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    Quatro dias se passaram e a cela não tinha ficado mais confortável. Devido a sua dieta estrita, tudo que Huan Shen comia era uma sopa de legumes abandonados da feira, um mingau de aveia meio ralo, um pão dormido e um copo de água. Quando não meditava, usava o chão para fazer suas flexões. Embora tentasse manter seu espírito tranquilo, não podia deixar de se preocupar com o destino de Lily. Era certo que os policiais e a milícia iriam atrás dele primeiro e a iriam negligenciar em primeira mão, mas nada era garantido.

    “Três dias já. Eles não vão poder me manter aqui para sempre…não vão. E como eles ainda não sabem que eu uso magia, esse pode ser um último recurso caso eu precise.”

    Quando ia se preparar para mais uma nova série de exercícios, os passos em direção a sua cela começaram a aumentar. O emissário fechou os olhos. Seis passos em uma fração de tempo, seguido de um pequeno intervalo, até outro conjunto se assentar. Três pessoas. Duas passadas mais longas, pegada firme e pesada. Dois homens. A terceira era mais leve e menor, mas ainda firme.

    “Então ela veio me ver…”

    O som estridente do cassetete acertando as barras de ferro ecoaram por toda a cela.

    — Detento, aproxime-se da grade e coloque as mãos para fora. Não tente nenhuma gracinha ou a coisa vai feder pra você!

    Quando Huan Shen se levantou, Anastasia não podia deixar de notar o quão ameaçador ele aparentava ser. Pela primeira vez, ela tinha uma dimensão do quão imponente aquele homem era. Ela já tinha visto diversos criminosos enormes na sua vida, alguns até maiores que ele, porém havia algo que a mesma não conseguia explicar, uma energia inata que mesclava temor e autoridade. Seu peitoral, embora não definido, tinha diversas marcas de cortes na região da costela, diafragma e uma abaixo da clavícula. Seus braços eram marcados por tatuagens de dragões que se estendiam por suas costas.

    — E você quer me convencer que é vegetariano? Com todo esse tamanho? — questionou a detetive.

    O emissário estendeu seus braços, que mal passavam pela grade.

    — Não seja reducionista, detetive — respondeu, encarando-a com seus olhos negros profundos. — Não é só vegetais que eu como quando estou com vontade.

    “Eu também tenho uma dieta balanceada com alguns laticínios, mel e fungos. É necessária uma rede complexa de alimentação para manter o meu tamanho.”

    — Eu imagino…

    Ahmed semicerrou os olhos.

    — Tô vendo que trouxeram um par de algemas maior que o anterior. Parece que eu não vou ser solto mesmo, né?

    Anastasia cruzou os braços.

    — Não. Você está sendo transferido para a penitenciária de Conde Marlo. O comissário acredita que você é um criminoso de alto risco e uma má influência para os detentos locais.

    — E olha que eu tentei me comportar…

    Após trancar dois elos grossos de aço sobre seu braço, o policial puxou uma pequena mesa com rodinhas para o seu lado. Em cima dela, uma bandeja de alumínio sustentava uma seringa e um pequeno frasco com um líquido transparente e viscoso. Com rapidez, ele a preencheu e enfiou a agulha diretamente em sua veia, causando um pequeno desconforto.

    — Caso não saiba, isso é…

    — Solução de Viódio — interrompeu Huan Shen. — Claro, vocês tinham que garantir.

    — Bom — disse Ahmed. — Se você for um usuário de magia, agradecemos por não ter destruído a delegacia e matado nossos policiais. Porém, não podemos continuar dependendo da sua suposta boa-vontade. Esse líquido vai agir diretamente no seu sistema nervoso e liberar uma toxina que irá causar uma disrupção no fluxo dos seus meridianos. É esperado que você sinta uma tontura, vertigem, enfraquecimento generalizado e talvez até vomite, no pior dos casos. Então, tente não fazer muito esforço.

    “Eu já sabia disso tudo, mas é claro que o palestrinha aí teve que mostrar que fez o dever de casa.”

    Em alguns segundos, sua visão começou a oscilar. Seu corpo começou a suar frio e um refluxo agitou seu estômago. Huan Shen respirou fundo, dando uns tapas em seu rosto para se manter de pé. Admirando a resiliência do prisioneiro, Ahmed abriu a cela e, junto com o outro guarda, o pegaram pelo braço e o levaram para o lado de fora da delegacia.

    “Merda…agora eu realmente estou sem opções!”

    Mesmo que sua visão estivesse oscilando, conseguiu perceber como toda a delegacia acompanhava seu percurso em direção ao lado de fora. Por alguns segundos, conseguiu observar a sala do comissário, na qual o mesmo parecia estar conversando com um sujeito que não fazia ideia de quem poderia ser.

