Capítulo 4: Contrato Sujo

BERGARA ERA UMA TERRA BAIXA nas mãos dos Avani, mesmo que nenhum membro da família real tivesse alguma vez pisado lá.
Talvez oitocentos ou setecentos metros abaixo de Sila, abrigava uma população média, considerando que são terras baixas, dispersa por aldeias além da própria cidade de Bergara, que deitava-se na ilha principal.
Ser uma terra baixa não implica apenas em estar mais longe do sol e perto do Abismo, mas também em ser a morada de gente de sangue barato; ao menos, serviria para bancar os caprichos da nobreza com a arrecadação de impostos.
Era notável os reflexos da exploração dos poderosos nos trejeitos da cidade. Material barato, arquitetura suja e surrada; um lugar onde as pessoas têm muito mais a se preocupar do que estética ou vaidade.
Uma das coisas a se preocupar era o Dente de Ferro.
O crime organizado era o verdadeiro poder local, firmando acordos de cooperação com o próprio senhorio das ilhas — um nobre de família aliada aos Avani a quem foi confiada a governança daquele território.
A dinastia sabia que o chefe da família Havi seria apenas um satélite, tendo a difícil missão de segurar as rédeas da facção e assegurar lucros à dinastia; na prática, era submisso aos bandidos.
O Dente de Ferro tinha braços em todos os segmentos da sociedade: comércio, porto, agricultura e tráfico de escravos. Era uma facção que se irradiava pelas terras baixas pertencentes aos Avani como uma praga.
O pequeno galpão cheirava à madeira velha e umidade, escondido perto de uma enseada pouco frequentada cercada de mata. Ali funcionava um ponto de contrabandistas que apenas quem estava dentro do jogo poderia conhecer.
Armamentos, mercadorias mil e até mesmo animais raros eram encaixotados e estocados, extraviados para longe dos olhos dos cobradores de impostos reais. Ainda assim, quem fugia das garras do governo não conseguiria fugir dos dentes de ferro.
Para cada contrabando que não fosse taxado pela dinastia, era preciso repassar o tributo para o Dente de Ferro; era assim que funcionava. Alguns diziam até mesmo que era um acordo firmado entre os próprios criminosos e governantes.
Não havia guardas e nem burocracia. Apenas homens gananciosos que arrastavam caixotes para dentro do galpão, tirando-os de uma carroça coberta por lona.
— Três caixas de especiarias de Sila e mais dois fardos de chá negro, lá de Kananda — murmurou um deles, que anotava atento em uma tabuinha improvisada. — Vai nos dar uma boa grana.
— Uma boa grana… quase metade vai para os bolsos deles — riu o outro, depois cuspiu no chão.
— Trinta por cento ainda é melhor do que se arriscar nas terras mais altas — resmungava o da tabuinha, que ostentava cabelos grisalhos e um cavanhaque mal cuidado. — Prefiro isto a custear os luxos daquela nobreza bunda-branca.
— Você tem razão, você tem razão — bufou cansado depois de uma remessa pesada de garrafas de azeite.
Entre eles, havia um mais jovem. Franziu o cenho, claramente aborrecido pelo serviço que acabara de realizar. Operar com aquela margem de lucro, mesmo que ilegalmente, não fazia sentido; odiava sentir que estava sendo passado para trás.
— E se… — O jovem se aproximou deles, secando o suor da testa com um pedaço de estopa. — Apenas não avisarmos ninguém? Ou, sei lá, não registrarmos todo o valor? Assim ficamos com mais dinheiro.
Os outros dois se entreolharam. O mais velho, parou de anotar em sua tabuinha, encarando o moleque com desprezo e uma quase pena no olhar.
— Você tem amor à sua vida? Quer morrer, porra?
O garoto bufou frustrado. Era isso ou trabalhar nas minas de carvão para enriquecer os aristocratas. Não retrucou, pois sabia que o Dente de Ferro tinha olhos em todos os lugares.
Quem não pagava os tributos corretamente para operar nas regiões onde a facção dominava sofria graves revéses. Não sobraria nenhum dos três para contar história.
Como Kenshimaru previu, quase ninguém que saiu de Junaga seguiu até Bergara. De fato, desceram quase todos em Sila. E, de Sila para Bergara, juntou-se a ele um amigo que fez nessa nova vida.
Rohan era um mercenário mais experiente. Diferente de Kenshimaru, carregava apenas uma lâmina, a qual nomeou Querida. Sua pele era escura como ébano e seus cabelos, crespos e volumosos. Era um homem vaidoso, ornando brincos longos e pulseiras de contas marrons, que o mesmo dizia o conectar com energias divinas.
