Capítulo 8: Ecos do Tigre

VENTO GENTIL ERA TERRITÓRIO DOS AVANI — pelo menos na teoria. Uma terrinha isolada, além de Bergara, que nem mesmo possuía uma força policial.
Eram, nos termos da lei, um subdistrito dentro da Comarca de Bergara, o que suscita que o governador, patriarca da família Havi, também imperava por ali. Não podia estar mais errado quem pensasse desta maneira.
Assim como em Bergara e em outras ilhas e senhorios similares nas terras baixas, quem controlava tudo era o crime organizado. Os donos de Bergara e, consequentemente, de Vento Gentil eram o alto comando do Dente de Ferro.
Eliminar esse perigo e limpar essa chaga era lindo na teoria, mas estressante demais na prática. Tanto os Avani quanto o governador preferiam fazer vista grossa até que os prejuízos refletissem nas mesas luxuosas de café da manhã da nobreza ou nos pomposos investimentos em melhorias dos palácios e jardins ornamentais mil.
A dinastia Avani era um governo execrável. Conseguiram tantas terras por emendas políticas e costuras corruptas por trás dos panos, o que deu muito espaço para as facções crescerem e operarem. Essa colcha de retalhos política refletia, principalmente, nos povos mais marginalizados — como era o caso de Vento Gentil.
Constituída de um povoado principal e algumas vilas isoladas — como a do Pardal e a da Brisa —, a comunidade contava com pouco mais de cinco ou seis mil pessoas; talvez, beirasse sete mil com alguma boa vontade na contagem.
A Anciã Imoj era a liderança local, figura que inspirava longevidade e respeito. Mesmo assim, não tinha qualquer poder perante às ações dos criminosos.
A entrada do povoado era um porto que não passava de um trapiche de madeira velha. Uma pequena balsa com um único balão veio das alturas, atracando na infraestrutura precária. O balseiro reclamava, pois a viagem até ali raramente dava algum lucro — mesmo assim, não era louco o bastante para negar exigências de homens perigosos.
Um cheiro límpido de natureza pura invadiu as narinas de Kenshimaru, que caminhava à frente. Rohan vinha logo atrás, de passos largos e confiantes. Ambos carregavam suas mochilas de viajante e capas amarronzadas que escondiam suas armas de olhares curiosos.
Vento Gentil não tinha cheiro de gente abarrotada lutando um contra o outro para sobreviver e levar vantagem, mas sim de uma pequenina sociedade de subsistência, onde um trabalhava ao lado do outro.
Kenshimaru fazia correr seu olhar astuto por todo o lugar, ainda que discreto, atento a qualquer sinal que pudesse o levar ao alvo de sua busca. Rohan, por sua vez, já elucidava rotas e maneiras de chegar ao ponto que deveriam: um armazém do Dente de Ferro.
O contrato vinha de uma liderança criminosa de Bergara, que via seu lucro decair devido ao contrabando de carvão e ervas-da-mata que os ratos do Dente de Ferro de Vento Gentil extraviavam dos próprios moradores.
Sabotar este armazém era o objetivo, não importa como; assim como não importava como haviam conseguido a informação da localização do galpão. O mundo do crime é repleto de falsas amizades e cobras traíras.
— O alvo fica mais para o interior, no meio dessa mata — murmurou Rohan, ajeitando a bagagem nas costas. — Se fizermos à noite, dá para atear fogo e ninguém perceber. — Olhou de lado para o companheiro. — Está me ouvindo?
Mesmo que o espadachim assentisse, sua atenção não desviava dos transeuntes. Gente simples, de pele queimada pelo sol e mãos calejadas do trabalho duro.
Todavia, a tensão no ar era palpável.
Retribuíam os olhares com suspeita enorme, já que era mais do que claro que aqueles visitantes encapuzados não deveriam estar ali. Na cabeça deles, com certeza não passavam de mais homens do crime.
Eram nítidas as marcas de violência recente: uma porta arrombada aqui, outra charrete queimada acolá. Peões vigiavam desconfiados a cada esquina das vias de terra batida.
— Estou ouvindo. — Como sempre, sua voz era pacata. — Mas ainda precisamos entender o terreno. Há algo errado por aqui.
Rohan suspirou e deu de ombros.
