masculina. Ele usava um traje metálico preto que imitava um smoking futurista, com finas linhas de energia escura crepitando por toda a sua superfície. Seu rosto estava oculto por uma máscara mecanizada da Comédia.

    — Equipamento de teletransporte? Não… — sussurrou a garota.

    Mirena analisou a situação e rapidamente levou o braço mecânico ao peito, em uma espécie de autoproteção.

    — Um servo… — A última palavra saiu arrastada, carregando o peso de todo o caos que causaria.

    Com o mover de uma mão, a caixa platinada foi encoberta pelas sombras e desapareceu da visão de todos.

    Quando o mascarado se virou para o grupo e ameaçou dizer algo, Dhaha já tinha sacado seu martelo e corrido para seu encontro com um ataque em arco de cima para baixo.

    O choque do ataque vibrou toda a estrutura, raios roxos e negros dançaram pelos arredores.

    — A Guilda, estou certo? — perguntou o mordomo metálico.

    — O Culto de Nazhur, né não? — Dhaha devolveu com outra pergunta.

    Antes que pudesse fazer outra pergunta, seu corpo foi engolido pelas sombras sem que visse. Dhaha estava novamente ao lado da amiga. 

    Com o erguer da mão, o mascarado fez com que surgissem caixotes enormes acima dos dois.

    Mirena teve tempo para saltar para o lado, mas Dhaha não deu a mesma sorte. O grande container esmagou seu corpo contra o chão.

    Ou era o que deveria ter acontecido.

    — Argh! Tá… achando… que eu… sou… bagunça?! — urrou o garoto.

    Uma luz roxa e intensa emanou debaixo do retângulo gigante. Antes que tocasse o chão, o container fora arremessado contra uma das paredes.

    Com o arremessar da caixa, o novo visual de Dhaha era nítido: 

    Um traje branco colado ao corpo, revestido por placas metálicas de mesma cor e delineado por LEDs roxos. Em sua face havia uma máscara transparente e feita de lentes, e no centro do peito, um círculo de energia pulsava intensamente. 

    — Um traje cármico, heim… — murmurou o de preto.

    Dhaha encurtou sua distância da caixa metálica em segundos. Ele agarrou uma das paredes com as mãos limpas e a separou do restante. 

    A placa cortou o ar na direção do mascarado, que se moveu engolido pela escuridão. Alguns gestos de mão, e novas sucatas apareciam para esmagar o garoto.

    A batalha havia se tornado um embate de resistência, perderia aquele que ficasse sem energia para atacar e desviar primeiro. 

    Ao estalar os dedos, o inimigo sumiu na escuridão.

    “Ele sumiu do radar?”, pensou Dhaha, passando os olhos pelas lentes à frente de seu rosto. “Não achando…”.

    — Dhaha! — gritou Mirena, que correu na direção do amigo.

    Antes que Dhaha pudesse reagir, uma lâmina cortou a superfície de seu ombro, na fresta das placas protetoras.

    O mascarado surgiu de suas costas portando uma espada de feixe.

    — Touché.

    O garoto aproveitou a proximidade e golpeou a arma do inimigo com seu martelo, mas só teve tempo de cortar o vento.

    O mordomo mecânico já estava longe outra vez.

    — Vai ficar parado não? Caramba! — praguejou o de branco.

    — Eu deveria? Posso dizer o mesmo para você: fique parado e aceite a morte — devolveu o de preto.

    Quando Mirena chegou ao lado do amigo, tirou um segundo para puxar o ar, mas Dhaha já estava em postura de combate novamente.

    Um sorriso surgiu no rosto do garoto, seus olhos brilhavam como chamas solares.

    — Então vamo começar…

    Ele sacou seu martelo e algo pareceu ligar. As luzes da arma intensificaram, raios arroxeados fluíram do cabo para a cabeça e as placas, antes fixas, começaram a se remoldar.

    — Molde, [Metalóxis]!

    Os raios explodiram. O metal do martelo se tornou líquido, fluindo e se reconfigurando. Em segundos, a arma massiva havia se transformado em um par de espadas de feixes púrpura.

    O espadachim partiu em uma arrancada na direção do mascarado, o brilho dos feixes cortou a escuridão que os cercava. Cada carcaça jogada no garoto era cortada em pedaços.

    — Não esperava encontrar um mago por aqui — começou o de preto. Suas mãos guiavam cada vez mais destroços.

    — Fala demais pra quem em menor número! — gritou Dhaha, elevando um pedaço de metal com um pisão, e o arremessando com a lateral da espada.

    Antes que o inimigo pudesse dizer algo, um feixe de luz atravessou o destroço e atingiu seu ombro. Do outro lado do galpão, próximo da entrada, estava Mirena.

    A garota vestia um traje como o de Dhaha, mas suas luzes eram brancas como restante da armadura. Portava um rifle de cano longo e branco, apoiado no braço metálico.

    “Desde quando ela estava aqui?”, pensou o mascarado, ao tentar se envolver em sombras.

    Apenas tentar, pois sua técnica foi impedida pelos cortes de Dhaha, que atingiram seu braço.

    O jogo mudou de lado, agora era o inimigo que estava sendo pressionado. Ele defendia os golpes do garoto com maestria, mas não tinha abertura para contra atacar. E quando achava uma abertura, Mirena o cobria de disparos.

    Toda a estrutura tremia com o choque dos ataques, cada espadada bloqueada ecoava como um trovão, e erguia poeira como um tornado.

    — Tsc! — O mordomo mecânico estalou a língua e desapareceu nas sombras, surgindo em um amontoado de escombros. — Não imaginei que a Guilda enviaria Magos. Terei que apelar.

    Ele ergueu os braços, e as sombras ao redor dele pararam de dançar. Elas começaram a se contrair, a consumir a luz, a matéria, o próprio som. Tornaram-se vácuos famintos, buracos negros em miniatura devorando o galpão.

    A visão era aberrante. Aquilo não era mais uma luta. Era uma batalha pela sobrevivência.

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