Acostumaram-se a trabalhar juntos e dividir a recompensa. Essa aliança era um ótimo exemplo de mutualismo, já que contratos maiores exigiam feitos maiores, além do que, sendo Rohan nativo de terras onde os Avani imperavam, poderia guiá-lo de maneira exemplar.
Com a experiência de Rohan, Kenshimaru conseguia dar passos mais confiantes em busca de seu objetivo maior: cumprir a promessa que fez à sua mãe.
Mais um lugar novo a ser explorado. Kenshimaru estava longe de casa, de Hinokawa, e, lá no fundo, duvidava que o encontraria ali, em uma terra baixa qualquer perdida nas profundezas.
Mesmo assim, persistiu. Vagou entre as ruelas de Bergara, desviando de vendedores de rua, prostitutas que puxavam homens para dentro dos bordéis e dos olhares que fulminavam um imigrante armado.
O espadachim, por si só, não era uma presença intimidadora sem sua espada — talvez um metro e sessenta, ou sessenta e cinco —, por isso, andava sempre a portando. Cobriu suas vestes azuis com uma capa parda, observando cada um, se infiltrando em cada taverna.
Nada ainda.
Voltou para a estalagem que alugaram quando a noite chegou. Rohan estava ocupado, sentado em uma das camas e lendo um livro qualquer. Apenas seguiu Kenshimaru com os olhos, sabendo que, mais uma vez, voltou de sua caçada sem caça.
— Bergara é uma merda de lugar, não é? — Rohan reclamou, voltando seu olhar à leitura.
— Todos são. — Kenshimaru carregava desilusão na voz. — Essas ilhas são todas iguais.
Rohan soltou um riso espontâneo em concordância.
— Pior que são, camarada. — Depois de alguns segundos de silêncio, seu tom de voz mudou. — E aí, não encontrou nada?
Kenshimaru suspirou e respirou fundo, devagar. Quantas vezes já teve que responder essa pergunta com a mesma resposta…
— Nada. Nem um mísero sinal dele.
Ele nunca contou a Rohan o que era essa tal missão que seguia fervorosamente, mas foi capaz de deduzir ao longo do tempo.
Os dois eram bons amigos, mas Kenshimaru falava pouco de seu passado; principalmente de sua família. Rohan, por vezes, sentia que havia um grande segredo por trás das motivações de seu parceiro, mas nunca conseguia as respostas que queria.
Rohan fechou seu livro e mudou de assunto:
— Bom, quando vamos botar a mão na massa? Temos mais dois dias para o prazo fechar.
— Podemos partir na alvorada. Nosso alvo não trabalha de madrugada. — Kenshimaru arrumava suas coisas para o repouso.
— Pode ser; será um serviço rápido.
E era mesmo para ser rápido.
Vítimas rancorosas dos agregados do Dente de Ferro que pudessem pagar por vingança ou para reaver a mercadoria normalmente o faziam. Desta vez, contatos de dentro da própria facção haviam contratado os serviços de Kenshimaru e Rohan; era o melhor dos mundos.
Mercenários estrangeiros e de fora do mundo do crime que não poderiam ser rastreados ou não tomariam partido dentro da colcha de retalhos formada pelos grupos operantes no submundo.
Uma encomenda misteriosa, uma morte acidental que acometeria ladrões de balsas mercantis; verdadeiros piratas de baixa estirpe.
Apesar dos dias em Bergara serem quentes na maior parte do ano, as manhãs eram sempre geladas e de brisas sorrateiras. Entre a paisagem fora da cidade principal, era possível admirar uma rica savana de tons palhosos e árvores esparsas.
Em depressões na planície, se enfiaram bosques que ostentavam mata mais fechada. Era por ali que deveriam se esgueirar, conforme as coordenadas que foram dadas pelo contratante.
Passos calculados, um após o outro. Kenshimaru ia na frente, com a faixa anil na cabeça e lâminas prontas para serem sacadas. Sua postura era calma e quase despreocupada, como se agisse automaticamente, com a cabeça em outro lugar.
Mesmo assim, seus olhos varriam o local: um galpão simples, com cheiro de madeira velha e umidade, oculto numa enseada pouco utilizada. Era ali. A carroça estava vazia do lado de fora, e era possível ouvir vozes de dentro do galpão. Agora, só era preciso confirmar que eram de fato os alvos.
