Engrenora era um reino vasto, até revolucionário, as pessoas diziam. A maioria das pessoas olha apenas para a beleza, as ruas limpas, as fábricas de máquinas, a evolução. Toda moeda tem duas faces, assim como Engrenora tinha as suas. As pessoas viam Alta-Engrenora exuberante em cor de cobre, e esqueciam seu outro lado, Baixa-Engrenora.

    Baixa-Engrenora era cinza, sufocada por nuvens de fumaça. O lixo tomava conta das ruas, as fábricas de armas rodeavam as esquinas. As pessoas não viam a feiúra, as ruas sujas, as fábricas de armas, o retrocesso.

    Na base do lixo, estão os cidadãos. Forçados a roubar, a trabalhar como operários, a fugir como presas, e a morrer como lixo. Lutavam por qualquer migalha que conseguissem, mesmo que passassem por cima uns dos outros.

    Acima deles, estavam os mercenários e os magnatas. Uma milícia composta de assaltantes, assassinos e mentirosos, feita para manter a cidade como ela era: os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.

    Comandando eles, no subsolo de uma grande fábrica de armas, estava Belmorth. Humano, famoso visionário, intitulado filantropo, mas o grande maestro dessa peça de comédia e tragédia, mais tragédia que comédia.

    O homem era tão alto que chegava a ser intimidador. Sua pele branca, quase pálida, com olheiras roxas abaixo dos olhos delatava as noites de sono perdidas. O cabelo loiro e encaracolado descia até a orelha, extremamente limpo e bem hidratado. 

    Suas roupas eram elegantes, portava uma camisa militar preta de mangas longas, adornada por uma gravata branca ao redor do pescoço e uma cartola sobre a cabeça. Suas calças eram um jeans longo e branco, quase mais branco que as paredes ou o terno que carregava sobre as costas. Finalizava o visual com um par de sapatos pretos de grife.

    Ele caminhava pelos corredores de metal e canos com válvulas. Cumprimentava os funcionários, que devolviam com sorrisos forçados.

    Um operário se aproximou, idoso e cansado da fumaça.

    — Senhor? — disse ele, com as más notícias na ponta da língua.

    — Sim? Alastor, estou correto? — O pomposo respondeu, com a voz aveludada e lenta.

    — Sim senhor. Tenho más notícias a reportar.

    — Oh! Meu caro Alastor, entenda: Não existem boas ou más notícias, apenas notícias.

    — Bom… tivemos outra invasão ontem pela noite.

    — Isso é uma má notícia. — Belmorth caiu na própria contradição. — O que houve? Roubaram algo da fábrica?

    — Não senhor.

    — Foi o culto de Nazhur então?

    — Foi aquele garoto novamente.

    — Ah! Apenas jogue-o para fora, ele não me interessa.

    — Mas senhor…

    — Sem “mas”, Alastor. Estou com visitas hoje, estou ocupado.

    Ele acelerou o passo, deixando o operário para trás com o seus pensamentos e deveres.

    “Aquele Stajäger. Já foram quantas vezes, sete?”, pensou ele, com a testa franzida um pouco.

    Andou até o final dos corredores, confusos como o inferno. Chegou em seu escritório, perceptível pela placa com o nome: Belmorth Rubrae.

    A sala era escura, o piso era de madeira fofa e as paredes eram bem trabalhadas, tanto os tijolos quanto a tinta estavam em seu ápice. Quadros abstratos com molduras caras decoravam as paredes e vasos de flores decoravam os cantos.

    Ao centro, uma mesa tripé com pernas de centro, esculpida cheia de pompa e rodeada por duas cadeiras, também de madeira, bem estofadas e limpas.

    Acima da mesa, um jogo de chá: Um bule branco e ornamentado, pires polidos e xícaras com desenhos laterais. Acima das cadeiras, foi onde o magnata se sentou.

    Pegou dois pires, colocou duas xícaras e serviu duas bebidas.

    — Prefere com, ou sem açúcar, meu Signore? — perguntou ele, encarando a escuridão que se formava no canto da sala.

    As trevas se moldaram, como um animal vivo, e delas saiu o mago aberrante, o necromante de Eldon.

    — Dispenso o chá — falou ele, já sentado na última cadeira.

    Seu corpo estava com um cheiro ainda mais podre. Pedaços de sua carne descolavam do corpo, as costuras já não eram o suficiente para manter a estrutura unida. Precisava manter o olho esquerdo fechado, para que não saltasse para fora do buraco.

    — Fico lisonjeado de recebê-lo, meu Signore — continuou o rapaz nobre. Sua voz era aveludada e calma, como se não estivesse diante de um monstro. — Em que eu posso ajudar meu amado Sig…?

