Índice de Capítulo

    Almoçando juntos sob a luz suave do meio-dia, sentados um de frente para o outro em uma tranquilidade fora do normal. O som das colheres raspando suavemente os pratos preencheu o ambiente com um caos harmônico.

    Kevyn, com o olhar distraído, ergueu seus olhos até ela. Por um instante, observou-a e lembrou-se, então, de que ela havia mencionado visitar a amiga à qual estava tão preocupado.

    Antes mesmo que ele dissesse algo, Night ergueu os olhos e cruzou o olhar com o dele. Seu rosto se iluminou com um sorriso gentil, quase tímido, como se soubesse exatamente tudo que ele estava pensando.

    A expressão dela acalmou, mas trouxe pavor. Com os lábios curvando-se num reflexo natural, o príncipe retribuiu o sorriso e, com a voz baixa e tranquila, disse:

    — Você foi ver como a Aya está?

    Tensa, a demônio desviou o olhar e respondeu: — Ah… sim… hm, aliás, você pretende fazer alguma coisa?

    Uma troca de assunto.

    — Bem, acho que sim, tenho a Kind para melhorar e tô com uma arma pra fazer…

    — Entendo… — voltou seu olhar para ele.

    — Mas então, como ela está?

    Silêncio.

    — Night?

    Dando um leve susto, ela se arrepiou e respondeu: — Ela… tá passando por uma situação difícil…

    Silêncio.

    Continuou: — O pai dela… é deplorável e nojento.

    Kevyn encarou-a com sangue em seus olhos. Através de um leve suspiro, ele comeu outra colher de comida e encarou seu prato.

    Vendo-o daquele jeito, a demônio recuou.

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    Logo após o almoço, deitados no sofá, mais calmo, o príncipe estava quase dormindo. Por outro lado, a garota roía a unha de seu dedão enquanto pensava: “Preciso achar um jeito de tirar ela da cabeça dele… um jeito”. De seu desespero, uma ideia.

    Deslizando suavemente, ela esfregou o rosto em seu pescoço, sentindo seu cheiro e respiração. Um prelúdio do caos. E então, sem aviso, mordeu levemente a curva entre o ombro e o pescoço dele.

    Kevyn franziu a testa, despertado com o toque repentino. Seus olhos se abriram devagar, confuso, mas entendendo o que estava acontecendo, através de um suspiro arrastado, murmurando, ele reclamou:

    — Ei… a gente ainda tá de barriga cheia, vamos fazer isso mais tarde… — desviou o olhar.

    — Hm… — percebendo que não ia conseguir agora, antes de poder dizer algo, foi cortada.

    — Enfim, você pode dizer o que tá acontecendo com a Aya? A… situação difícil, sabe? — inclinou a cabeça.

    De olhos fechados, a garota fingiu estar dormindo, tentando evitar aquilo a qualquer custo. “Idiota! Idiota! Idiota!”, sua mente ecoou, as vozes gritaram e gritaram.

    ❍ ≫ ──── ≪ • ◦ ❍ ◦ • ≫ ──── ≪ ❍

    Pela janta, Kevyn estava preparando-na. Encarando o garoto, Night franziu sua testa e pensou: “Agora é a minha chance, mas não posso… tudo bem”, ela se levantou da cadeira de onde estava sentada e, aos poucos, se aproximou.

    Enquanto mexia calmamente os ingredientes na panela, Kevyn sentiu o ar ao redor pesar, clima de mal presságio, maldito seja.

    Um silêncio denso tomou conta do ambiente, como se o tempo hesitasse. Invadiu sua mente, sutil como um sussurro e incômodo como um espinho sob a pele.

    Seus olhos, atentos mesmo na rotina, moveram-se de relance para o reflexo da cozinha, captando um movimento incomum. Lá estava ela. Night. Ou algo com o seu rosto. Seus passos suaves demais, a respiração lenta demais, o sorriso em seus lábios… errado.

    Um sorriso que não lhe pertencia, além de seu ministério sombrio. Mesmo com o alarme ecoando dentro de si, Kevyn aceitou o momento com serenidade.

    Virou-se de leve, reconhecendo sua aproximação, mas não reagiu. Apenas respirou fundo e voltou sua atenção para a comida, como se a ignorância lhe desse vantagem.

    Mas o momento de calma terminou num instante.

    Como uma sombra que enfim se revelava, a figura o agarrou com força pelas costas. Os braços fecharam ao redor dele com o máximo de seu desejo, e o toque que deveria ser romântico revelou algo profano, possessivo, devorador.

    Os dedos dela percorreram seu corpo sem hesitação, arrancando com brutalidade partes de sua roupa, como se tentasse desfazer sua identidade, como se quisesse apagá-lo e substituir tudo com algo “impuro”.

    Não era desejo. Era domínio. Controle sobre algo que não deveria ser controlado.

    Mas o príncipe não era tão frágil a esse ponto, ou submisso para que ela pudesse simplesmente o devorar.

