O TEMPLO DO TIGRE DOURADO, popularmente conhecido como o Templo de Hu; um lugar sagrado que muitos chamavam de casa. 

    Monges do mundo inteiro, dignos e merecedores, poderiam encontrar as rotas místicas e perdidas para lá; apenas pisaria na ilha aquele que Hu julgasse honroso o suficiente. Esse é o único motivo dos grandes estados não terem tentado alastrar suas garras por terras como estas — jamais encontrariam o caminho.

    Jazia dentre uma mata tropical densa e cerrada, construída de pedras escuras anciãs e telhados de madeira curva, sobressaindo-se entre os gigantes angelins-vermelhos e samaumeiras. 

    A arquitetura pintava-se de vermelho, dourado e relances em verde, dividindo-se em salões e pátios. O complexo do Templo de Hu era todo interconectado por trilhas de paralelepípedos e escadarias que serpenteavam pela selva. 

    Monges vinham de longe com um único objetivo que exigiria a dedicação de uma vida inteira.

    O Caminho do Tigre

    Dominar as habilidades do Tigre leva décadas para um humano comum. O treinamento era intenso, trazendo a ilusão de dias intermináveis e hematomas incuráveis. Aquele que quisesse seguir o Caminho, deveria renunciar à sua antiga vida e entender os meandros da jornada monástica.

    Hu era o mestre dos mestres, professor daqueles que professavam. Ele, em si, não era homem ou deus, mas sim um tigre, ereto e de músculos tão densos quanto rocha por baixo da pelagem listrada. 

    Os monges comuns pouco o viam; ele mesmo não mestrava os noviços. Hu, como um tigre, só era visto quando desejava ser, caminhando como uma entidade observadora e de certa forma misteriosa pelas alas de seu templo. 

    Sua verdadeira missão era uma só: acolher aquele com as palmas marcadas. Aquele que partilhava de seu kouen. Aquele que era o seu filho espiritual. Este sim, seria herdeiro dos ensinamentos do Arhat do Tigre.

    Kiro era muito questionado, até mesmo pelos mais anciões, sobre como Hu era. Ele, ainda um menino, havia se acostumado à presença do Arhat, mas nunca perdeu o fascínio e a ponta de medo respeitoso que tinha pelo seu mestre. 

    Havia sido entregue aos monges com apenas três anos, sem memória de sua família ou terra natal. Com cinco, começara sua jornada guiada por Hu — era o garoto das palmas marcadas. Dois círculos, um em cada mão, preenchidos com duas listras verticais; o reencarnado estava ali. 

    O Deva estava ali.

    Hu nunca deu trégua a Kiro. Ao longo dos anos, desenvolveu tenacidade, rusticidade e resistência, mas sem nunca perder a elegância e o furor do predador que dança entre as sombras da selva. 

    Fruto do esforço, Kiro, com treze ou quatorze anos, estava em um nível muito além da maioria dos monges, independentemente da idade. Ele era o Deva; nada a mais do que o esperado. 

    Mais uma daquelas manhãs abafadas. O suor escorria na testa de Kiro e ardia quando invadia seus olhos. O cabo da espada de madeira era mais grosso do que suas mãos poderiam agarrar com conforto. Estava ali desde antes do sol nascer.

    — Mais rápido. — Hu caminhava lento, de patas para trás e olhos clínicos.

    Kiro investiu mais uma vez com a força que tinha; temia por decepcionar seu mestre. Seus ombros queimavam, suas panturrilhas ardiam, sua respiração era profunda. 

    E investiu mais uma vez.

    — Você só está reagindo às minhas ordens, garoto. — A boca de Hu nunca se abria na fala; suas palavras ecoavam na mente de quem ele quisesse que o ouvisse. — Só está reagindo porque sabe que não passa de madeira. Só está reagindo porque quer se livrar do dever; quer que acabe logo.

    O menino sabia o roteiro pelo qual o sermão iria. Hu tinha pouca paciência quando Kiro não se provava tenaz. Engoliu seco. Suspirou. Fixou o olhar no boneco mais uma vez e armou o golpe — mas Hu o interrompeu. 

    — Largue essa espada. Vamos treinar as Garras. — As mãos dele agradeceram, não aguentava mais as bolhas.

    Respirou ainda mais fundo. Agora, precisava de total concentração. Cada fibra de seu corpo precisaria moldar a energia, o urja, da natureza ao redor e concentrar em volta de seus punhos, misturando ao seu próprio urja nato — dessa mistura, nascia o kouen. Era algo que somente Devas poderiam fazer. 

    As Garras Flamejantes do Tigre Branco era uma técnica avançada do Caminho do Tigre, tanto que muitos monges levam décadas para mestrar — Kiro era uma criança, mas era o Deva afinal de contas. Devia estar além dos comuns.

    Hu parou ao seu lado. Kiro sentia seus músculos retorcerem e seus antebraços incendiarem. O fluxo de kouen fervia; a luz que passava no ar começou a distorcer como em um dia quente de verão. 

