Yunneh não aceitou nada bem Karina estar junto deles, mas Verion disse que ela já sabia de tudo e não adiantava contrariar. Era estranho tê-la por perto depois do que falou no tribunal. A ideia de que ela passaria a morar com eles era o mais absurdo.

    Jeremiah e John saíram para passear pela cidade após o café da manhã, então restaram apenas eles na hospedagem. Karina dormia em uma das camas, e os irmãos conversavam.

    — Vou ter que me encontrar com a Lisbeth mais tarde.

    — Outra missão?

    — Ai, espero que não… Talvez seja só para oficializar as coisas do meu treinamento. De qualquer jeito, vamos voltar pra casa daqui uns dias.

    — Esse lugar é muito agitado, quero voltar logo pra Aludra. — Apoiou a cabeça em uma das mãos. — E eu tenho que regar as rosas do meu pai.

    — Gostou mesmo daquelas flores… — sussurrou, depois sorriu.

    — Yun… — Ele se aproximou dela e começou a acariciar suavemente em seus cabelos. — Esses outros cabelos brancos. Ontem você disse que não fazia ideia do motivo de terem aparecido.

    — Ainda não sei o porquê deles estarem aí, mas deve ter acontecido no meio da minha luta contra aquele povinho lá de capuz. Me sinto mais forte, mas não tenho certeza.

    — Se não estiver se sentindo mal, acho que é o que importa. — Parou de acariciar os cabelos castanhos e brancos dela e ficou entediado bem rápido.

    — Ahmm… Verion, não tivemos muito tempo de só passear pela cidade e aproveitar um pouco das coisas. Vamos conhecer de verdade a capital!

    Ele achou uma péssima ideia porque estava calor. Após a forte tempestade, o sol retornou ainda mais forte do que de costume. Contudo, Yunneh o convenceu com o melhor argumento que poderia: — Eu posso deixar tudo geladinho.


    Uma multidão de pessoas seguiam Karina, Verion e Yunneh pelas largas ruas arborizadas de Sirius. Centenas de pessoas seguiam a trilha do gelado ar fresco, formando uma verdadeira fila que causava o engarrafamento das carruagens.

    — Não achei que isso ia chamar tanta atenção! — Ela balançou Verion pelos ombros.

    — É óbvio que chamaria! — respondeu numa indignação quase cômica.

    — Olha mãe, tem até floquinho de neve! — gritou uma criança.

    “Criançada chata! Por que eles não caem fora daqui logo?”

    Karina lançou um olhar terrível contra Yunneh, que a fez se encolher envergonhada por ter seus pensamentos lidos tão facilmente outra vez. Recompôs a postura e suspirou, mantendo-se com uma expressão emburrada.

    No começo da tarde, foram a um restaurante. A culinária local usava muito alho em seus alimentos, deixando um gosto bem marcado. Yunneh detestou isso e foi chamada de vampira uma dúzia de vezes pelas pessoas que ainda a seguiam devido ao frio.

    “O que essa cambada de enxeridos ainda tão fazendo aqui?!”

    Verion ria da revolta interna dela e dava bom dia a todos os desconhecidos em volta. Ficaram lá por algumas horas, apenas jogando conversa fora e discutindo o que poderiam fazer no resto do tempo que passariam na cidade.

    Durante o meio da tarde, foram até a mesma loja de roupas onde Yunneh havia comprado seu vestido branco para tentar ser sequestrada. Os outros dois ficaram surpresos quando viram a atendente correndo para cima dela no mesmo momento em que pisou lá dentro.

    Karina comprou outra roupa para Yunneh que, mesmo a contragosto, a vestiu. Deixando o jaleco e a calça de lado novamente, passou a usar um vestido azul claro; e Verion blusa branca com uma linha preta vertical e calças verdes. Não gostaram muito das escolhas, mas não queriam desgradá-la.

    Visitaram vários pontos da cidade até o anoitecer. O grupo de pessoas só parou de os perseguir pelas ruas quando o sol baixou no horizonte e o frescor noturno começou a tomar forma. Pretendiam retornar à hospedagem, mas antes fariam uma parada.

