Capítulo 2: Matsushio Kenshimaru

— BALSA DOIS, EMBARQUE! — BERRAVA o trabalhador do porto.
Os portuários tinham de ser alardosos mesmo; fazia parte da profissão. Ainda mais na enseada de Junaga, onde balsas gigantescas partiam e atracavam nas docas, sempre fervilhando de pessoas com diferentes razões para estar ali.
Junaga era uma imensa ínsula, planando entre as nuvens, sustentando uma cidade pomposa de templos, palácios e bairros nobres de famílias aliadas à dinastia dos Avani, que controlava a ilha.
Os marginalizados — operários e uma porção de mendigos e refugiados — se instalaram nos arredores, por vezes nas colinas próximas ou à beira do precipício infinito, além das muralhas da cidade.
Por mais que o governo dos Avani tentasse negar, várias operações de desocupação limpavam as pessoas indesejadas como quem varre sujeira para fora de casa. Aquelas vidas valem menos mesmo; não podiam se defender. Ora, a presença daqueles baixo-sangue barateava o valor dos terrenos; era justo que fossem postos para fora dali.
Junaga tinha pontes que a ligavam com ilhas menores, os leixões, onde os mais poderosos podiam construir seus lares, isolando-se assim do resto do povo.
O ar do lugar, que um dia foi de um olimpo de luxo e esplendor, agora gritava como um paraíso decadente. Os prédios ainda carregavam ornamentos finamente intrincados, telhados curvos e estatuetas de animais imponentes.
As cores eram vivas e faustosas, algumas até nem tão bonitas, mas a matéria-prima da tinta fora obtida em um local inóspito qualquer e não custaria barato para cobrir uma área grande e rebuscada.
Tudo na alta Junaga era um jogo de poder, de dinheiro, de mostrar quem tinha mais capacidade de gastar sem ir à falência. Um verdadeiro tabuleiro de egocentrismo, mesquinhez e vaidade.
Mas não importa o quanto os ricos odeiam os pobres, ainda precisavam do porto e de seus operários. Ali, a abundância era do cheiro de madeira e de gente; gente de tudo quanto é lugar.
As cordas que atracavam as balsas faziam um estalo potente e imponente com a tensão exercida sobre elas no cais. Kenshimaru já estava mais do que acostumado com toda aquela rotina.
Não era um trabalhador portuário ou um homem de negócios que chegava à Junaga para apertar mãos de burgueses. Era, na verdade, um diligente das sombras; aquele que calcula cada passo de seu andar.
Usava uma faixa anil na testa, que repartia mechas de seu curto cabelo da cor da noite. Seu manto apresentava várias camadas azuis por baixo de um japamala e uma faixa branca que amarrava na cintura. Por baixo do manto azul, tecidos amarronzados.
Enganava-se quem pensasse que Kenshimaru peregrinava por aí sozinho; trazia, para todos os lugares, suas espadas — duas, uma servia cada mão em combate.
Seus olhos corriam rápido pela multidão, sempre tentando identificar os mãos-leves que furtavam desavisados. Na maioria das vezes eram jovens, que perambulavam ali como se ninguém os visse, escolhendo a vítima mais frágil para se aproveitar.
De certo vinham das colinas, fora das muralhas. Kenshimaru não os detestava; quem escolheria correr o risco de ser linchado publicamente do que ter um labor digno? Tudo tinha um porquê.
Chegava até a soltar um riso leve quando um burguês tinha seus adereços larapiados; a cena daqueles cavalheiros e madames esperneando causava certa satisfação. Às vezes, os guarda-costas dos ricaços pegavam os garotos e os enchiam de bordoadas até que a multidão interviesse na situação.
O menino não devia ter mais de quinze anos. O magricela tinha pele bronzeada, que causaria repulsa nas senhoritas de alta classe; afinal de contas, ficar próximo de quem trabalha debaixo de sol era… inapropriado.