    — Poupe os elogios, Belmorth — O necromante cortou a frase, tão seco quanto uma espada. — Vim para receber o relatório da pesquisa, então vá direto ao assunto.

    — Claro! — Ele não perdia a postura. Tirou alguns papéis do bolso e ergueu a xícara de chá. — Tivemos bons avanços com relação a atrair a criatura, os frutos são mesmo uma isca incrível.

    — Como está indo o processo de reunir e movê-los? — Cada palavra pesava como o golpe de um martelo.

    — Conseguimos mover mais da metade, mas o resto… “se perdeu” durante o transporte. Parece que quanto mais compatível o portador for, mais tempo ele poderá hospedar o Vagante. — Mas o nobre respondia sem dificuldade. Ao invés de medo, ele tinha admiração nos olhos.

    — “Se perdeu”? Então eles estão soltos pela cidade?

    — Infelizmente… Isso é um problema, meu Signore? — Bebeu parte do chá, não desperdiçaria o que já estava servido.

    — Nem um pouco. Já tenho a quantidade de carma necessária, estou apenas juntando sobras.

    — Entendo. Fabuloso, meu Signore.

    — E quanto aos efeitos colaterais nas cobaias?

    — O melhor experimento durou cerca de seis meses, foi um dos aventureiros da guilda, acho que se chamava Aldric. 

    — O povo dessa cidade reagiu bem?

    — O povo de Engrenora pareceu não ter tanta rejeição, apresentaram apenas alucinações audiovisuais e hostilidade. O esperado. — Levou a xícara até a boca novamente. — Partirmos para cá foi uma ideia genial, meu Signore foi muito inteli…

    Com o mover da mão do morto-vivo, o braço do nobre voou para a parede, tingindo o branco de vermelho.

    — Eu disse para ser direto.

    — Minhas desculpas, meu Signore. — O homem se curvou realizando uma mesura, sua ferida sangrava no ritmo de seus batimentos cardíacos.

    — Se cure logo, tenho outros assuntos a tratar. Conseguiu o que pedi?

    — Mas é claro, tudo pelo meu Signore. — O sem braço deu alguns passos para longe da mesa, se aproximando do braço caído. Foi então que estalou o dedo do braço restante. — [Carnoféx]!

    De um dos bolsos, pulou um cubo vermelho pulsante, seus movimentos eram rítmicos como um batimento cardíaco. O cubo logo cresceu, assumindo uma forma que causaria pesadelo em pessoas normais.

    Era feito de carne exposta por inteiro, sua forma lembrava a estrutura de um templo, cúbico com janelas e portas. Nas paredes, membros humanoides se formavam e desapareciam. Faces em agonia saltavam da parede, lutando por espaço.

    Se movia dando vida a braços e pernas a partir das laterais, para transformá-los em carne morta logo em seguida. Os gritos de agonia daquelas pessoas ressoavam pela sala.

    — Regenere, [Carnoféx] — sussurrou ele.

    Com o caminhar leve, o nobre tocou a coisa, que engoliu sua mão. Em pouco tempo, o amontoado de carne se ligou ao ferimento do braço, formando um novo.

    — Eu tenho outros assuntos a tratar nas ruínas, então deixarei a página com você. — intimou o necromante.

    — Claro, meu amado Signore. — Ele afastou-se da criatura, batendo pequenas palmas como se chamasse um cachorro. — Solte a garota… Libere [Carnoféx].

    De um dos rostos assimilados à parede, um corpo começou a se formar. A forma nua de uma garota surgiu diante deles, caída ao chão. Era uma garota gelariana jovem, no auge dos seus dezoito anos.

    Ela não demorou a recuperar sua consciência, passando os olhos pela sala em que estava.

    — Onde eu…? — disse ela, ainda zonza.

    — Ah… Você acordou… — O nobre começou a conversa.

    Ao reparar nas duas presenças, a garota usou as mãos para tapar o corpo, cerrando os dentes para segurar a vontade de vomitar pelo cheiro.

    — Quem são vocês? Senhor Belmorth? Onde eu ? — A desconfiança começou a se formar em seus olhos.

    O homem colocou a mão próxima ao peito, no bolso da camisa.

    — Era melhor ter continuado a dormir, garotinha.

    — O que você…? — Antes que a garota pudesse continuar, um tiro foi disparado contra sua testa e seu crânio foi perfurado.

    O nobre observava com o revólver em mãos, satisfeito com o resultado.

    Armas de fogo, o terror dos guerreiros que não usavam carma.

    — Está pronta, meu Signore… ou devo dizer minha Signore? — Ele sacou um pano branco para limpar o sangue em seu rosto. Um sorriso degenerado surgiu de orelha a orelha.

