Capítulo 74 - Defesa
Um bom profissional de advocacia atua na prática total de seus casos. O que significa isso? Ora, o contato direto com seus clientes, e foi isso que a Amanda buscou fazer na manhã seguinte…
Amanda chegou à casa de Alina, sua cliente no caso. O endereço era um emaranhado de ruas apertadas, o oposto incrível e brutal dos vidros polidos do Escritório ASHI. A porta se encontrava desgastada pelo tempo e pela violência contida. Amanda bateu. Algumas batidas, breves segundos de silêncio e novas batidas. Enfim, a porta se abriu no limite da corrente. Alina era uma silhueta na penumbra. Não havia choro que descesse de seus olhos, apesar das olheiras e dos hematomas, havia em maioria doses de um tédio existencial. Os seus olhos, fundos e secos, tinham visto mais do que podiam processar, certamente.
— Advogada. — Pouco conseguia falar alto, Alina apenas constatou.
— Sou Amanda. Eu sou a responsável pelo seu caso. Preciso entrar, Alina.
A corrente deslizou, a porta foi aberta. No interior da residência, visível era o cheiro de comida requentada e desistência organizacional. Alina recuou, sentando-se no sofá surrado. Os cômodos eram desorganizados, mas não caóticos — somente refletiam um momento difícil.
— Os relatórios não ajudam. Preciso de mais detalhes. — Amanda puxou um bloco de anotações, ignorando o ambiente. O profissionalismo era sua máscara.
Alina encarou o chão — O que quer saber? A cor do sangue?… Não muda nada, doutora.
— Quero saber do medo. — Amanda fixou o olhar. Ela precisava externalizar a dor. — Me diga do momento em que Reen pegou a faca. E da Vittia.
Alina respirou fundo, era pesado, perceptível o peso que sentia só para contar algo.
— A Vittia… Ela era praticamente minha irmã. Não de sangue, é claro. Mas bem que podia ser, era o que nós gostávamos de dizer. O Reen… ele sempre foi um peso morto. O dinheiro, as dívidas, a mentira. Eu estava juntando as provas, nunca para separação porque eu nem sabia se conseguiria não tê-lo mais do meu lado. Era só para proteção.
Alina falava num tom monocórdico, quase anestesiada. Descreveu a tensão da descoberta, o alerta de um dos filhos para o pai, a conversa por telefone entre Reen e Vittia. Tudo isso eram informações que completavam outras que se encontravam parcial. Tudo isso foi gravado e documentado pela própria Alina.
— Reen estava quebrado. O único patrimônio éramos nós. Se eu saísse, ele perderia tudo. Ele e Vittia concordaram que era preciso fazer algo. Vittia sugeriu que ele manipulasse os meninos. Reen… ele negou isso. É doloroso… Pois só depois de me trair várias vezes, foi só aqui que ele parou em alguma linha. E nem era no fundo por causa de mim.
Encarando o chão sujo da casa, Alina continuou.
— Ele não tentou me matar de raiva. Ele tentou me matar porque eu era uma ameaça econômica. A faca era a solução final para o déficit dele. Nem quando queria me matar, o motivo foi um pingo de amor distorcido. Pelo menos fosse… Na madrugada em que brigamos, ele me empurrou. A faca foi para o chão e ele tentou pisar… Mas eu chutei as pernas dele com força. Ele caiu, e eu peguei a faca.
Amanda escrevia “A primeira facada, na costela…”
— Eu só queria que ele parasse. Então tirei a faca. Mas aquele tolo, ele voltou para me bater, ainda em fúria. E então… — Os olhos de Alina finalmente se fecharam, mais para reproduzir a cena. — Eu não senti. Minha mão foi sozinha. A segunda. A terceira. A quarta. A quinta. Eu nem via mais ele na frente. Só uma farsa. Eu vi a Vittia por trás dele. Eu vi meus filhos me perdendo…
Alina abriu os olhos. O tédio havia voltado — Acabou. A Justiça vai tirar os meus filhos de mim, não vai, advogada?
Amanda fechou o bloco de anotações — Vou te tirar dessa. Seus filhos vão continuar com você.