    Entraram em uma velha biblioteca que parecia estar praticamente abandonada. Fugia da lógica um lugar como aquele, alocado próximo ao centro, ser tão malcuidado. Infindáveis teias de aranha criaram uma camada branca sobre as altíssimas e longas estantes.

    A iluminação do lugar era impecável, mas estranhamente não encontravam a fonte dela. Uma luz uniforme que abrangia o espaço com perfeição.

    Eram livros a perder de vista, dezenas de milhares deles. Não importava quanto dessem voltas e mais voltas dentre as estantes, sempre haviam mais coleções de diferentes cores. A vivacidade das cores das capas não combinava em nada com o ar de abandono.

    — Que lugarzinho acabado… — resmungou Yunneh.

    — Lembro desse lugar ser um pouco diferente no passado, mas não venho até aqui há décadas — disse Karina, pensativa.

    — Também gosta de leitura?

    — Não tanto, quem tinha mais gosto por isso era minha filha. — Puxou um livro de capa vermelha da estante. — Ela me trouxe aqui algumas vezes, tentando me fazer gostar.

    — Nada te agradou?

    — Poucos livros… Sei que aqui deve existir algo que mudaria minha vida, mas são tantas opções que não sei por onde deveria começar.

    “Às vezes queria ser capaz de ler todas essas coisas. É triste pensar que aqui dentro existem milênios de conteúdo e informações incríveis que eu nunca vou poder conhecer por completo, mesmo que eu dedique todo meu tempo de vida a isso”, pensou Yunneh.

    Um barulho alto chamou a atenção deles, o som de um livro caindo, seguido de passos pesados. O trio foi espreitando pelas estantes da biblioteca até saberem o que estava acontecendo.

    — Olá, o chefe da família Khrizantema enviou um novo carregamento de livros! — Ouviram o pigarrear do homem. — Está aí bibliotecária? É que… tem outras coisas aqui no meio além dos livros dele!

    “Nossa, se isso fosse uma história de livro muito que a bibliotecária gritaria pra ele calar a boca.”

    — SILÊNCIO!

    Yunneh berrou por ter acertado sua previsão, revelando sua presença aos dois. Tapou a boca ao notar o que fez, vendo as expressões assustadas de Verion e Karina.

    — Quem está aí? — Indagou a bibliotecária.

    — Sou um livro falante! Acabo de despertar do meu sono de séculos nessas prateleiras! — respondeu, forçando uma voz misteriosa.

    — Sua idiota! Essa biblioteca existe há menos de 100 anos!

    — É que o tempo é diferente nas prateleiras!

    — Para de graça e aparece logo!

    Acabaram na parte da recepção que, contraintuitivamente, não ficava na entrada, e sim no centro da biblioteca. Naquela parte, viram-se cercados de grandes estantes circulares que rodeavam um grande balcão tomado de livros e papelada. As teias de aranha apareciam em menor quantidade, mas o cheiro de poeira e mofo continuava forte por lá.

    Um tapete branco terminava exatamente onde a recepcionista se encontrava. Uma mulher loira bem magra e baixa com cabelo amarrado em um coque. Usava óculos de leitura e roupas escuras.

    — Desculpa, nós nos perdemos no meio desse lugar enorme e não achamos o caminho por um tempo.

    — Oh, é normal… Ainda lembro de uma garota que se perdeu aqui e foi encontrada só na semana seguinte. — Ela ajeitou os óculos e voltou seu olhar ao entregador. — Se puderem, fiquem no cantinho que já os atendo. Preciso falar com ele.

    O entregador chegou carregando uma enorme caixa de papelão. Avistaram o desenho do brasão da família que havia enviado, os Khrizantema. Um rádio e um microfone abaixo de uma letra K em azul e branco.

    Ele abriu a caixa sobre o balcão e retirou vários exemplares. A maioria tinha capa azul e branca, combinando com o esquema de cores do brasão. No entanto, alguns fugiam do padrão, livros grossos de capa preta.

    — Isso veio junto no carregamento, mas não recebi nenhum detalhe ou instrução sobre eles. — Entregou na mão dela uma das cópias.