— Vamos! Saiam do caminho, saiam do caminho! — ordenavam os guardas.
Uma mulher, trajada de rouparias longas e coloridas de cara seda era escoltada por dois ou três brutamontes. Desembarcou de uma balsa de alto padrão, daquelas que oferecem mordomias mil durante a viagem, poucos minutos antes. Seus homens abriam caminho na massa como se todos tivessem o dever de saber quem era.
Kenshimaru observou tudo atento, pois percebera o garoto se aproximando por trás, ligeiro, como um gato-do-mato. Olhos arregalados em hiperfoco; agachado entre as pernas do povo.
Pegou.
Em uma fração de segundo, tomou o colar da madame, que reluziu dourado na luz do sol. Algumas contas saíram voando, mas ele conseguiu se misturar na multidão.
Dois dos brucutus que a moça levava a tiraram dali, semelhando mais nervosos em perder seu pagamento do que com a segurança da mulher.
Kenshimaru nunca soube se o moleque foi pego ou se conseguiu escapar; aquela cena era banal. Acontecia sempre. A julgar pelo padrão da senhora, o menino perderia os dedos de uma das mãos se fosse capturado.
— Balsa três, balsa três; embarque! — Enfim, seu transporte chegou.
Sua balsa era das populares, estaria lotada. Isso não seria problema, já que acreditava que a maioria desceria em Sila — uma outra metrópole na mão dos Avani. O destino do espadachim era além, num local onde poucos iriam querer ir.
Era normal que as pessoas se espremessem, querendo uma perpassar a outra, para pegar os melhores assentos lá dentro. Todavia, sempre evitavam Kenshimaru; suas lâminas eram imponentes demais, mesmo disfarçadas nas bainhas.
Não se importava de acabar sentado na parte externa, suscetível às intempéries e mal tempo, contanto que tivesse uma viagem digna; além do mais, não era como se tivesse dinheiro o suficiente para pagar por algo melhor.
Seus contratos normalmente não pagavam tanto assim. Já fazia algum tempo que era um ronin. Era dono de uma vida mais confortável quando servia seu senhor, lá em Hinokawa.
Isso era passado agora.
Seus pensamentos foram interrompidos por um puxão em seu saiote, vindo de baixo. Uma garotinha, roupas gastas e olhos famintos. Ela balbuciou alguma coisa que ele não conseguiu entender, devia ser por conta do sotaque. Kenshimaru falava pouco da língua deles e o sotaque periférico, então, era ainda mais incompreensível.
As meninas adotavam uma tática diferente dos garotos. Enquanto eles se arriscavam, elas iam pedindo até as pessoas; por vezes, se davam bem. Um ou outro aristocrata tinha alguma consciência social.
No fundo, Kenshimaru sabia que os pais daquela criança estavam observando em algum lugar, intimando-a a enganar e se aproveitar dos estrangeiros. O dinheiro que desse cairia nas mãos de um homem qualquer.
Mesmo assim, não conseguia dizer não a uma criança com fome. Deu-lhe algumas moedas; apenas o suficiente para que comprasse algo nas feiras fora das muralhas. Não importa o que dissesse, ela não entenderia, portanto fez um sinal para que fosse.
Que lugar incrível para se viver.
Não demorou para a vez dele chegar. O corpulento balseiro tinha pés-de-galinha e calos nas mãos que denunciavam anos e anos na profissão. Seus olhos maliciosos rastreavam chances de se aproveitar de desavisados. Uns contos a mais podem pagar uma boa bebida na próxima parada.
— Espere aí — disse o cobrador, se colocando entre Kenshimaru e a rampa de acesso — Regra nova. Se vai embarcar armado, precisa pagar uma taxa um pouquinho mais alta. — Seu sotaque era carregado, mas não o suficiente para que não fosse entendido.
— É mesmo?
— Pois é, cidadão. Veja bem, as dinastias estão cobrando um novo imposto e eu tenho toda uma tripulação para sustentar. Sabe como é, né?