    Do lado de fora, um largo ônibus de metal e com dois enormes escapamentos o esperavam. Já faziam cerca de sessenta anos, desde que o Santo Império adotou esse meio de transporte em larga escala para prisioneiros, com o objetivo de diminuir a taxa de fuga e aumentar a segurança geral durante o trajeto, além de reduzir os custos com os prisioneiros.

    — Já pegou um desses? — perguntou Ahmed, com ironia. — Dizem que balança bastante, então espero que não vomite. Vão te fazer limpar.

    “Vai se foder, detetive.”

    Huan Shen deu o primeiro passo para dentro do ônibus, subindo os degraus e parando no primeiro banco que encontrou, enquanto sua cabeça pegava fogo.

    — Porra… — murmurou. — Esse veneno está acabando com meus meridianos!

    Haviam uns oito prisioneiros dentro do ônibus, que o olhavam com certa desconfiança. Como Santa Marília ficava no extremo sul, claramente o veículo pegou um desvio até a região apenas para pegá-lo.

    — Todos vocês, menos o grandão…SAIAM! AGORA! — bradou o motorista.

    A princípio, todos ficaram um tanto confusos, mas quando o mesmo acertou uma das cadeiras com um porrete, imediatamente se levantaram e começaram a descer pela porta da frente, acuados.

    “Que porra tá acontecendo?”

    Alguém entrou no ônibus. Subindo os degraus, um homem na casa dos seus vinte anos, bronzeado, cabelos curtos arrumados e uma camisa social dobrada na altura do cotovelo sentou-se do seu lado, sem o mínimo de preocupação.

    — Você não parece bem, amigo — disse ele, medindo sua temperatura. — Estranho! Quem toma Viódio costuma ficar queimando de febre, mas sua temperatura até que está bem normal. Parece que você é um cara bem frio.

    — Você cheira a camomila e café expresso. Você não é o mais velho dos Bakir? O que chamam de Leonard?

    O jovem ficou confuso como ele correlacionou camomila e café e chegou nessa conclusão, mas não estava ali para desperdiçar seu tempo.

    — Eu mesmo. E sabe o que é interessante? Eu posso te tirar dessa situação quando eu quiser. Com apenas um telefonema, você sai pela porta da frente da penitenciária sem nenhuma acusação nas suas costas.

    “Ah, não. O playboy tá tentando me fazer de otário…”

    — Se você pode me livrar assim, quer dizer que você sabe quem realmente matou o investigador imperial.

    — O que eu sei ou deixo de saber não te diz respeito. Porém, tem algo que você sabe e eu quero saber também. Cinco dos meus soldados foram atrás de você em uma noite. Pelo seu físico, não é de se estranhar que eles tenham sido mortos, mas isso não vem ao caso. Eu senti um vestígio de mana bem específico naquela região, um vestígio de algo que não é qualquer pessoa que possa presenciar e sair vivo. Você viu, não viu?

    Huan Shen semicerrou os olhos. Se antes ele duvidava, agora tinha certeza que todo o esquema com a Mão Sombria era bem maior do que poderia imaginar.

    — Aquelas aberrações foram obras suas? Você tem noção da merda que isso vai dar se sair de controle? Essas criaturas, uma vez mutadas, não raciocinam ou tem qualquer espécie de humanidade.

    — Você viu alguns projetos defeituosos e assume que isso é a totalidade do meu objetivo. Lhe falta visão, pelo que percebo. Eles foram apenas um processo descartável, e muito bem-pagos, por sinal.

    — Não acho que eles aceitariam dinheiro para ficar desse jeito. Não acho que eles sequer sabiam que estavam trabalhando com uma das marionetes da Mão Sombria.

    Leonard inclinou seu rosto na direção do emissário.

    — Marionete? Pelo visto você não sabe quem eu sou.

    — Um playboy burro, isso sim. Nenhum daqueles soldados sabiam o que iria acontecer no instante que tomaram a pílula. Eles não carregavam a marca da Mão Sombria e nem você. Sua necessidade de ter vindo até mim para saber do resultado da pílula indica que nem você sabia do resultado. Porra! No que caralhos eu me meti?

    Aquelas palavras plantaram pequenas sementes de dúvidas na mente do jovem Bakir.

    — Você está falando um monte de merda pra única pessoa que possa te salvar dessa situação.

    — Ah, vai tomar no cu! Você nunca teve intenção de me soltar. Acha que eu nasci ontem? Eu sou a única pessoa que sabe do seu segredinho. Provavelmente você já até molhou a mão de alguém lá pra me esfaquear no banho. A única pessoa que está se iludindo com alguma coisa aqui é você. Um nobre de uma familiazinha agricultora nos cafundós do Santo Império achando que são da alta nobreza. Você também é só um cachorro em um jogo muito maior, então pare de achar que você é alguma coisa.

    Leonard respirou fundo e levantou do banco.

    — Aproveite o tempo que resta. Espero que reflita em suas palavras quando for tarde demais.

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