UM GRITO ECOOU NO CAIR DA NOITE NA ZONA RURAL DE BERGARA. Um cadáver jazia nos fundos de um celeiro. Havia um corte profundo no meio de seu rosto, transversal, além de uma perfuração no tórax e uma das orelhas faltando. 

    Mais uma vítima do crime local — desta vez, pelas mãos de mercenários. 

    O ponto de encontro marcado ficava em uma casa suspeita, nos limites de uma das aldeias próximas ao milharal extenso. Foram avisados que poderiam chegar a qualquer momento, o contratante estaria ali para recebê-los. 

    A lua imperava sozinha e fria no céu limpo. O telhado de palha era tão mal cuidado que deixava passar o luar, compensando a falta de janelas da cabana. Uma porta pesada de madeira recebeu Kenshimaru e Rohan. 

    Um lampião iluminava vacilante, preso a uma viga fina que segurava o teto de palha. Uma ou outra vela fora acesa para alaranjar um pouco mais as feições dos soturnos homens de negócios. Ali, escondidos, contratos eram encerrados; sujo, abafado e impregnado com cheiro de mofo e fumo.

    A dupla se sentou de pernas cruzadas no tatame encardido. Dois homens, a alguns passos, faziam o tempo passar com carteado barato; outro, em pé e encostado na parede, afiava um punhal. Alçaram o olhar assim que chegaram, mas sem reverências. 

    O chefe enfim deu as caras. Obeso e de cabelos penteados para trás, fumava como uma chaminé e ofegara após se abaixar para assentar-se.

    — Como estou feliz em vê-los novamente… — Voz era grave, sempre interrompida por uma tosse terrível. — Quem me deve, um dia paga.

    Rohan colocou sobre a mesa um envelope com documentos das transações da mercadoria extraviada. Além disso, jogou também três orelhas amputadas. O chefe riu, abrindo um sorriso malicioso, e, em seguida, tossiu novamente.

    — Mande seus capangas recuperarem os produtos, se quiser. Não há mais ninguém os guardando — dizia Rohan.

    O chefe lançou rapidamente os olhos nos documentos, mas isso pouco lhe importava; talvez cobrisse uma parte do dinheiro que aqueles piratas lhe deviam. Contratava a morte de seus devedores justamente para manter sua imagem perante outros criminosos da região. 

    — Bom trabalho. — Fez um sinal para um dos seus subordinados pegar a recompensa.

    Trouxe uma pequena caixa de madeira, recheada de moedas de prata e cédulas enroladas, com a marca do dinheiro dos Avani. O brilho frio refletiu nos olhos de Rohan. Kenshimaru se manteve impassível, apenas observando, sempre com uma das mãos pousada na empunhadura de sua arma.

    O gordo contou o dinheiro rapidamente.

    — Aqui está — disse, colocando o valor sobre a mesa — Cem, na mão. 

    Rohan cerrou os dentes.

    — Cento e vinte, rolha de poço.

    Os dados pararam de rolar. O punhal deixou de ser amolado. O chefe fechou os olhos e suspirou fundo. 

    Sorriu no final, inclinando-se à frente.

    — Cento e vinte se tivessem me entregado o serviço até ontem. — Sustentava um riso sarcástico, como se tivesse enganado muitos outros da mesma maneira. — Me deram o pronto no laço, ora.

    Rohan respirou fundo, suprimindo a irritação e retomando o controle. Quando abriu a boca para responder, Kenshimaru o interrompeu, com voz firme e olho no olho.

    — O contrato foi cumprido. — Não tirou a mão um momento sequer do cabo de sua lâmina. — E sua palavra também será.

    O gordo manteve o sorriso, mas estreitou os olhos. Ficaram calados por instantes, enchendo o casebre de tensão. Todos estavam prontos para derramar mais do viscoso líquido rubro se necessário. 

    O chefe recuou, suspirando e recostando-se para trás.