    Mesmo com sua natureza quase divina, era tão difícil controlar aquele kouen quanto equilibrar um monólito com uma agulha. O garoto avançou antes que aquela energia se dissipasse. Dois, três passos rápidos. 

    Nada mais do que um corte raso na madeira — não conseguiu sincronizar-se com a natureza até o final. Hu permaneceu em silêncio enquanto Kiro o fitou, buscando algum tipo de aprovação.

    — Ainda não basta.

    A pata se estendeu e, em uma fração de segundo, uma força além do kouen se concentrou ao redor do punho do Arhat, ganhando uma natureza tórrida e translúcida de tons turquesa, tremulando como chama. 

    Lâminas espectrais em forma de gancho se formaram nos vãos de seus dedos, totalizando quatro delas. Fazia aquilo com facilidade. Mesmo sabendo que Hu era uma entidade diferente de qualquer outra, Kiro custava a acreditar que seu mestre tinha tanto poder em mãos. 

    Um movimento limpo e gracioso cortou o boneco de madeira em dois, em diagonal. Quando Hu quis, o souma, a energia dos Arhats, se dispersou no ar. 

    — Não dominará essa técnica enquanto tiver dó de si mesmo, Kiro. — Sua voz era um misto de aborrecimento e inspiração. — Pare de se poupar; pare de parar. 

    Kiro tentou responder, mas sua garganta estava seca demais. Nem mesmo os insetos o circundando causavam mais irritação. 

    Hu o encarou, silencioso, vendo que o garoto beirava o limite.

    — Recomeçaremos amanhã. — Virou-lhe as costas. 

    Contudo, Hu não limitava o preparo de seu discípulo apenas na lapidação corporal. Ele conhecia a natureza e o conto do Deva; sabia que a criança precisava ser moldada, ou aquilo consumiria o destino do garoto.

    Após os quatorze anos, o último período do treinamento de Kiro começou. Hu, certa noite, o levou a uma câmara reservada; uma que Kiro havia visto pouquíssimas vezes. 

    Em um estalar de dedos, velas se acenderam em fogo cor-de-jade, revelando murais nas paredes que contavam histórias de grandes batalhas entre seres míticos, como Arhats e Asuras. No centro, via-se um círculo entalhado no chão, permeado de escritos ilegíveis que ressoavam o brilho das chamas de urja. 

    — Sente-se — Hu ordenou.

    Kiro nunca desobedeceu seu mestre. Assentou-se na posição de lótus, seguido de Hu, que fez o mesmo. 

    — Feche os olhos. Respire. — Sua fala era serena e profunda. — Olhe para dentro de si.

    Algo em seu âmago hesitava, mas Kiro confiara no Tigre. O silêncio se instaurou de maneira suave. Não se sabe quanto tempo passou ali, mas a meditação se tornava cada vez mais intensa. 

    Mais fundo e mais fundo. De repente… um pulsar. Era mais do que seu próprio coração; estava em algum lugar entre as fendas de sua carne e espírito. 

    Som de passos; passos na folhagem úmida. Bufadas bestiais no breu. Enfim, luz, fazendo formar a imagem de uma floresta enevoada. Kiro estava ali, sozinho. 

    Algo parecia o observar. Um sentimento instintivo de perigo, de estar longe de casa, tomou de assalto seu peito. Os passos se aproximavam, de todos os lados, ficando cada vez mais altos. 

    Um rugido grave chacoalhou seus ossos e então paralisou-se: um tigre colossal, que reluzia dourado, estava o encarando fundo na alma. Kiro não conseguia se mover. 

    Suas pernas travaram e não conseguia emitir qualquer som. O animal era gigante e sua pelagem semelhava incandescente, com olhos de fogo e caninos como espadas. Uma beleza fatal que Kiro nunca mais se esqueceu.

    A fera avançou. Kiro caiu para trás, atônito, enquanto tentava desesperadamente recuar. Suas pernas não respondiam direito. O tigre veio com as garras expostas, para despedaçar o menino. Kiro levantou as mãos e gritou, como se algo ou alguém pudesse o salvar. 

    As garras do tigre pararam a poucos centímetros de seu rosto. A pata, então, se afastou. A besta parecia ter perdido o interesse, se misturando à selva de penumbra conforme se retirava, de certa forma… decepcionada.

    Kiro jazia derrotado, de olhos arregalados e imóveis. 

    Piscou e estava no salão. Uma fita de luz matinal entrava por uma janela alta na parede, iluminando Hu, parado a poucos metros. 

    Kiro arfava, suado e com as vestes coladas no corpo. 

    — Enfim — dizia o Arhat — Viu o que você é.

    — Então… é isso? Tudo é por isso?

    Hu vagava em círculos, com respostas pausadas e certeza na fala.

    — Você é parte de mim, Kiro. — O Arhat se aproximou enquanto Kiro ouvia atencioso. — Você partilha de minha essência e essa criatura que encontrou dentro de sua alma, é parte de mim. Pelo resto de seus dias, estarei com você, não importa o que faça. 

    Kiro não sabia como reagir. Levaria anos para digerir o que Hu o revelou naquele dia. Palavras que ecoariam até bem depois de sua saída do Templo do Tigre Dourado. 