O resto da manhã e metade da tarde foi consumido pelas horas loucas de trabalho intenso da Amanda. Ela realmente era determinada. Nos momentos que se colocava sobre os papéis e na posse da caneta, do teclado, dos arquivos, nem para os lados desviava seus olhos. Ela investigou a Vittia, encontrando apenas uma jovem adulta na fachada de influencer social, vazia de conteúdo, e rica nas ambíguas conexões. Buscou o histórico de dívidas de Reen, e encontrou um labirinto de empréstimos obscuros. O caso era sujo.
(…)
Pela tarde, Amanda deixou o Escritório ASHI. Parada na calçada, a luz do sol batia no vidro, refletia a aura de status do prédio. O carro que a levaria para o almoço chegou.
Ela logo entrou, com a bolsa pesada de dossiês. — Boa tarde.
O motorista, um homem de quarenta e poucos anos com um sorriso largo, mas artificial, respondeu com uma simpatia forçada.
— Boa tarde, Doutora. Que prédio, hein? A senhora trabalha nesse gigante aqui?
— Sim. — Amanda respondeu, seca. Sem oferecer brecha, mas não funcionou.
— Deve ser um trabalho importante, então. Deve ter muita gente rica e poderosa nesse andar de cima.
— É advocacia.
— É mesmo? Eu soube que o Dr. Alex, o dono, é um gênio. Um homem que sabe como as coisas realmente funcionam, sabe?
A linha de questionamento forçava a proximidade, o motorista agia como um espião social. Amanda se mantinha na defensiva, respondendo apenas com monossílabos.
— Sim. Ele é excelente.
O carro seguia, o trânsito da Paulista fluía bem até. No banco de trás, Amanda abaixou a cabeça para procurar o celular na bolsa. No meio das canetas e papéis, mas de relance do seu olhar, ela viu algo estranho no solo do veículo…
Bem estranho e curioso…
Uma nota de dinheiro a centímetros à frente dos seus pés, havia uma nota de dinheiro fora do comum. Não era Real, obviamente não, pois exibia a face austera e sorridente de Alex, o Dr. Alex, o dono majoritário do Escritório ASHI. A nota parecia de plástico opaco, e a face dele estava impressa em cores frias.
Amanda a encarou, o coração parando. “O quê?” O pensamento foi um relâmpago: “Uma piada? Uma nota falsa de marketing?”, a confusão era plena, um senso de realidade ligeiramente distorcido.
— Procurando alguma coisa? — O motorista perguntou, com a sua voz subitamente mais afetada estranhamente. — Está tudo bem?
Amanda piscou, cobrindo a nota com o dossiê — Sim. Só fechando a bolsa.
— É mesmo? — A voz do motorista era quase um sussurro.
— É sim. — Amanda tentou forçar um sorriso profissional.
— É mesmo é? — O tom mudou. O motorista começou a sorrir. Um sorriso largo demais, maníaco. Seus olhos brilhavam com uma fome inumana e selvagem. Ele tinha abandonado a fachada.
Amanda congelou, encarando o terror que emanava dele.
— Você não gosta dele, não é? Do Sr. Alex. Não precisa mentir para mim.
— O que? De quem? — Ela encarou o espelhinho do motorista e notou o olhar pertubado.
O motorista soltou o volante de repente. Soltou o cinto de segurança. Tudo isso com o carro acelerando sozinho. O veículo começou a cair para a lateral, em direção à calçada. O motorista, em um movimento rápido e animal, pulou para cima de Amanda. Ela reagiu por puro reflexo. Uma frieza recém-adquirida em seu trabalho encontrou um uso primário, a sobrevivência. Ela recuou ligeiramente, afastando as pernas para o lado com uma velocidade tensa.
O homem errou o alvo. Bateu a cara com violência no banco de trás, na mesma hora em que o veículo subiu a calçada com um impacto seco. O motorista foi elevado pelo solavanco, batendo a cabeça no teto do carro com um som surdo. Amanda gritou: “Ah!”, um som curto, seco e contido. Recuou as pernas e colocou os braços na frente do rosto no instante da colisão com a calçada. O carro não parou. Ele atravessou a frente de vidro de uma grande loja de colchões. O som de vidro estilhaçando e molas se comprimindo foi ensurdecedor. O carro só parou ao atingir o balcão da recepcionista no centro da loja, em um choque final e brutal. O silêncio. Um silêncio cheio de vidro quebrado e estofado destruído.