    — Está bem, maldição — resmungou, voltando a mexer nas notas. — Cento e vinte e sumam daqui.

    Um capanga trouxe mais dinheiro; o chefe jogou o envelope com o pagamento de qualquer jeito na mesa. Enquanto Rohan contava, Kenshimaru não tirou os olhos do contratante e seus homens.

    Quando levantaram-se para ir, o chefe ainda disse, sendo ajudado pelos seus lacaios a se levantar:

    — O mundo é pequeno, ronin! — A dupla não se virou para ouvi-lo, sua fala denotava que se sentira humilhado. — São descuidados demais, uma hora vão-

    Sua voz foi cortada pelo bater da porta. Nenhum dos dois perderia uma noite de sono sequer por conta de ameaças como aquelas, ainda mais no frio do outono. 


    A estalagem os abrigaria uma última vez em sua estadia na movimentada Bergara. Não passava de um quarto pequeno, com duas camas, lareira e mobília antiga. 

    A brasa crepitava singela; o fogo consumira quase toda a lenha. O cheiro queimado da madeira se misturava com o da poeira, à medida que uma brisa gelada invadia pelas frestas mal vedadas das paredes. 

    Rohan se alimentava do restante de arroz vermelho que guardou mais cedo antes de dormir. Sentou-se em um banquinho, inclinado para frente e saboreando sua refeição. Dispensou fenim desta vez; bebia saquê ao invés, de um odre gasto.

    — Isso é lá da sua terra, Ken. — Ergueu o recipiente em direção ao colega. — Quer matar a saudade de casa?

    Kenshimaru se punha de pernas cruzadas, de olhar fixo na chama decadente e desequipado. Em suas mãos, um vasilhame de chá negro; pegou um ou dois punhados daquelas mercadorias contrabandeadas. Não era o seu favorito, mas serviria.

    — Não bebo álcool.

    Rohan bufou, se recostando na parede e voltando a mastigar. A essa altura, estava acostumado com a quietude de Kenshimaru, mas, às vezes, enchia-lhe a paciência.

    — Eu sei, eu sei. Nem quando vencemos; nem quando escapamos por um fio. — Deu uma outra colherada. — Me pergunto se sente alguma coisa por trás desse seu jeito esquisito.

    Kenshimaru não desviou a visão da lareira. O luminar refletia em seus olhos escuros, revelando cansaço e dúvida em seu cenho.  

    — Sinto mais do que gostaria. — Agarrou a haste ao seu lado para remexer a brasa. — Só que guardo para mim mesmo.

    O estalar da lenha e o mastigar de Rohan foram as únicas coisas que quebraram o silêncio por longos segundos. Tomou outro gole do saquê, mais lento. Terminou sua refeição e pôs a tigela de lado.

    — Kenshimaru… — Mediu as palavras, encarando o fogo. — Te conheço há algum tempo. Às vezes, me pergunto o porquê de um espadachim da Lótus Carmesim estar aqui, no meio do nada, longe de tudo. — Olhou diretamente para ele. — Por que continua; me diz? Pra que se arriscar assim? — Fez uma pausa, escolhendo palavras. — Ainda acredita na sua promessa?

    A fala pairou no ar por alguns instantes. 

    Promessa

    Kenshimaru digeriu a pergunta, sentindo um aperto no peito. Uma onda de lembranças vieram: o pedido de seu pai, a voz de sua mãe, a dor de ambos. 

    Tirou um pequenino símbolo de sua bolsa de viagem, um que sua própria mãe havia lhe presenteado antes de partir. Cabia na palma da mão, de madeira polida e gasto, mas que jurava proteção na jornada.

    — A praga tirou meu pai de mim — respondeu, com a voz serena. — Ele sabia que ia morrer. Me chamou até seu leito e pediu que jurasse uma única coisa… — Pausou e fulminou Rohan com o olhar. — Que encontrasse meu irmão.

    Rohan o encarou, atento. 