Kenshimaru não mudou de expressão. Podia jurar que era a milésima vez que tentavam tirar seu dinheiro dessa forma.
— Eu sei.
O espadachim pagou apenas as dezessete moedas previstas. Nada mais, nada menos. Então avançou, ignorando a demanda do balseiro.
— Ei, amigo! — Esticou seu braço e agarrou Kenshimaru — Agora é assim; você acha que é quem para tentar se aproveitar de mim desse jeito?
Kenshimaru suspirou.
Não queria arrumar confusão como fizera outrora. Causou-lhe problemas burocráticos, como comparecer a audiências e obrigações do tipo. Poucas coisas o tiravam mais do prumo do que procedimentos vagarosos como aqueles.
Fulminou o cobrador com o olhar.
— Não sou seu amigo. — Tomou o pulso do homem em um borrão e apertou um ponto de pressão, fazendo o barqueiro perder a compostura — Pessoas como você que fazem deste lugar o lixo que é. — E soltou.
O balseiro, degradado perante seus clientes, preferiu fingir que nada havia acontecido. Kenshimaru foi até o seu lugar, sempre chamando atenção. Detestava isso, mas qualquer um que tivesse licença para vagar armado tinha de se acostumar a atrair olhares.
A vista era composta por um infinito mar de nuvens. Carregava uma fragrância nostálgica. Mil balsas, de diferentes tamanhos e tipos, chegavam e partiam.
As balsas eram movidas a balão, às vezes um único imenso, às vezes inúmeros juntos. Alguns contavam com diversos andares, outros, com apenas proa e popa. Uma parte eram militares e tantos eram de carga, trazendo iguarias de todos os cantos do mundo. Mais tantos numerosos eram de passageiros.
A regra era clara: se uma de passageiros vinha de baixo, das ilhas mais profundas — popularmente chamadas de terras baixas —, eram depenados que vieram tentar uma vida melhor em Junaga ou refugiados de um lugar qualquer.
Das terras altas, desciam emissários, diplomatas, ricos comerciantes e os próprios membros das dinastias ou famílias aliadas. Já as militares, chamadas de navios, voltavam de campanhas em senhorios mais afastados.
Homens jovens se matam nas terras baixas enquanto as realezas apertam mãos nas terras altas; era um padrão que se seguia por séculos e séculos.
A mente de Kenshimaru passava longe de se importar com coisas do mundo.
Nada de novo.
Jogava o olhar longe, nos incontáveis leixões e ilhéus flutuantes. Tinha todos os detalhes em mãos; sua mãe lhe contara todas as minúcias.
Junaga era mais um lugar onde ele não estava. Sila, Kananda e o arquipélago de Dombali; nada dele. Mas uma promessa era uma promessa — ainda mais quando se faz para a própria mãe.
Estava a meses nessa. Corriqueiramente passava pela sua cabeça se toda aquela jornada valia a pena. O esforço e dinheiro gasto era enorme. Tudo para cumprir uma promessa.
Dormir mal, comer mal — viver no limite. Até mesmo o treinamento parecia coisa do passado; Kenshimaru temia enferrujar nas habilidades com suas tão queridas espadas.
Não importava; era isso o que tinha de fazer. Era um homem de palavra.
Não servia mais a um senhor, a uma família. Não tinha mais renda ou garantias; isso tudo era coisa do passado. Vivia de trabalhos mercenários aqui e acolá, sempre aceitando serviços que o levassem a diferentes lugares, coisa que muitos mercenários mais experientes não querem se sujeitar.
Sua formação na Academia da Lótus Carmesim ajudava e muito para que os contratantes o confiassem trabalhos mais arriscados. Havia quem dissesse que os contratos mercenários manchavam a história de um ex-membro da Lótus, mas Kenshimaru não poderia se importar menos com isso.
Seu próximo trabalho era em Bergara, uma região perigosa próxima a uma tal ilha longe de tudo, chamada Vento Gentil.
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