    — Lya Seshat… De fato não há ligação com os Khrizantema — falou ao olhar o nome da autora. — Mas não faz mal, já temos outras obras dela por aqui.

    — Tudo bem, tenha uma boa noite. — O homem acenou educadamente e foi embora.

    Verion percebeu um detalhe e perguntou à Yunneh: — Esse não é o nome daquela autora que você gosta?

    — Sim, sim! É a Lya… — Ela cerrou os punhos, irritada. — Se aquele livro da garota na prisão não tiver uma continuação vou congelar ela viva!

    — Se acalma menina. — Karina deu dois tapinhas no ombro dela.

    Quando a recepcionista percebeu, ela já estava de pé ao seu lado como um verdadeiro espectro. Sentiu um pequeno frio na barriga por não ter percebido a jovem se aproximar.

    — M-meu nome é Selene… — Deu um passo para trás. — O que querem?

    — Tem livro novo da Lya nesse chiqueiro que você finge ser uma biblioteca?

    — Hey! Esse lugar só está assim porque a Lisbeth cortou e verba pública para isso. Não consigo contratar o pessoal da limpeza e me recuso a fazer isso sozinha nesse lugar enorme.

    A mulher cruzou os braços e balançou a cabeça, frustrada. Instantes depois, abriu uma gaveta e puxou um enorme caderno de registro. Averiguou que não tinham lançamentos da autora e disse para Yunneh.

    A Velgo ficou decepcionada, porém, para não ter gasto tanto tempo à toa lá, pegou uma nova cópia do mesmo livro que já tinha. A qualidade era um pouco melhor, a capa muito mais bonita e bem acabada.

    Enquanto tudo isso ocorria no interior da grande biblioteca, o entregador acabou esbarrando em uma jovem parada na rua. Irritou-se com a desatenção, mas não disse uma única palavra por ter ficado intimidado com beleza dela.

    Longos cabelos de cor laranja, claríssimos, emolduravam o inocente rosto tomado por sardas. A franja que tinha quase ocultava seus penetrantes e preocupados olhos azuis, tão belos quanto o céu de um dia ensolarado.

    Não reagiu ao homem e manteve um olhar fixo na direção de uma certa residência de três andares. Uniu suas mãos cobertas por luvas brancas e seguiu lentamente. A camisa branca, o sobretudo preto de cauda longa e as calças que usava ficaram suadas por um nervosismo violento.

    Cruzando a rua e chegando ao local designado, bateu à porta da grande casa. A entrada foi destrancada e ela adentrou no espaço pouco iluminado, sentindo um cheiro forte invadir suas narinas, algo químico.

    O ambiente era escuro, precisava forçar seus olhos com tudo para meramente ver o contorno das coisas e não tropeçar nelas. Sentiu um aperto no peito ao reconhecer a silhueta alta adiante.

    — Oiii, Lya, minha laranjinha — disse Bel, rodopiando seus cabelos brancos na ponta do dedo.

    — Arhm… Senhor, o que queria pedir para mim? — perguntou com uma deprimente voz e falhada.

    — Olha, não é nada muito complicado, só preciso que desenterre um cadáver no cemitério. Acabei fazendo alguém relativamente valioso ser morto, porém seu corpo ainda pode ser reutilizado… — Apontou a pistola e disparou na cabeça dela, alterando suas memórias para que soubesse do caso por completo.

    Ela abaixou a cabeça, trêmula, e concordou com o pedido.


    Uma pá enferrujada, segurada por ela, estraçalhou a rosa plantada por Verion. Apesar ter tido uma crise de choro e ter vomitado por estar fazendo algo tão escabroso, pouco a pouco removeu a terra com a ferramenta, revelando o humilde caixão de madeira.

    Ajoelhou-se perante ele, colocou suas mãos sobre a madeira e implorou por perdão freneticamente até ficar rouca. Mais tarde, levou o caixão embora na escuridão por um longo caminho, seguindo para além da fronteira.

    Lya Seshat movia mais uma peça para o futuro caos na terra do Deus da Caça e da Perseguição, Raptra. A marca de nascença em forma de lua minguante seria vista novamente.

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