    Presumiu algo assim ao longo do tempo, mas era a primeira vez que poderia conhecer mais de seu  próprio parceiro de trabalho.

    — Seu irmão… — murmurava — O que aconteceu com ele?

    Kenshimaru tornou o olhar à lareira.

    — Eu não o conheci — suspirou — Mas é… alguém especial. Saberei que é ele quando finalmente o encontrar; eu sei disso.

    Rohan ficou quieto, apenas absorvendo aquilo. Muitos mercenários tinham motivos convincentes para fazer o que faziam, afinal de contas, era uma vida perigosa. Contudo, Rohan via fogo nos olhos de Kenshimaru. 

    — Então é isso que te move. — Tomou mais uma golada. — Não sei se te chamo de corajoso ou de louco. O mundo é grande pra caralho, Ken; é cruel. Se ele estivesse vivo por aí, já teria dado um sinal.

    — Não importa. — Sua voz soava como o fio de sua espada. — Minha mãe não vai morrer como meu pai; sem rever o próprio filho. Eu vi a dor deles; cada lamento, cada choro, desde quando eu era só uma criança.

     Havia algo na voz dele que não admitia dúvidas; uma certeza que ia além de lógica ou razões duras. Rohan apenas o encarou. Soltou um riso sem alegria.

    — Beleza, já entendi tudo; você é teimoso como um touro. — Matou o odre de saquê. — Mas, olha, eu respeito isso. Ainda assim, já pensou que pode ter prometido algo que não pode cumprir? — Olhou em volta, abrindo os braços; o lugar precário, as manchas na madeira. — Veja onde estamos. Mercenários, longe de tudo, vivendo correndo por vielas; podemos morrer amanhã, se bobear. Você  poderia ganhar um bom dinheiro servindo uma família de ricaços ao invés de ser um ronin andarilho. Vale a pena?

    O espadachim respirou fundo enquanto as sombras do fogo dançavam no quarto. Rohan queria ter tido as oportunidades que Kenshimaru teve, sabia disso, portanto não julgava quando o acusava de não aproveitar para servir os nobres. 

    A voz de seu pai veio à cabeça, a mão fria, apertando-a com suas últimas forças. 

    Não desista dele. Traga-o de volta, Ken. Por favor.

    — Vale — respondeu firme — Nem que eu tenha que pisar no fundo do Abismo, vou levá-lo de volta para casa. É por isso que vivo.

    O silêncio voltou, mais pesado desta vez. 

    Rohan não soube mais o que dizer. Apenas fitava o amigo, reconhecendo que não haveria argumento que o fizesse mudar de ideia. Ainda assim, achava absurdo Kenshimaru não aproveitar de seus status para tirar dinheiro dos ricos.

    Depois de alguns minutos quietos, Rohan se levantou.

    — Sua parte do pagamento está em cima de seu travesseiro. — Espreguiçou-se. — Bom… vai pegar aquele contrato que te falei?

    Kenshimaru remexeu as brasas mais uma vez.

    — Vou.

    — Então, vamos juntos. Também aceitarei esse trabalho.

    Kenshimaru finalmente se levantou.

    — O que conhece desse lugar?

    Rohan deu de ombros.

    — Nunca fui. — Apanhou um cachimbo no meio de suas coisas. — Só sei que é um lugarzinho mais isolado do que Bergara. Acha que vai encontrar seu irmão lá?

    — Não faço ideia. — Kenshimaru não se deu o trabalho de contar sua parte do dinheiro, apenas a guardou.

    Enquanto Rohan saiu para fumar, Kenshimaru tirou um tempo para arrumar seus pertences. 

    Agarrou seu mapa, passando os dedos pelas marcas de tinta que tiravam do caminho as localidades por onde passou — todas, sem rastro do irmão. No fundo, não sabia quanto tempo levaria para deixar de fracassar. De qualquer forma, seguiria em frente.

    Próximo destino: Vento Gentil.

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