— Acertamos — Rohan sussurrava — E todos juntos, num buraco só. Demos sorte.
Caso os nomes encomendados não estivessem todos ali, precisariam caçar um a um; era conveniente que pudessem terminar o trabalho de uma única só vez.
Escondidos, viram um velho, grisalho e de cavanhaque mal cuidado, sair do galpão; parecia conferir algumas caixas que estavam prestes a carregar a carroça.
— Está na lista. — Rohan decorou as descrições físicas de cada um dos alvos. Logo, o segundo homem, barbudo, também apareceu, reclamando alto de algo. — Este aí também. Falta um.
E o mais jovem saiu carregando mais caixotes de dentro do lugar. Kenshimaru não se lembrava da descrição. Rohan releu uma cola do que estava escrito no contrato ali mesmo, tentando cruzar as informações.
Não era possível; estava escrito que o último alvo era um homem careca e de meia idade — o que, claramente, não era o caso do jovem.
O entra e sai do galpão com as mercadorias contrabandeadas levava uma discussão rasa sobre porcentagens a serem pagas e quanto ficaria a partilha do dinheiro para eles.
Um sibilar fino calou a conversa.
Uma das espadas desembainhada refratou um dos primeiros raios solares da manhã. Kenshimaru apontava uma de suas lâminas para o mais veterano deles, que o rebatia com um olhar incrédulo, entendendo tudo em uma fração de segundos.
— Quem diabos… — O velho largou a tabuinha, dando pequenos passos para trás. — Mandou vocês?
O espadachim não respondeu. Encarava fundo nos olhos do senhor, controlando a respiração.
O silêncio foi breve.
Apenas dois ou três passos e Kenshimaru rasgou a garganta do velho; sua cabeça pendeu para trás, sem alicerce que a fixasse ao resto do corpo enquanto vomitava sangue. Ele se afogaria em si mesmo.
Caiu para trás, inerte.
O barbudo entrou em estado de choque e começou a arremessar garrafas de azeite em direção a eles. O jovem, por sua vez, recuou. Rohan, de repente, estava ao lado do barbudo, antes que pudesse perceber.
Um corte limpo decepou uma das mãos do bandido, que berrou em agonia.
— Piratas imbecis. — Rohan caminhava contra o homem emburrado, pois não terminariam o trabalho naquele momento. — Nem para andarem todos juntos.
O homem se levantou cheio de adrenalina, tentando correr para longe das vistas dos mercenários, mas sua tentativa foi pateticamente fracassada.
Outro corte certeiro, desta vez fundo, atrás do joelho direito. O barbudo rolou no gramado antes de sequer conseguir alcançar a mata do bosque que envolvia o galpão.
O jovem, por outro lado, viu a oportunidade de fugir. Kenshimaru o fitou e apontou-lhe o gume de sua espada; o garoto obedeceu a ordem silenciosa, permanecendo parado como estátua.
Rohan indagou sobre o terceiro alvo, o descrevendo como no contrato. Interrogou o homem agora indefeso por alguns minutos, sob falsas promessas de misericórdia.
Enquanto isso, Kenshimaru mandou o mais jovem se aproximar.
— Você não vai morrer. — Então, ordenou que sentasse com as mãos na cabeça. — Pelo menos não hoje. Não estou te poupando; seu nome apenas não está na lista. Você é só mais um rato, e, logo, outro rato maior virá te comer.
Um turbilhão de emoções passava pelo juvenil. Sussurrava agradecimentos aos céus e firmava pactos com o universo de que iria deixar aquela vida. Tudo isso enquanto via Rohan, em um só movimento, decapitar o seu, agora, ex-companheiro de crime. De seu lado direito, o corpo de seu antigo superior, morto pela lâmina daquele desconhecido.
— Beleza, tudo certo. — Rohan voltava a se aproximar, limpando a Querida nos trapos de sua própria vítima. — Ele entregou o último. Está aqui em Bergara; está entocado em um buraco perto daqui, esperando por essas mercadorias. — Encarou o jovem por alguns segundos. — Tá vendo, moleque? Isso é o que acontece com quem faz essas merdas. Há quanto tempo estava com eles?
Ele hesitou por um instante, mas o fulminar dos olhos de Rohan o fez desembuchar.
— Algumas semanas, só isso. — Não conseguiu disfarçar a voz trêmula.
— Olha só, teve sorte. Provavelmente, o contratante não te conhecia ainda. — Rohan tornou seu olhar a Kenshimaru. — Então; quer fazer as honras?