— Você me irrita às vezes; muita desconfiança para o meu gosto. Escuta: encontraremos o armazém e cumprimos o serviço. Pronto. Quero voltar logo para minha mulher em Petula; não aguento mais sentir cheiro de homem.
Kenshimaru não respondeu.
Sua cabeça estava em outro lugar. Já passara por muitos lugares que esperançou encontrar seu irmão, não aguentava mais o peso das expectativas abaladas. Qual era a chance de sua busca se encerrar ali, naquele fim de mundo? Quase nulas. Contudo, jamais poderia remediar.
O dia se foi.
Seguiram com esmero as coordenadas dadas pelo contratante. Lá estava o armazém, muito bem escondido pela vegetação avantajada de folhas largas, palmeiras e angelins. Pouco rebuscado e de madeira, o estabelecimento parecia o alvo perfeito para um incêndio.
A cartilha manda esperar, observar ao máximo os padrões e comportamentos da vítima antes de agir; era isso o que fariam nas próximas duas ou três horas.
Estranho; não havia ninguém guardando o lugar. Nem ao menos um membro da ralé; nada.
Ora, um trabalho fácil.
O maior inimigo deles no momento parecia ser apenas os incansáveis insetos que insistiam em serem insuportáveis. Decidiram então retornar em outro momento; mercenários caçadores muitas vezes eram pegos em armadilhas assim. Preferiram não arriscar.
Rumaram para a estalagem, na parte alta do povoado. Construída com vigas de madeira sobre uma fundação de pedra, a estrutura já vira dias melhores. “Estalagem do Velho Bashoya”, dizia uma tabuleta pendurada na entrada, rangendo ao sabor do vento.
Ao entrarem, foram recebidos com um ar abafado e fedor de incenso barato, para afastar os insetos. Em contraste, uma fragrância de ensopado de galinha deixava tudo menos pior. Algumas mesas estavam ocupadas por raros viajantes ou mercadores cansados, mas o lugar estava majoritariamente vazio.
O velho Bashoya ostentava dentes amarelados e barba rala, os recebendo com um largo sorriso.
— Bem-vindos, forasteiros! — Aproximava-se de braços abertos. — Dois quartos? Vão dividir?
— Dois — respondeu Kenshimaru. — E uma refeição quente.
O local se provava de certa forma insalubre, mas dormir de estômago vazio não era uma opção. Foram conduzidos para assentos no balcão, próximos da caldeira, borbulhante e cheirosa.
Enquanto esperavam, o velho Bashoya não conseguia se segurar para puxar conversa, como era de seu feitio.
— Olha, tempos estranhos para andar por estas bandas. Mas, veja, não tenho preconceito com foras-da-lei, viu? — Abaixou o tom de voz, quase conspiratório. — Não sei quem são vocês, mas… tomem cuidado onde se metem.
Rohan bufou, incrédulo.
— Não somos o que acha que somos, tá legal? Não fazemos parte do jogo.
— Bem, não vejo muitos motivos para dois homens armados visitarem minha terra atualmente. — Limpava a gordura das mãos com estopa. — Como eu disse, não tenho preconceitos, rapazes.
Kenshimaru trocou olhares com Rohan e pensou por um breve momento.
— Por que diz isso? Algo que devemos saber?
Bashoya soltou um riso, não de alegria, mas de surpresa.
— Não sabem mesmo? Pelo sotaque dos senhores, são estrangeiros, portanto, irei alertar logo de uma vez. — Inclinou-se sobre o balcão, com as duas mãos apoiadas na madeira e sua fala extrovertida se transformou em murmúrio. — O chamam de Tigre Alado; um diabo mascarado, um espectro que aparece do nada e manda os ratos do Dente de Ferro para o Naraca! Uns dizem que é espírito, outros que é de carne e osso; mas todos concordam que vem sendo uma bênção para nós, do povoado.
Apesar de Kenshimaru não ter esboçado reação, Rohan fechou os olhos e bufou novamente. Odiava essas lendas populares que só serviam para manter o povo passivo, nas rédeas dos poderosos.
— Histórias de taberna. Nunca ouviram falar de guerra de facções? Não acredito que sejam tão inocentes assim.
O velho balançou a cabeça, insistente em seu ponto.