Amanda, ofegante, sentiu o sangue pulsando em suas têmporas. Soltou o cinto. Abriu a porta lateral, a bolsa e o celular ainda firmes nas mãos. Um homem, funcionário da loja, veio correndo, o rosto branco.
— A senhora está bem?!
— Estou. — A voz de Amanda saiu sem emoção.
O funcionário correu para o carro, chamando pelo motorista. Não houve resposta. Ele tocou o corpo torto entre os bancos. Amanda se aproximou, assustada, mas com o rosto fechado. Algo estava errado. Ela empurrou o funcionário para o lado e olhou para dentro do veículo, procurando. O olhar foi direto para o chão do carro. A nota de dinheiro com a face de Alex.
Havia sumido!
O corpo de Amanda se arrepiou. Não. O que havia acontecido? Ela se virou para o funcionário, sentia um choque elétrico percorrendo sua espinha. A confusão havia sido substituída pela certeza. Ela entrou mais no carro, virando o corpo do motorista, que estava caído, de barriga para baixo. O rosto dele estava esmagado contra o banco. Ela o colocou no banco de trás, e colocou a mão esquerda no coração. Nada. O coração não batia. Checou o pulso. Nenhum sinal.
Amanda saiu do carro. O nervosismo havia dado lugar a uma calma fria, a mesma que Alina tinha no seu relato. Ela olhou para o funcionário da loja.
— O dinheiro com a face… sumiu.
O funcionário não entendia — Que dinheiro, moça?
— Isso não foi humano… — tensa ela estava. — Por favor. Ligue para a Torre.
O funcionário estremeceu. Todos não só em São Paulo, mas no mundo sabiam; se a Torre era chamada, então a situação não era humana.
— A Torre? Tem certeza?
— Sim. E depois, ligue para a polícia comum.
São Paulo havia acabado de trocar uma ameaça de bomba por algo ainda desconhecido.
(…)
A noite nesse mesmo dia chegou, e carregava a saturação dos acontecimentos da tarde. Na casa de Amanda, a cozinha tinha o cheiro morno do jantar que não havia sido tocado. Fathma, sua mãe, passava um pano na mesa. O toque seco na porta a fez parar.
Fathma olhou pelo olho mágico. Dois homens de terno preto absoluto, sem cor, sem detalhes. O medo subiu pela garganta. Ela recuou a passos lentos, tentando anular o som. Entretanto, a porta foi aberta. Lenta, silenciosa, sem ser tocada. Muito menos por ela. Fathma se virou, assustada, com as mãos erguidas no reflexo de gritar.
Os dois homens entraram. Um, mais velho, Nahome, o experiente agente e leal a Ava, a comandante da Torre. Cabelo grisalho, bigode grosso, o cigarro na mão, soltando a fumaça de sempre — o contraponto estético ao ambiente. O outro, mais jovem, Tovah. Cabelo despenteado, barba falhada, e o picolé de morango na mão, um elemento absurdo.
— Boa noite, querida Fathma. — Nahome disse, após soltar um trago lento.
— Como sabe meu nome? — Fathma balbuciou.
— Somos da Torre. Sabemos muitas coisas. — Tovah lambia o picolé.
— A senhora conhece a Torre. Sabe que não somos ruins, né? — Nahome bateu no ombro esquerdo do seu colega mais jovem.
— Sim, sei… mas o que vocês querem na minha casa? Não sou coisa ruim.
— Coisa ruim… eu gostei desse termo com os portadores. Serve muito bem para eles. — Tovah constatou, sorrindo de canto com os lábios lambuzados. Mas Nahome repreendeu. — Não precisa disso…
Nahome deu um passo para dentro, o cigarro aceso — Só queremos algumas informações que a sua filha Amanda tem para nos repassar, entende?
— Mas ela não faz nada de errado, moço. — Fathma protestou, abrindo os braços numa tentativa de impedir algum avanço dos dois homens.