    Os treinos se intensificaram ainda mais dali para frente. Kiro lutava contra monges mais velhos desde mais novo, e agora o fazia contra vários de uma vez. Hu sempre assistia, analisando se o garoto conseguia utilizar bem as técnicas de maneira inteligente. 

    Seus inimigos não conseguiam o ver quando executava o Corpo Oculto, assim como se paralisavam tal qual estátuas quando travavam contato com os Olhos da Iluminação

    Ainda estava melhorando na habilidade do Passo Infinito, que tornava sua carne intangível quando atacado. Assim que mestrasse esta e as Garras Flamejantes, poderia se dizer um dominador do Caminho do Tigre. 

    Todos os dias, Hu o fazia correr quilômetros carregando peso pelas trilhas e encostas. Kiro perdeu as contas de quantas vezes meditou sob as gélidas águas da cachoeira próxima, até que perdesse a sensibilidade e desenvolvesse resistência. Todo tipo de treinamento que Hu fazia Kiro passar era voltado para o desenvolvimento de corpo e espírito. 

    Entretanto, nenhum desses desafios eram maiores do que tornar à câmara onírica. Meditava por horas, até chegar ao estado onde era transportado de novo e de novo para a selva de sombras, coberta por névoa e dominada pelo Tigre Dourado. 

    Sempre o encontrava, e sempre precisava enfrentá-lo;  sempre sem sucesso. Esse processo tomou dias, semanas, meses e, então, anos. 

    Kiro atingira a marca de dezesseis aniversários. Mais uma vez, na mata enevoada. Melhorara nas últimas vezes que pisara ali, em comparação com as primeiras. 

    Reconheceu os padrões, brigou consigo mesmo; contra seus próprios instintos. Quando a fera avançou, Kiro não recuou. Firmou os pés e cerrou os punhos. 

    Estava farto de temer. 

    O som ecoou pela floresta e o Tigre Dourado parou. Os olhos fendidos de fogo brilharam ainda mais fortes. Inclinou sua gigantesca cabeça em sinal de respeito. 

    Ele não o atacaria mais. Kiro era agora um só com o Tigre Dourado.

    Hu sorriu satisfeito, finalmente.


    — Sonhando acordado de novo? — notou Yuna, quebrando o fluxo de pensamento de Kiro.

    Em suas mãos, uma das foices dela e uma pedra de amolar. Perdeu-se em suas memórias novamente. O reflexo das diminutas labaredas da fogueira reluziam no aço. 

    Yuna, a poucos passos, costurava algum tecido avariado. Kiro voltou a amolar a arma de sua amada, com movimentos lentos e compassados com o estalar da brasa.

    — Está distraído — comentava ela, sem desviar os olhos de sua costura. — Anda estranho nos últimos tempos, meu bem.

    — Talvez sim. — Ele piscava forte, como quem quer voltar à realidade. — Às vezes, vozes voltam a minha cabeça.

    — Do templo? — Ela sabia a resposta.

    Kiro apenas assentiu, mas sempre evitava prolongar a conversa quando se tratava desse assunto. Já haviam se passado oito anos desde que encarou o Tigre Dourado de frente e deixou o templo. Desde então, muitas coisas mudaram. 

    Yuna foi a única pessoa a quem Kiro confiou essa verdade; era a única que já tinha visto suas palmas marcadas. Mais ninguém. 

    Yuna era tudo o que ele tinha.

    Embora tivesse uma compreensiva curiosidade de como era a vida dele naquele lugar e como era a rotina com um Arhat, Yuna sempre respeitava o silêncio de seu homem. 

    Machucava-a mais vê-lo remoer algo dentro de si, tentando encontrar palavras, do que seguir sem saber de todos os detalhes. Conhecia a natureza dele; sabia que se relacionara com o Deva do Tigre. 

    Kiro era tudo que ela tinha.

    O silêncio acolhedor seguiu alguns minutos. Um estalo súbito, talvez um pouco distante dali, mas suficiente para os ouvidos do gavião. 

    Logo, Kiro apagou o pequeno rubor que restava da fogueira. Yuna posicionou as mãos na posição do mudra do gavião. 

    Visão Absoluta

    Agora, seus olhos se lançavam trezentos e sessenta graus e em um raio suficiente para pegar quem ousara emboscar os emboscadores. Enquanto ela rastreava, Kiro guardou os equipamentos e os camuflou com restos de folhagem e galhos. 

    Agora, restava o escuro e o ritmar da selva.

    — Ainda estão nos seguindo — ela sussurrou — São os mesmos dos últimos dias.

    O instinto rugiu dentro de Kiro. Aquela velha excitação com uma caçada iminente. 

    — Quantos?

    — Dois, talvez três. — Concentrou um pouco mais sua visão. — Nunca os vi antes, pelo menos não nos livros de recompensas.

    Silêncio novamente. 

    Não se ouvia nada além do ruído do vento e das cigarras. De músculos tensos, prontos para o abate, e olhos faiscantes, Kiro sorriu:

    — Vamos dar a eles o que querem… o Tigre Alado de verdade.

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