— Não, não, não… eu vi! Não com estes olhos — apontava para seus próprios globos oculares com entusiasmo —, mas com olhos de confiança! Veja bem, ninguém que o viu tinha motivo para mentir, meus caros clientes. Dizem que seus olhos brilham no escuro, que carrega espadas de fogo, que atravessa paredes…
— Tá bom, tá bom — Rohan o interrompeu, já de saco cheio. — Não tô afim de ficar ouvindo conversa fiada.
Kenshimaru se recostou, também longe de crer nas palavras daquele nato contador de histórias. Mas algo o fez insistir naquele conto.
— E como são esses ataques?
— Violentos! — Bashoya era um show de gesticulações quando se animava. — Sempre deixa corpos para trás; o Dente de Ferro já perdeu bons homens, se o senhor quer saber. Sempre opera na selva, longe de nossos olhos; tentamos fazer algum tipo de incursão na floresta para encontrá-lo, mas, sabe como é… temos medo de morrer! — E soltou uma gargalhada contagiosa.
Kenshimaru estava mais curioso do que gostaria.
— E por que o chamam de Tigre Alado? — O velho sorriu com a pergunta.
— Pois é mascarado, e sua máscara é de tigre! Mas também porque, nas suas primeiras ações, deixava um desenho com o sangue dos inimigos no chão: um tigre com asas!
A dupla de mercenários se entreolhou mais uma vez, agora sérios.
Nunca tinham ouvido falar de nada parecido com isso, mesmo que mercenários fossem conhecidos por trabalhar de diferentes formas. Talvez, aquele velho estalageiro estivesse inventando causos por pura carência, mas algo clicou no imaginário de Kenshimaru.
Tigre.
— E se alguém viu seu rosto — continuava Bashoya —, não viveu para contar história. Muitos dizem que, por trás da máscara, não há rosto para se ver; somente o vazio!
Rohan riu alto desta vez. Preferiu se divertir ao se emburrar.
— Supertições! — Deu um tapa na bancada. — O povo adora acreditar em fábulas, meu velho. Me vê uma dose de fenim aí, fazendo favor.
A conversa rapidamente enveredou para tons mais amistosos entre Rohan e Bashoya.
Kenshimaru admirava a habilidade de seu amigo de formar laços com tanta facilidade com desconhecidos quaisquer. Ele mesmo, não se sentiria confortável com isso se estivesse em seu lugar; pensava que todo seu tempo deveria ser em prol do cumprimento de sua promessa.
Seus pensamentos rodopiavam enquanto a fumaça do ensopado de galinha esquentava seu rosto. Bashoya e Rohan seguiam conversando de assuntos paralelos, agora falando num idioma que Kenshimaru pobremente entendia.
Não importava, o ronin pouco escutava algo.
Rohan fazia qualquer outra coisa quando Kenshimaru já estava em seu alojamento. Podia escutar sua voz lá de cima; provavelmente, estava jogando algum carteado com os mercadores caravaneiros.
Kenshimaru se apoiou no parapeito da janela, cultuando aquela noite sem nuvens e o som inconfundível das cigarras. O som do vento assemelhava querer trazer notícias de longe, ouvindo sussurros, mas sem poder contar. Sozinho, o espadachim deixou que a dúvida o corroesse.
Nada do que o velho falou poderia ser levado à ferro e fogo, mas pelo menos era alguma coisa. Nunca antes teve nem sequer uma meia-verdade para se apoiar; essa poderia ser a deixa que esperava para fazer uma busca mais aguda.
Era coincidência demais: um guerreiro mascarado que defende o povoado, alcunhado de Tigre? Kenshimaru estudou sobre seu irmão; apesar de nunca o ter conhecido, as descrições de sua mãe sempre percorriam seu imaginário.
Sabia que era especial; que foi entregue a um dos míticos e inalcançáveis Arhats. Sabia também que, àquela altura da vida de seu irmão, se estivesse de fato vivo, deveria vagar em algum lugar, liberto de seu treinamento.
Fechou os punhos, segurando firme um amuleto entalhado de jade vermelho que ainda levava consigo da Lótus Carmesim, sua antiga casa.
Não podia se iludir; não queria. Ainda assim, uma chama teimosa de esperança ardia dentro dele. Não importava o quanto tentasse apagá-la, essa chama se recusava a se dissipar.
Tigre Alado… será você, Filho de Hu?
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