— Exato… — Nahome concordou, balançando a cabeça e mexendo na ponta do cigarro.
— Ela não fez nada de errado. Fez algo certo, e só queremos ouvir o que ela tem de informações. — Tovah comia a casquinha de seu sorvete, indiferente com a preocupação da senhora, sem nem ao menos olhar para ela.
Nesse instante, Amanda desceu as escadas, saindo do corredor para a sala. Deu de cara com a cena; sua mãe encurralada por dois homens de preto. A primeira reação de Amanda foi o choque. A Torre. Os mitos, as lendas, o ápice de poder dos humanos contra os portadores e contra os Gyakus.
— Mãe, está tudo bem. — Amanda intercedeu, com a voz firme, sem medo, surpreendendo-se com a própria frieza. — Está tudo bem, mãe. Está tudo bem.
Amanda se aproximou, colocando-se entre a mãe e os agentes — É a Torre, mãe. Eu que pedi que ligassem. Houve algo estranho hoje.
O rosto de Fathma relaxou na aceitação do absurdo. Ela foi para a cozinha beber água, deixando Amanda na zona de conflito.
— Boa noite. — Amanda anunciou, inclinando levemente a cabeça, reverência. — Sou Amanda. Por favor, entrem.
Nahome e Tovah se entreolharam, estranhando a reverência da Amanda, mas entraram na residência. O sofá laranja da sala absorveu a escuridão dos ternos quando os dois sentaram.
— O que houve hoje, Amanda? — Nahome perguntou, polido, soltando a fumaça no teto.
— Foi um acidente. Mas não foi um acidente. — Amanda começou, calma. Ela detalhou o motorista, a forçada simpatia, a mudança abrupta. — Ele parecia louco.
— Não sabe que é meio legal hoje os profissionais usarem drogas? — Tovah comentou, seu picolé escorria nos dedos da mão direita.
— Não era droga. Eu vi uma nota. Dinheiro. Tinha a face de um homem. Do Alex.
Nahome endireitou a postura — Quem é ele?
— Só sei seu primeiro nome, Alex. É o dono do escritório onde eu trabalho. Um dos advogados mais poderosos de São Paulo.
Amanda explicou a posição de Alex, o homem que ela tinha acabado de encontrar na Sala Sênior, o controlador.
— O motorista parecia louco e pulou para cima de mim. Bateu a cabeça no teto e desmaiou. Mas quando olhei para o dinheiro… ele havia sumido. Depois o motorista… não tinha pulso. Morreu por uma pancada que não mataria um homem comum.
Tovah parou de lamber o picolé e olhou para Nahome — Isso soa Rito. O que acha?
— Concordo. O dinheiro era o ponto de ativação e desativação do Rito. — Nahome abaixou seu tronco, encostando seus braços nos joelhos.
— E esse Alex… ele é Portador? — Amanda questionou.
— Alex é um nome conhecido. — Nahome respondeu, evasivo. — Ele é um humano poderoso mesmo. Mas não sei até onde pode verdadeiramente ir. Talvez tenha virado algo que não sabemos ainda… Talvez.
— O que devo fazer? — Amanda parou em frente à televisão, de frente com os dois agentes sentados no sofá da sala.
Nahome tragou o cigarro, olhando para Amanda com uma curiosidade analítica.
— Por enquanto, nada. Você fez o certo. Mandou ligar para a Torre. Esse motorista foi uma isca para fazer algo contra você. Então provavelmente foi alvo. Não faça nada e nem demonstre que sabe de algo.
— Finja demência. — Ainda sentado, Tovah jogou o lenço do picolé numa cestinha de lixo no canto da sala.
Nahome se levantou do sofá, apagando o cigarro na palma da outra mão como nada e o jogando na cestinha. Tovah o seguiu, também colocando por fim o palito do picolé na lixeira.
— A Torre investigará Alex mais a fundo. Você é uma testemunha chave. Em breve, retornaremos o contato. Não comente sobre o dinheiro com a face com ninguém. Entendeu? — recomendou Nahome, enquanto abria a porta, e Tovah passava para a fora.
— Entendi…
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