Prólogo: A Câmara

O OFEGAR ERA FORTE COMO O DE UM TOURO CANSADO.
Corria e Corria.
Debatia-se contra cada tronco de árvore. Entre cada mudança de direção, uma olhada para trás, como quem quisesse confirmar a posição de seu perseguidor. O solo úmido da mata contrastava com pedras lisas que faziam de seus passos apressados escorregadios. Aquele sentimento; aquela coisa que pesava no seu peito.
Agora, ele era a presa.
As sombras se contorciam entre as árvores e a vegetação morta se quebrava com cada pisada, denunciando que o Errante não havia deixado a caçada ainda. Medo? Era mesmo o que estava sentindo? Alguém que estava em sua mão… Não importava mais, agora era tudo uma mera questão de tempo.
Em algum lugar por ali, a Câmara se escondia.
Era tudo o que ele procurava. Se a lenda fosse real, um poder incomparável, colossal, estaria em suas mãos.
O homem via pouco; seus cabelos ruivos atrapalhavam seus olhos. O corte fundo em sua anca esquerda torturava sua mobilidade, deixando para trás um rastro rubro enegrecido para aquele que o caçava. O homem orou mais uma vez entre dentes.
Mesmo assim, ele avançava.
O ar ficava cada vez mais pesado e o coração palpitava, trespassando as batidas que mantinham o corpo de pé e em frente. Sua mente o pregava peças a essa altura.
Vultos tremulavam nos cantos de sua vista; assobios o chamavam ainda mais para as entranhas da floresta. A sensação de que seria pego a qualquer momento se tornou insuportável.
Uma boca negra se revelou; um buraco entre as folhas mortas e raízes. Mais do que isso; uma ferida aberta que progredia muitos e muitos metros a fundo, revelando apenas penumbra no que seria seu final. Um desfiladeiro aberto no meio da mata.
É isso, Pai… eu vou morrer aqui.
Uma puxada forte o arrastou para trás, pelos cabelos longos. Seu corpo se revirou.
O Errante.
Cabelos negros presos, olhos verdes de predador. A espada, cravou em uma das pernas do homem, entre o joelho e a virilha. O homem urrou mais uma vez, dessa vez, humilhado e derrotado.
— Olhe só para você… — A voz do Errante era calma, mas levava prazer em cada palavra. — Rastejando como um verme.
— Um dia você nos trairia, sempre soube disso. — Com seus ferimentos, se arrastava para longe, deixando um lastro escuro de sangue. — Devia ter me preparado… melhor.
Enquanto rastejava, o Errante caminhava vagarosamente ao lado do moribundo. As forças do homem se esgotavam.
Suas feridas abertas se misturavam agora com musgo do solo fértil de relva e raízes. As unhas de suas mãos quebravam com a força que fazia, quase animal, instintiva, de uma presa que se debate na boca de seu assassino.
Acabou sua pequena trilha; jazia à beira do penhasco.
— A fúria do meu pai irá te consumir, Kyo — dizia o moribundo, entre arfadas de ar — Pode me matar aqui, mas… Eu sou o único que pode — Uma pisada no rosto o interrompeu.
— Você não cala a boca nem na hora de morrer, porra. — Kyo embainhou sua lâmina. — Vai morrer hoje, mas não antes de me responder. — Abaixou-se ao lado da cabeça do homem, que o olhou oscilante. — Não fui eu o traidor. Diga, Sahayaka: por que tentou me matar?
O homem jogou seus olhos longe, para o céu do crepúsculo. Pela última vez, veria o rosa e o laranja dançarem entre as nuvens. Perante seu carrasco, nada mais tinha a temer.
De súbito, encarou o fundo da alma de Kyo.
— Somos peões num tabu-
Em um só movimento, o Errante agarrou a cabeça de Sahayaka, num ato de furor. As duas mãos, uma em cada lado da cabeça. De uma vez, os polegares entraram fundo nos olhos do moribundo, num violento movimento de gancho.
Sahayaka se contorceu como um inseto, incapaz. A última injeção de vida pelejara para o tirar das mãos de Kyo, que agora invadia, cada vez mais fundo, seus dedos nas órbitas.
A feição do Errante era odiosa. Cerrou ainda mais os dentes enquanto o homem urrava com dor lancinante, martirizado por cada gota de sangue que tingia os dedos de Kyo.
Soltou.