    Com um único pensamento, como se já estivesse preparado para aquilo, ele ativou a linha subespacial que cortaria e dividiria o mundo para o afastar daquela vontade. Um brilho sem cor e contínuo irrompeu o espaço, expandindo-se em todas as direções. Uma barreira etérea e inquebrável, o branco.

    Impacto imediato.

    Night, que antes o agarrava com força, foi repelida como se estivesse colidindo com a própria essência do universo. Sem som, sem barulho.

    Mas o ar estremeceu.

    O garoto se defendeu no momento perfeito e, independente se atordoada, a demônio cerrou seus olhos enquanto a poeira se misturava na luz como cinzas suspensas.

    Kevyn virou com calma, os olhos duros como obsidiana, observando-a de pé. Por um momento, ela ofegou com um suspiro rasgado, atordoada pela rejeição em uma mistura de tristeza, raiva e falta de compreensão.

    — Night, não é hora dessas coisas! O óleo pode espirrar na gente! — reclamou e franziu a testa.

    Silêncio.

    Por um instante, tudo pareceu paralisado.

    A tensão no ar era sufocante, assim como a calmaria antes da tempestade, assim como o tempo parado antes da sua volta brusca, assim como cair do céu e parar em um inferno sem motivações a sós.

    E então, com suas mãos nuas, desprovidas da pureza, encarregadas de trazer a morte, atravessou o entrelaço infinito, desfazendo os fragmentos de energia que se dissiparam no ar.

    Antes que Kevyn pudesse reagir, sentiu as mãos dela em volta de seu corpo. Gélidas, intensas, sedentas. Em um só movimento, ela o ergueu como se não tivesse peso. Furiosa, ela ficou cega de si mesma.

    A parede rapidamente recebeu um corpo contra si, estrondo à parte, a casa inteira tremeu, o ar escapou de seus pulmões.

    A dor se espalhou em ondas, mas Kevyn sabia o que era aquilo. Já presenciou isso, conhecia ela — não bem, mas o bastante para saber que era de sua natureza hostil.

    Ele cambaleou, mas agiu rápido. Em uma precisão cirúrgica e instinto de sobrevivência disparado, torceu o braço dela contra o próprio, aproveitando a força do movimento para desestabilizá-la.

    Em seguida, girou o corpo e aplicou um chute firme na lateral de seu abdômen, com força o suficiente para arremessá-la.

    A demônio então voou pelo cômodo, colidindo violentamente contra o sofá. O móvel derrapou pelo assoalho, rangendo alto, enquanto os pés dela se arrastavam pela madeira como se fossem lâminas.

    O impacto fez, outra vez, a casa tremer; a tensão no ar se partiu como vidro rachando, quebrando qualquer noção existente ou amor inexistente.

    Ela permaneceu ali, meio ajoelhada, meio apoiada, encarando-o. Os olhos arregalados como os de um animal pronto para atacar, preparada para voltar e tentar de novo. Seus dentes cerrados se contorciam num semblante de ainda mais raiva.

    Suas mãos apertaram o tecido do sofá até quase rasgá-lo. Havia uma selvageria muito além do comum que percorria por todo o seu corpo. Um desequilíbrio palpável.

    Kevyn, ofegante, com o corpo latejando de dor, manteve-se de pé. Sabia que aquela luta já havia acabado. E ali, entre os dois, pairava o som do nada.

    Um silêncio mais brutal que qualquer ataque.

    Porque os dois sabiam: aquilo não havia acabado.

    — Você tá o dia inteiro tentando isso, o que aconte-

    Interrompido.

    — Calado! Se você quer tanto ela, por que não foi atrás dela sozinho?!

    Entendendo a situação, o príncipe suspirou e ergueu a cabeça. — E por acaso você não foi verificar?

    — Tolo, é óbvio que eu fui! Mas… — desviou o olhar.

    Cruzando seus braços, Kevyn respondeu: — Eu não preciso dizer nada, você sabe com quem eu tô mais preocupado.

    — Preocupado… claro… e o que vai fazer se eu não falar?

    Cerrando seus olhos, o garoto ergueu seu queixo um pouco mais. — Eu não preciso que você me ajude. Se prefere assim, eu mesmo vou atrás de ajudar.

    Passo por passo, Night se aproximou enquanto dizia: — Ajudar, ajudar… ajudar. — De cabeça baixa, quase como se tivesse teleportado, ela avançou e agarrou-o pelo pescoço, jogando-o novamente contra a parede.

    Devido ao ódio em seu olhar, aquele ciúme tão coordenado virou destruição. Suas pupilas de caveiras se retraíram como pontilhados.