    Silencioso como a morte, o necromante caminhou até o cadáver, o carma sombrio se espalhou de suas mãos para o chão, e do chão para o corpo. 

    Em instantes, a garota se mexia dura e lenta, como um boneco de ventríloquo, uma marionete de carne e osso, um morto-vivo.

    Com um golpe rápido, o necromante golpeou o peito do corpo ardenteriano, esmagando o próprio coração com as mãos.

    Caiu ao chão se desmanchando em restos costurados, sem derramar uma única gota de sangue. A garota se abaixou, agora se movendo perfeitamente bem, pegou as roupas do monte de carne e se vestiu.

    “Tão belo… se moldar e remoldar com tanta naturalidade… é lindo…”, Belmorth encarava fascinado. Ele já não escondia seu rosto perverso.

    A falsa garota estendeu os braços, moveu as mãos em círculos, deu pequenos saltos, soltou alguns grunhidos. Ela testava o corpo igual quem experimenta uma roupa nova.

    — Parece bom. Deve durar algumas décadas. — A voz era diferente de antes, mas parecida com uma versão mais fina e feminina da voz anterior. — E o resto?

    Sem dizer uma única palavra, o nobre enviou uma ordem para seu Servo. O templo de carne começou a expelir corpos de suas paredes.

    Primeiro um, depois cinco, dez, vinte. Trinta corpos, entre todas as raças, mas com poucos humanos.

    Com outro tocar da criatura, as pessoas começaram a se remodelar, desfigurar, e reconfigurar. Uma pequena esfera de carne e membros atrofiados se formou diante dos dois.

    — Minha Signore? — Belmorth abriu caminho para a dama fúnebre, que rumou até a esfera.

    Procurou nos robes, até encontrar outra esfera como aquela. Postas uma ao lado da outra, o carma emanava como duas baterias imensas.

    — [Carnoféx], por favor. — Com o pedido do mago, a monstruosidade juntou as duas esferas, formando uma única.

    Sua forma desafiava as leis da física, seu tamanho não havia aumentado, mas o carma estava acumulado. Era um pequeno amálgama de horror e energia.

    Com um leve puxão para ajustar a roupa, a necromante caminhou até o canto da sala de onde surgiu e disse: — Kharon, estamos indo.

    — Sim senhora, minha Signore. — A sombra respondeu com uma voz grave, tão grossa que era capaz de reverberar nos ossos de quem ouvia.

    As sombras que cobriam a vértice se deformaram e aumentaram de tamanho, de forma com que parecesse uma abertura.

    Uma última olhada pairou sobre o nobre, semelhante a uma mestra com expectativas no pupilo.

    — Em algumas horas, mandarei Kharon para te buscar. Começamos o ritual quando tudo estiver pronto, então consiga o máximo de informações que conseguir sobre a pesquisa.

    Com o estender de uma das mãos, uma pequena chama branca se formou na palma da necromante. A chama dançou e queimou, moldando sua forma para como uma folha, uma folha antiga.

    O nobre segurou a folha com as duas mãos, seus olhos brilhavam com o presente recebido: uma página do grimório da primeira maga 

    — Por suposto que sim, minha Signore — confirmou ele com uma mesura. 

    A defunta desapareceu, engolida pelas sombras. Sua expectativas eram baixas, mas pesavam como chumbo nos ombros de Belmorth.

    O homem caminhou até a criatura, acariciando a textura esponjosa e vermelha pulsante.

    — Oh… você está com fome? — Sua voz era temerosa, como se a coisa fosse um animalzinho.

    Pousou seu terno sobre a cadeira, exibindo a grande camisa militar negra.

    — Senhor Belmorth? — Uma voz cruzou a porta, seguida de algumas batidas em ritmo. Era Alastor, o operário idoso. — O senhor está aí?

    O nobre virou seu olhar para a porta. Seu sorriso, antes depravado, agora se tornava sádico e realizado.

    “Tudo pela minha Signore… sinto por isso, Alastor”, os pensamentos quase escaparam pela boca sorridente.

    Caminhou até a porta e atendeu o homem, o trazendo para dentro da sala. Seus gritos nunca foram ouvidos, e ele nunca mais foi visto.

    Em meio a diversão da criatura, Belmorth observava o trabalhador lutar por sua vida. O mago era a encarnação do símbolo sombrio tatuado na lateral de seu pescoço: a marca de Nazhur.

    O culto não conhecia o medo, nem o silêncio, nem mesmo o esquecimento. Sua presença era um tumor que sempre deixava cicatrizes e, agora, Belmorth se tornaria mais uma delas.

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