— Não. Isso é coisa sua.
— Ótimo.
Rohan sorriu. Seu senso de justiça poderia ser considerado torpe por muitos, mas era praticado sempre que possível. Era um homem bom, mas tinha lições duras para ensinar. Começou a falar bergarês com ele.
— Sabe, garoto, da onde venho, ser um ladrão implica causas bem… desagradáveis. — Suspirou fundo, desinteressado; tinha mais trabalho a fazer. — Vamos; estique uma das mãos.
O menino arregalou os olhos.
Lágrimas passaram a correr em seu rosto. Chorava pedindo clemência, aos pés do experiente mercenário que tinha assistido à mesma cena algumas dezenas de vezes.
Aquela choradeira, aquele temor, não o tocavam mais. A Kenshimaru, tampouco; assistia de braços cruzados. Não concordava nem discordava dessa conduta de seu amigo, apenas respeitava.
— Vai, estica o braço de uma vez, merda! — Não tinha um pavio muito longo.
O braço então veio, bambo, se estendendo lentamente. Antes que ele tivesse o reflexo de tirar sua mão da rota, Rohan amputou-a, sem pensar duas vezes.
O moleque se jogou no chão, gritando de dor e arrependimento. O sofrimento dele não comovia nem um pouco os mercenários. Kenshimaru já viu tantas pessoas morrerem na sua frente que temia ter perdido a sensibilidade.
— Toma, se quiser costurar de volta. — Rohan jogou a mão decepada em cima do menino. — Volte para a cidade, senão vai morrer de hemorragia. — E arremessou-lhe um punhado de moedas ensacadas. — Pague alguém para te tratar.
O menino se levantou com o restante das forças que tinha e encarava a dupla com um misto de ódio e respeito por terem o deixado viver.
— Fuja deste caminho, pirata. — Kenshimaru o alertava uma última vez. — Ainda há volta para você. Não jogue mais sua vida no lixo. — E deu as costas, seguindo rumo para terminar seu trabalho.
Mais um dia se ia em Vento Gentil. A noite caia e o sol se despedia com seus raios dourados invadindo o dossel das enormes árvores. Os passos na terra úmida denunciavam que seguiam para um ponto estratégico, onde estariam a salvo dos eventos de logo mais.
Naquela noite, o Tigre Alado seria verdadeiramente testado.
As várias camadas de tecido escuro faziam a pele negra de Eda suspirar na subida da encosta. O som de seus inúmeros amuletos e medalhões se chocando entrelaçava-se com o som abafado dos insetos.
Logo atrás, Kumo o seguia em silêncio; mais novo, de pele e cabelo mais claros, mas vestido da mesma forma. Mais cedo, despacharam três lacaios para a emboscada — agora, deveriam aguardar.
— Mandá-los na frente foi mesmo a melhor escolha? — A voz suave de Kumo cortava o silêncio. — Com certeza vão morrer.
Eda não parou de caminhar, mas o olhou de canto de olho. O feiticeiro raramente se importava se seus homens corriam ou não risco.
— Que morram. — Não carregava nenhum peso na fala. — É por isso que vieram conosco até esse fim de mundo. Se esse Tigre Alado for mesmo o que pensamos que é, então ganhamos na loteria.
Kumo mirou a selva abaixo, como quem respeita seus mistérios. Meditou sobre suas palavras por um instante.
— E se for mesmo um Deva? Acha mesmo que teremos alguma chance?
O silêncio retornou por alguns segundos, dando espaço para o coaxar dos sapos. Eda agarrou um de seus medalhões; um que tinha uma grande gema de tom esmeralda em seu centro. Ela brilhou quente com o toque.
— Só precisamos de uma mísera chance, Kumo. — Carregava firmeza na fala, acreditava em cada palavra que dizia. — Uma só. E seremos livres novamente.
Kumo refletiu; queria ter tanta fé quanto seu colega. Eda beijou o medalhão uma última vez antes de soltá-lo, brilhando num pulsar verde-escuro. Não precisava saber de onde vinha aquele poder, e mesmo que precisasse, não conseguiria.
Eda era um especialista naquelas artes ocultas e a obsessão em cada um de seus olhares, cada uma de suas palavras, era o suficiente para Kumo acreditar — ou ao menos tentar — nos sonhos de libertação da escravidão que ambos viviam.
— É… — Kumo deu de ombros e seguiu caminho. — Existem destinos piores do que a morte. Se morrermos aqui, estaremos no lucro.
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