    Difundindo sua raiva em partes, prendeu-o com as duas mãos para, enfim, continuar:

    — De novo, de novo e de novo. Se você quer ir atrás da patética abusada pelo pai, vá, não me importo. Você vem mentindo para mim. Quero saber se realmente vai continuar. Por acaso não consegue ver o quão preocupada estou? Eu não quero que você morra indo atrás de alguém, eu não quero que você se dedique a ninguém além de mim, então por quê? Por que iria? Por que não consegue deixar de ser um idiota? Idiota, é tudo que você é, tolo. Olhe para si, sua máscara imunda, não consegue ser você mesmo? Está quebrado? Eu estou aqui, então vá, diga para mim o que é, quem é? Agora não adianta levantar o queixo, né? Vai, Kevyn! Diz pra mim! Você realmente se importa?! Acha que vai se esconder para sempre?! Eu vi suas memórias, eles vão vir atrás da gente! Quanto mais você tenta, mais fraco parece! Em breve, um demônio vai vir, a escuridão vai vir, nós não estamos brincando de casinha para você ficar tão triste! A gente tá se relacionando, então por que ainda mente para mim?! Você virou um monstro que só sabe matar?! Por que não sossega um pouco?… comigo…

    Sem reação, Kevyn apenas arregalou os olhos, o ar lhe escapou como se o próprio mundo houvesse se estreitado em torno de seu pescoço.

    A força dos dedos dela era avassaladora. Entretanto, seu corpo não se debateu, por mais que não conseguisse respirar.

    O sangue pulsava em sua cabeça, não era necessário respirar, mas batia como os tambores da guerra.

    O som do mundo foi abafado, como se ele estivesse submerso em silêncio, afundando e afundando… afundado em medo, dor… e lembranças.

    Sua máscara quebrou, assim como da primeira vez.

    Mais uma vez, ela havia quebrado aquilo que ele não admitia carregar. Uma lágrima, do início, a dissolução. Ela rolou lentamente.

    Depois, outra, assim como uma chuva a se formar. Então, uma tromba-d’água decaiu. Com apenas um toque, a pressão já não suportável o fez ceder. Ela havia o feito chorar.

    De novo.

    Fez aquilo que ninguém mais conseguiria: arrancar dele o que nele ele próprio sabia onde escondia. Um soluço rasgou sua garganta, sufocado pelo aperto, que, mesmo que não o desmaiasse, era como só mais um motivo de querer que acontecesse.

    A dor física se misturava com um novo colapso emocional; e a brutalidade não estava apenas nos dedos que o sufocavam, mas no silêncio dela, na ausência de sua clemência. Somente um empecilho? De tudo que ela disse, ele era somente um empecilho?! Repetições, ciclos, ressurreições cíclicas, ele não conseguiu quebrar.

    Ele ainda era somente uma criança. Frágil no seu querer, inocente em seu viver e puro, não de corpo, mas de coração.

    Batalhas, perdas, monstros… ali, ainda que crescido, mentalmente adulto, levado pelo falso destino que carregava, Kevyn era apenas um garoto tentando se manter de pé num mundo que o esmagou, tirou e despedaçou por dentro e por fora. Somente um gesto de compreensão se é necessário. Ele apenas queria ser salvo ou acolhido…

    Mas ninguém poderia isso.

    Nem mesmo a pessoa a quem ele deu o mundo.

    — E-eu… fiz tudo que podia por você… então por que precisa ser tão cruel?! — gritou, sua voz falhou, ele não queria conseguir falar, seu corpo não queria lutar. — Você não tá me dando o que eu quero! Eu não quero sexo! Eu só queria que prestasse atenção! Eu não tô bem, a mamãe morreu e eu não tenho mais ninguém além de você! E a Aya… entende? Não?! Eu não quero que use meu corpo! Eu quero que me abrace, não me engula!

    Arregalando seus olhos, a demônio lacrimejou, então abaixou sua cabeça, já que não conseguia olhá-lo nos olhos. Fraca, soltou-o, já que não poderia mais.

    Ainda sem ar, já que não conseguia respirar, o príncipe continuou enquanto engasgava com o próprio choro, encolhido no chão para se proteger, de quem mais ama, mais uma vez:

    — No final… eu sou só um objeto que te dá tudo, não sou? Olhe em volta de… você, Night, eu derramei meu sangue para dar uma arma capaz de anular seu maior problema…

    Em prantos, Night deu um passo atrás, com cachoeiras em seus olhos. Sem o que dizer, ela percebeu o que fez, o que tentou.

    A demônio se tornou justamente o que mais repudiou e fez exatamente o que mais temia. Aquele sentimento nojento pelas suas mãos, impura, pútrida… ela era ruim.

    “Não, quê?! Como assim você está chorando? Por que está chorando? Por que está chorando? Me desculpa!”, ela deu um passo à frente, mas congelou. Ela não era capaz de se aproximar, era repugnante demais para isso. “Te ver chorar está me matando! De novo não! Eu fiz de novo, não é?…”

    Dando um passo atrás, ela não aguentou mais olhá-lo sequer em sua frente. Tomada de remorso e culpa, correu, pegou seu presente e fugiu pela porta.

    Vendo-a ir, algo morreu no príncipe. Não era sua inocência, não era sua pureza. Como uma lótus, permaneceu, mas sua alma manchada corroeu. Mesmo que não fosse, sentia que aquilo era culpa dela.

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