Sahayaka ainda se debatia, espasmos leves e traumáticos. Kyo se levantou, entre um e outro suspiro. Jogou-se de canto, mas sem tirar os olhos do homem que acabara de cegar.
Kyo não acreditou.
Sahayaka voltou a se mover diante seus olhos. O corpo banhado em sangue rastejava, mas destinado a ser engolido pelo imenso rasgo na terra. Talvez um último ato para que seu corpo fosse perdido para sempre.
Para Kyo, aquilo não fazia a menor diferença. A queda o mataria de vez, com certeza. O Errante apenas o observou, enquanto os últimos momentos daquele corpo pareciam querer terminar seu trabalho.
Ninguém viria atrás dos restos daquele escravo. Era um coitado. Um servo leal, que chamava seu próprio opressor de Pai. O corpo despencou desfiladeiro abaixo, como um saco de verduras.
Patético.
Kyo o observou sumir na penumbra. Uma morte degradante para alguém que outrora experimentara tanto renome. No fundo, Kyo vivia por isso. Era outro coitado.
Um zumbido azucrinante rondava o corpo inerte.
Cheiro de sangue, de putrefação. Fraturas expostas, hematomas penosos. Todavia, uma respiração lenta, compassada. Seu peito levantava e abaixava, ganhando um pouco mais de ritmo, do nada.
O solo ferroso e gelado deixava sua pele insensível enquanto seguia ali, deitado, coberto de uma mistura de terra, areia e sangue.
Sahayaka sobreviveu. Um milagre; um puro milagre. Embora tudo o que sofrera horas antes, sua visão não foi totalmente tirada; conseguia diferenciar borrões mais escuros dos mais claros. Mesmo assim, não tinha forças para se levantar.
Revirou no escuro torpe do fundo do abismo, entre gemidos.
Um pequeno feixe de luz o abençoava do alto; talvez já fosse de manhã.
Pai… foi você? Você me salvou?
Algo ressoou em sua mente. Talvez fosse apenas um bestial instinto de sobrevivência; uma urgência para continuar rastejando naquela terra dura e pedregosa.
Havia uma trilha para se arrastar, que era abraçada pelo breu. Sahayaka encarou como um sinal, um sinal que parecia sussurrar nos seus ouvidos. Seria aquilo apenas o desejo básico de todo homem de não se entregar para a morte?
Sahayaka sempre pensou não temer o fim e, se aquele era o seu desfecho, que assim fosse. Não havia orgulho em seu coração, não havia um sonho nobre de morrer como herói — não existem heróis no mundo real.
Atendeu ao pedido do escuro.
Rastejava devagar, chiando quando pequeninas rochas tentavam invadir seus machucados ou quando puniam áreas sensíveis de seu corpo flagelado.
Arrastou-se até a entrada, que se revelou uma passagem; conseguiu sentir pelo tato que o chão mudou. Aquele solo arenoso deu lugar à uma pedra lisa, que parecia até mesmo desenhar gravuras e ornamentos. Sahayaka encheu seu âmago de excitação repentina.
O ar mudou; pesado e litúrgico. Podia sentir um cheiro antigo, ancestral. Aquilo o lembrava seu Pai, o lembrava a presença de um Asura; mas diferente. Não havia concubinas ou a avareza traduzida em tesouros de ouro e joias mil, mas sim uma solidão inexplicável.
No lugar da fortuna exacerbada que um Asura ostentaria, ali se hasteavam fileiras e fileiras de soldados, armados de lanças e intrincadas catafractas, oxidadas pelo tempo.
Esses guerreiros não eram de carne e osso, mas sim de rocha pura, assim como a lenda dizia. As alas de combatentes deixavam claro um caminho até degraus que, por sua vez, levavam a um nível superior.
Sahayaka grunhiu animado.
Seu rastejar se apressou, pois tinha certeza de onde estava. Mesmo se debatendo com as estátuas pelo caminho, sem conseguir ver, urrava em êxtase, como um viciado que satisfaz sua obsessão.
Subiu, vagaroso, cada degrau, sem reclamar da dor aguda; nada mais daquilo importava.
Ofegante, estava de frente com a sagrada tumba.
Ali, a sua frente, estava o fim dos tempos. Leu com os dedos encarnados em sangue seco. Uma gargalhada vil, espontânea, ecoou sozinha e soberana na câmara perdida.
Este era o Mausoléu do Pralaya.
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